"Doutor não, vaqueiro Rosa": no sertão com Guimarães e Zito

Tanael Cesar Cotrim, jornalista que atua na Unicamp, refez o caminho da expedição de Rosa no sertão mineiro e lança o livro O Rumo do Rosa na Rota de Zito

Por LIANA COLLI

Rosa levantou-se e o cozinheiro, de momento, notou um andar coxo e pendente para o lado e afiançou-se, no evidente, do sinal das nádegas esfoladas do vaqueiro-amador no lombo da Balalaica.

Enquanto o restante da tropa dormia, Zito proseava com Rosa e fazia, na trempe, a comida seguida do café. Então, logo, depois de preparada a refeição, todos acordaram na hora marcada do natural despertar e cumpriram a rotina matinal, primeiro tratando a barriga e, na sequência, ajeitando o gado para a partida 

(trecho de O Rumo do Rosa na Rota de Zito, de Tanael Cesar Cotrim)

No dia 13 de maio de 1952, há exatos 70 anos, João Guimarães Rosa partiu para uma expedição no sertão de Minas Gerais que deixou marcas em sua literatura. A viagem de 14 dias foi realizada durante o transporte de uma boiada. Entre os peões da comitiva, o vaqueiro e poeta Zito foi aquele com quem o escritor travou contato mais próximo em suas andanças pelo sertão. Depois de 50 anos, o então estudante de jornalismo Tanael Cesar Cotrim percorreu o caminho traçado pela expedição, acompanhado de Zito. 

A viagem deu origem ao livro-reportagem O Rumo do Rosa na Rota de Zito, em que literatura e história se encontram, recuperando a relação entre o escritor e o vaqueiro e a experiência no sertão. 

A expedição de Rosa teve início em Cordisburgo (MG), cidade natal do escritor, passando pela Fazenda Sirga, em Três Marias, até chegar à Fazenda São Francisco, em Araçaí. No percurso, de cerca de 240 quilômetros, acompanhou vaqueiros que transportavam 360 cabeças de gado. A viagem inspirou várias obras do autor, dentre elas Corpo de Baile (1956), Tutaméia (1967) e sua publicação mais reverenciada, Grande Sertão: Veredas (1956). No trajeto, Rosa, que era diplomata e médico de formação, pedia aos vaqueiros que não o chamassem de doutor. Na expedição, ele era o Vaqueiro Rosa, conforme relato de Zito para a reportagem de Tanael Cesar:

Aí, quando foi no dia 13 de maio, 13 de maio de 1952, eles chegaram de noite, num jipe. Aí ele chegou e eu perguntei - O senhor que é o doutor Rosa? Ele respondeu - Doutor não, vaqueiro Rosa. Não podia chamar de doutor na viagem não. - Doutor é no Rio, aqui não, aqui é vaqueiro Rosa.

Fascinado pela literatura de Rosa, o jornalista, documentarista e funcionário do Canal Universitário de Campinas, Tanael Cesar partiu para a viagem em 2001. Sua intenção era fazer um trabalho sobre a experiência de Guimarães Rosa no sertão e suas reverberações na literatura. Mas logo percebeu que não poderia abordar a viagem sem falar de Zito.

“Saí com uma ideia e voltei com a percepção, que depois é manifesta no livro, de que o Zito tem uma força desmedida na vivência do Rosa com o lugar. Não dá para abordar a experiência do Rosa sem entrar propriamente na maneira como o Zito viveu aquele período. Contar essa experiência do Rosa é contar através do Zito”, diz.

O mergulho na expedição combinou o trajeto percorrido pelo jornalista com Zito e Brazinha, comerciante de Cordisburgo e grande conhecedor da obra da Rosa, e uma pesquisa documental. Para conhecer as impressões de Rosa sobre a viagem, o jornalista consultou os cadernos do escritor guardados no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da Universidade de São Paulo (USP). “Soube como se deu a experiência do lado do Zito. Mas e do lado do Rosa? Consultei todos os cadernos dele e esse acervo corrobora a importância do Zito como um referencial na viagem”, conta.

A poesia, os relatos e a memória de Zito permeiam a narrativa do livro-reportagem e evidenciam a curiosidade de Rosa. O escritor, aponta Tanael Cesar, era obstinado por uma expressão fidedigna do real. “A experiência meticulosa com uma realidade que só conhecia em trabalhos científicos e diários foi fascinante para ele. Rosa registra tudo em cadernetas. Conta também que isso incomodava o pessoal, porque ele não parava de perguntar e anotar, queria o detalhe do detalhe, como se quisesse unir todos os códigos sensoriais possíveis numa expressão irradiada do próprio objeto”. 

As perguntas eram direcionadas em boa parte a Zito, que também era o cozinheiro da expedição e acompanhava o escritor à frente da boiada. O relato do vaqueiro sobre essa relação também aparece no livro:

Tudo o que o cê pensar de perguntar no mundo ele perguntou. Ele nem ia lembrar tudo. O Rosa perguntava de tudo. Um dia ele, isso foi pertinho da Tolda, um cerradão. Tinha um pau seco assim, tudo torto. -Pra quê que serve esse pau? Ele perguntou. Não tinha nada de responder. Eu falei. -É pra papagaio chocar. Ele falou. -O cê tem resposta pra tudo. Depois que a gente acostumou com ele era normal. Tinha que responder aquilo que ele perguntava. Era o dia inteirinho, e escrevendo. Cortou um lápis no meio, pôs um cordão e amarrou no botão da camisa, e uma caderneta de arame, passada no pescoço, pendurada. Andano ele escrevia tudo.

A experiência dos 14 dias de viagem permeou a literatura do escritor. Tanael Cesar indica as conexões entre as pessoas com quem Rosa conviveu na expedição e personagens de seus livros. Manuelzão, capataz da comitiva, tornou-se protagonista do conto Uma estória de amor. Tornaram-se também personagens de livro o rabequista Chico Barbosa, que virou Chico Barbós, Miguilim, que morava na fazenda Sede da Sirga, e Joana Xaviel, moradora de Grota e contadora de estórias. Juca Bananeira aparece no conto O burrinho pedrês, de Sagarana.

Já Zito torna-se personagem no conto A partida do audaz navegante”, de Primeiras Estórias. 

Mas a importância de Zito ultrapassa sua transformação em personagem, segundo o jornalista. “O contato entre eles vai muito além de um trabalho quase etnográfico de Rosa por meio de Zito. Esse contato inspirou Rosa, criou nele formas de literatura dentro da literatura. Zito não é parte da literatura de Rosa apenas como personagem, é parte da literatura de Rosa do ponto de vista formal, de construção da linguagem e de estruturação do texto”.

As quadras que Zito compunha ao longo da viagem aparecem, ainda que com outra roupagem, observa Tanael Cesar, em Grande Sertão: Veredas. "Terminava a lida do dia, eles se recolhiam e Zito escrevia as quadras. Escreveu várias e deu para o Guimarães Rosa. Encontrei essas quadras no acervo do escritor. Em Grande Sertão: Veredas, Riobaldo está velando a mãe, quando chega um jagunço chamado Siruiz e começa a entoar uma canção. Essa canção é uma quadra de desafio que tem toda a estrutura interna de composição, de abordagem da realidade, o mesmo preceito, a mesma regra e a mesma lógica da quadra que Zito desenvolve na viagem de 1952”.

Confira uma das quadras de Zito que o jornalista selecionou para o livro:

Vamos terminar esta estoria

falando em Dr. João.

Que fez esta viagem

com o pessoal do sertão.

Adeus Dr João Roca

o senhor vai me desculpar.

Você seque a tua viagem

e nos vamo voltar.

Dr João Rosa foi sembora, 

despedio do cozinheiro.

Nos voltamo pra Sirga 

ele foi para o Rio de Janeiro.


Admiração pela obra de Guimarães Rosa

Crescendo em uma família com poucos recursos financeiros, Tanael Cesar não tinha acesso a livros em casa e começou a se interessar por literatura na biblioteca da escola. “Nas idas à biblioteca infantil comecei a adquirir um gosto pelo mundo que o livro apresentava. A organização das ideias e a transposição de um mundo através da letra e da fabulação me capturaram. Ao mesmo tempo, tinha um pouco de dificuldade social de me inserir em alguns grupos, e o livro me acolheu”. 

Na adolescência, ele tomou contato com Guimarães Rosa por meio de Grande Sertão: Veredas, e ficou fascinado. “As primeiras 60 páginas de Grande Sertão costumam impor um risco ao leitor. Muitos param e não retomam a leitura. Para mim foi o contrário. Trouxe uma sensação de deslocamento interessante. Foi uma experiência de sensibilidade literária que me provocou, gerou curiosidade e desafios”, conta. 

A partir de então, o jornalista prosseguiu com a leitura de outras obras de Rosa. Quando soube da viagem do escritor ao sertão, decidiu conhecer o local. “Havia um interesse cada vez mais vital em lidar com a literatura do Guimarães Rosa e a necessidade de produzir algo imediato. Transformei isso em um projeto de reportagem literária, com um trabalho de campo, reconhecimento do espaço físico, investigação do passado e do presente, apego aos fatos”. 

A reportagem foi seu trabalho de conclusão de curso em Jornalismo. Passados 20 anos da viagem e 70 anos da expedição de Rosa, após uma conversa com a editora Claudia Bortolato, Tanael Cesar decidiu revisitar o texto e encaminhar a publicação. Claudia assinala as características que distinguem o livro. “A literatura de Rosa e sobre Rosa é vasta, mas esse livro tem uma característica diferente. Ele não é somente sobre Rosa nem sobre Zito, não é só sobre a viagem, ou só sobre o sertão. Ele é um complexo de informações dentro da obra do Rosa. Para a editora, é uma publicação muito atraente”, aponta.

O Rumo do Rosa na rota de Zito está em pré-venda e pode ser adquirido no site da editora Pangeia.


Imagem de capa JU-online

Jornal Unicamp

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