A CURA PARA UMA AGRICULTURA EM CRISE

A biodiversidade é reguladora dos agroecossitemas, é essencial para a produção de alimentos.

Crise, essa foi a palavra que ficou martelando na minha cabeça por dias após a conversa que tive com Arnaldo, um dos nossos mais velhos do território Mata Cavalo em Mato Grosso.

Nas minhas andanças por essas comunidades tradicionais e quilombolas, aprendi que o conhecimento que acumulei em alguns anos na faculdade de agronomia, não chegam nem aos pés dos conhecimentos que estes agricultores e agricultoras detém sobre seus territórios e Agroecossitemas. Isso tem me feito mais aprendiz do que doutora, como fazem questão de me chamar.

Doutor mesmo é Senhor Arnaldo Rosa Arruda, especialista em agricultura tradicional, faz roça desde os 08 anos de idade, maneja de forma natural e na tradição as roças de toco, que são comuns nas comunidades quilombolas da baixada pantaneira.

E são esses sistemas agrícolas tradicionais, cultivados á séculos e que seguem produtivos até os dias atuais, que me trazem alguns questionamentos. Quais os motivos que levam a insustentabilidade de outros sistemas agrícolas?

A também engenheira agrônoma Ana Maria Primavesi, quando questionada sobre a revolução verde na década de 70 com a imposição de agrotóxicos oriundos da guerra e intensa mecanização, dizia que nunca se tratou do que a agricultura precisava e sim do que a indústria poderia oferecer.

Desde então eu me questiono: Do que a agricultura precisa?

Talvez essa desinformação seja intencional, motivo que tem levado agricultores/as a aceitarem as falsas soluções impostas por multinacionais para os problemas da agricultura. A exemplo dos pacotes químicos de agrotóxicos e sementes geneticamente modificadas.
É fato que precisamos buscar decisões mais assertivas no manejo dos sistemas agrícolas, que não sejam agressivas ou gerem impactos sociais e ambientais.

Na busca de respostas, tenho praticado a escuta e observação daqueles que manejam essas terras pantaneiras a muitos anos, e tenho observado que não existe agricultura sem biodiversidade.

Existem práticas tradicionais de manejo realizadas nas comunidades quilombolas para a manutenção dessa biodiversidade, fundamental para o desenvolvimento dos roçados de produção de alimentos.

A exemplo do controle dos insetos e dos animais que se alimentam das roças. E veja bem “controle” e não “extermínio”, pois estes cumprem um papel importante e fundamental para a agricultura.

A Anta (Tapirus terrestris), mamífero muito encontrado na região da baixada pantaneira, tem se alimentado constantemente dos roçados nas comunidades. Em alguns casos chega a ser alimentar de 30 a 40% do que é produzido nas roças, e para muitos agricultores/as é considerada uma concorrente.

Porém estes animais cumprem um papel fundamental na manutenção da biodiversidade, a anta é uma excelente dispersora de sementes nas florestas. Da mesma forma que seu aumento ou redução populacional são indicadores de desequilíbrio ambiental.
O recente Atlas dos insetos publicado pela Fundação Heinrich Böll, demonstra que de todas as espécies animais no mundo, 90% são de insetos. E estes têm muitas funções cruciais no ecossistema: polinizam plantações, sendo fundamentais para a produção de alimentos, melhoram a qualidade dos solos, participam no processo de decomposição de matéria orgânica e contribuem com a diversidade genética de espécies vegetais.

Segundo o Atlas, vários estudos apontam que haverá uma acentuada taxa de declínio em 40% das espécies de insetos nas próximas décadas. O modelo convencional de agricultura está fortemente relacionado a esse processo: esses animais vêm perdendo seus habitats devido ao desmatamento, às crescentes monoculturas e ao uso excessivo de agrotóxicos. Além disso, o desequilíbrio ambiental e as mudanças climáticas acentuam a presença de patógenos e espécies invasoras, que levam à morte de muitas espécies.

Por outro lado, grande parte literatura agrícola descreve os insetos como não desejáveis para agricultura, vistos como “pragas” que precisam ser eliminadas, varridas do planeta.

É considerada uma praga agrícola, os insetos que atinge um aumento populacional capaz de causar danos a produção/plantas cultivadas.

Estudos apontam que apesar de grande número de insetos alimentarem-se das plantas, apenas cerca de 2% dessas espécies tornam-se pragas. Porém quais são os fatores que levam os insetos a se tornarem pragas?

Parte do motivo, está ligada a interferência humana nos ecossistemas, causando perda da biodiversidade ou alterando condições climáticas por exemplo, que levam a grandes migrações dos insetos ou aumento populacional, a exemplo das famosas pragas do Egito até as atuais nuvens de gafanhotos que ameaçam áreas de produção do agronegócio em Mato Grosso e outras regiões.

Sendo assim, os insetos passam de criminosos a vítimas dessa desordem ambiental provocada pelos seres humanos.
Em países como Estados Unidos tem sido realizado investimentos bilionários nos chamados sistemas artificiais de polinização, com a criação de “insetos robóticos”. Em decorrência do crescente desparecimento e morte das abelhas e outros polinizadores causados pelo desmatamento e uso intensivo de pesticidas.

O Curador de Roças

Aos 72 anos senhor Arnaldo exerce o trabalho de curar as roças, isso mesmo um curador de roças, que através da oração e ancestralidade conversa com os insetos e busca restabelecer o equilíbrio do agroecossistema.

Benzer os roçados é uma prática tradicional que está associado as relações sociais, culturais e ancestrais desses povos.

Senhor Arnaldo apontam que nos últimos anos houve um aumento de “pragas” e doenças nos roçados, gerado por uma crise!

Retiram os alimentos desses insetos e animais, derrubam arvores que são suas casas e fonte de alimentos e eles migram para os roçados. A Bocaiúva por exemplo e é a principal fonte de alimento dos insetos na região, mas está cada vez mais escassa.

Enquanto conversava manifestava descontentamento com a situação atual do Pantanal, tomado por fazendas de monocultivos de soja e pastagens para gado. Consequentemente desmatamento e uso intensivo de agroquímicos, além da mineração que tem transformado a paisagem com inúmeras e grandes barragens de rejeitos. 

Conta que aprendeu a benzer com sua mãe que já exercia a prática da cura e era demandada pelos vizinhos e até mesmo por outros agricultores/as de regiões mais distantes. E me explica como corta o rumo do vento para benzer roças que estão distantes.

Associado a prática de benzer os roçados senhor Arnaldo faz rotação de culturas, pousio, plantas arvores e uma diversidade de alimentos e não utiliza venenos agrícolas, fato que se orgulha em dizer.

E como senhor Arnaldo, venho de uma família de benzedores. Minha avó Dina além de parteira, benzia trovões e tempestades, que ensinou a minha mãe e que agora me ensina, como meu avô Benedito que benzia chuva de vento. Para mim é compreensível que não se trata de controlar a natureza, e sim nos entendermos parte dela.

Sendo assim, as práticas adotadas no manejo dos agroecossitemas não devem ser interpretadas de forma isolada, já que tudo estar interligado as consequências sejam elas positivas ou negativas atinge toda essa complexidade chamada de sociobiodiversidade.

Em 2009 realizei uma pesquisa em Cáceres – MT, para levantamento de indicadores ecológicos de fertilidade do solo, observando práticas agrícolas que eram adotadas por agricultores/as no assentamento Fação, e como estas influenciavam a caracterização da fertilidade dos solos.  Coletei também amostras dos solos para análise química da presença ou ausência dos nutrientes.

Queria justamente trazer uma análise crítica ao conceito de fertilidade do solo, que normalmente desassocia o manejo e as práticas adotadas pelos agricultores/as, e resumem sua fertilidade a três únicos nutrientes NPK (Nitrogênio, Fósforo e Potássio).

Sempre me incomodei com o conceito de solo pobre ou não fértil, e que geralmente não considera os fatores externos que comprometem essa fertilidade, por exemplo a eliminação de microrganismos que os mantem vivo.


É cada vez mais perceptível aos olhos o desequilíbrio - a crise, gerada por modelo agrícolas de monocultivos e que exterminam a vida, contaminando solos e águas, gerando muitos impactos. É uma agricultura em crise e adoecida, pois não permite a regeneração do sistema, extermina a biodiversidade e se torna insustentável.


É urgente compreendermos que a biodiversidade seja ela plantas ou insetos e outros animais, é reguladora e essencial para agricultura, para a produção de alimentos.


E como senhor Arnaldo me ensinou não há equilíbrio que se restabeleça só com oração e fé, precisamos de ações em todas as dimensões para cura dos agroecossitemas.


As tomadas de decisões e políticas públicas precisam garantir a implementação e o desenvolvimento de sistemas agrícolas diversificados que restabelecem a biodiversidade do planeta, enfrentando esta crise que não é só climática.


E os Sistemas Agrícolas Tradicionais dos povos indígenas, tradicionais e quilombolas apontam para tais caminhos.


Por: Fran Paula - Quilombola, Engenheira Agrônoma e mestre em saúde pública e idealizadora do Projeto Agriculturas e Ancestralidades.


Cáceres, 12 de fevereiro de 2022.


Agradecimentos: A senhor Arnaldo Rosa Arruda pelo tempo e diálogo que motivaram a escrita deste artigo. A amiga e importante liderança quilombola em Mato Grosso - Laura Silva que sempre me apoia. Ao meu avô Benedito (In memoria) curador do tempo e minha avó Dedina Paula (In Memoria) a quem deixou um vasto aprendizado a minha mãe e a mim sobre o conceito ampliado de saúde, a minha amiga e professora Dra. Vanessa Cristina Almeida Theodoro ( In memoria) que me encorajou e incentivou durante a faculdade de agronomia ao trabalho com agroecologia.


Ilustração Gráfica: A benzedeira (Natasha Himelfarb)


Apoio: Esse projeto conta com o apoio da Secretaria de Cultura, Esporte e Lazer do Estado de Mato Grosso - SECEL, por meio do edital Movimentar.


Referências Consultadas:

Atlas dos Insetos – Fundação Heinrich Böll. Disponível em https://br.boell.org/pt-br/2021/12/03/atlas-dos-insetos?dimension1=atlas-insetos

CASTRO, F.P; THEODORO.V.C.A. Levantamento da fertilidade do solo e indicadores ecológicos de unidades de produção agrícola do assentamento do facão – Cáceres, MT, Brasil. UNEMAT. Disponível em http://www.unemat.br/eventos/jornada2009/resumos_conic/Expandido_00012.pdf

PRIMAVESI.A.M. Manejo Ecológico do solo: a agricultura em regiões tropicais. São Paulo, 2.ª Edição, 2002.


Confira o vídeo: O curador de Roça. Com a entrevista do encantador Arnaldo Rosa Arruda do quilombo Mata Cavalo em Mato Grosso.




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