CARNE DE FUMEIRO EM PROCESSO DE PATRIMONIALIZAÇÃO: SABERES ANCESTRAIS,TERRITÓRIOS E DISPUTAS.
A carne de fumeiro é mais que um alimento: é memória defumada, saber ancestral que se propaga por fumaça, calor e tempo. Presente em comunidades do Recôncavo e do Baixo Sul da Bahia, esse produto tradicional é feito a partir de cortes suínos submetidos à salga, cura e defumação em fornos de barro ou alvenaria, numa técnica herdada da diáspora africana e recriada por gerações de famílias negras rurais.
Seus modos de fazer guardam temporalidades que resistem à lógica industrial: o porco criado solto, alimentado com baba de farinha, restos de dendê, inhame, abóbora e palma. O abate feito em dias de ritual, acompanhado de reza e partilha. A carne que passa dias absorvendo fumaça de lenha de gameleira, jurema ou pau-ferro. Tudo isso faz da carne de fumeiro um alimento carregado de simbolismo, afeto e pertencimento territorial.
Hoje, no entanto, a carne de fumeiro atravessa um processo de patrimonialização — movimento de reconhecimento oficial, por órgãos como o IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), de que ela constitui um bem cultural imaterial do povo brasileiro. A patrimonialização busca proteger saberes e práticas ameaçados pela modernização, pela perda de território, e pela precarização do trabalho no campo.
Territórios do Fumeiro: Recôncavo e Baixo Sul
As principais regiões produtoras estão no Recôncavo Baiano — como Maragogipe, Cachoeira, São Félix e Muritiba — e no Baixo Sul — como Valença, Nilo Peçanha e Taperoá. Nesses locais, famílias quilombolas e agricultoras mantêm a produção tradicional, muitas vezes invisibilizada diante do avanço de versões industrializadas e da circulação de produtos sem origem certificada.
A patrimonialização, neste sentido, pode funcionar como um instrumento de justiça cultural e econômica, garantindo reconhecimento e valorização dos territórios e de quem carrega esses saberes. Contudo, é necessário cuidado para que esse processo não seja apenas simbólico, ou pior: instrumentalizado por elites e empreendedores urbanos que se apropriam da narrativa e do valor do produto, sem repartir os benefícios com quem de fato o produz.
Patrimonializar é também entrar em disputa. A valorização da carne de fumeiro tem gerado interesse crescente por parte do setor gastronômico, de chefs renomados, redes de turismo e empreendedores. O risco é que o foco recaia no produto final, esvaziando o processo e seus sujeitos. O fumeiro vira “delicatessen”, servido em tábuas com compotas e pães artesanais, enquanto as mulheres que cuidam dos fornos ainda vivem sob insegurança fundiária e sem políticas públicas de apoio.
O reconhecimento institucional pode, portanto, ser uma faca de dois gumes: abre portas, mas também abre mercado — e com isso, abre espaço para a gourmetização. A carne que antes era parte de um sistema alimentar autônomo e coletivo pode ser convertida em commodity de luxo, descolada do seu contexto de origem.
Turismo e Gastronomia: Oportunidade ou Ameaça?
O turismo gastronômico tem sido visto como uma alternativa de geração de renda para comunidades tradicionais. No entanto, ele só será justo se for conduzido com protagonismo comunitário, com respeito aos tempos e modos locais. Projetos que envolvam visitação aos locais de produção, oficinas de defumação, experiências de roçado e cozinha podem fortalecer os laços entre quem produz e quem consome — mas isso exige mediação ética e política.
Sem isso, a carne de fumeiro corre o risco de ser “degustada” em roteiros coloniais que fetichizam o rural e o negro, sem reverter qualquer ganho às comunidades.
Por uma Patrimonialização Popular
A patrimonialização da carne de fumeiro só fará sentido se vier de baixo para cima, com escuta ativa às mulheres, aos mais velhos, às famílias produtoras. É preciso garantir:
•Mapeamento participativo dos territórios e das técnicas;
•Reconhecimento das Mestras e Mestres dos saberes;
•Apoio à regularização sanitária e fundiária sem padronizar os processos;
•Criação de selos de origem comunitária, e não apenas de inspeção técnica;
•Fomento à comercialização justa, por meio de feiras e redes locais.
Mais do que um título, é necessário um compromisso com a justiça alimentar, a soberania territorial e a preservação dos modos de vida que fazem da carne de fumeiro um bem vivo, com cheiro de lenha, gosto de resistência e voz de ancestralancestralidade.
RECEITA DE DONA CANÔ COM SUCO DE LARANJA E CEBOLA ROXA
É o cheiro que sobe do forno de barro.
É o tempo lento da cura e da fumaça.
É o saber passado de mãe pra filha, de avó pra neto.
É o porco criado solto no quintal e o sal que conserva a memória.
É o território que se defende com lenha, panela e afeto.
Mas é também o toque de quem transforma essa tradição em poesia no prato.
Como Dona Canô, matriarca do Recôncavo, guardiã da cultura, que preparava sua carne de fumeiro com um toque inesperado: suco de laranja e cebola roxa. Uma combinação que perfuma a cozinha com notas doces e ácidas, exaltando o sabor defumado em harmonia com a simplicidade dos ingredientes da roça.
Essa receita – feita sem pressa, com sabedoria e afeto – é um manifesto de como a culinária tradicional transforma o cotidiano em ritual, e o prato em memória viva.
Carne de fumeiro é patrimônio. É cultura. É resistência.
E nas mãos de quem sabe, vira banquete de história.
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