Agricultoras e quilombolas geram renda com receitas tradicionais em Alagoas
Há dois anos, mulheres das comunidades do Povoado Sapé e Tabuleiro dos Negros transformam os alimentos de seus quintais em bolos, pés de moleque, sequilhos de tapioca, sem usar nenhum produto industrializado, para valorizar cultura.
Na roça, elas plantam amendoim, mandioca e milho que viram bolos, beijus, pamonhas, broas de milho, pés de moleque e sequilhos de tapioca.
Os produtos são vendidos em feiras, para programas de governo, como a merenda escola, e vizinhos, conta a presidente da Associação de Mulheres Agricultoras, Quilombolas e Pescadoras do Povoado Sapé, Maria Quitéria Pereira Matias.
O diferencial é que não tem nada industrializado. "A comida da gente é natural, não tem fermento, não tem química, a gente não trabalha com nada disso", diz Maria Quitéria.
Para fazer os bolos crescerem, por exemplo, as agricultoras usam a puba, uma massa extraída da mandioca que incha quando colocada no forno quente. Elas só cozinham no fogão de carvão e a lenha. E, para adoçar, açúcar de coco.
"Mas, mais do que o dinheiro, o que eu percebi que mudou na vida delas é que hoje elas se sentem importantes. Elas faziam muitas coisas, trabalhavam na roça com os maridos, mas, quando alguém perguntava se elas trabalhavam, elas respondiam que não. Hoje elas respondem ‘a gente trabalha’", conta a presidente.
Ano da fome
A associação foi idealizada há dois anos pela própria Maria Quitéria, que é filha de agricultores familiares. Ela diz que fazer um projeto com as mulheres do quilombo é a realização "de um sonho de infância" e "não surgiu do nada".
"Eu nasci em 1971. Um ano que ficou conhecido como o 'ano da fome' aqui na nossa região, um ano histórico onde a agricultura familiar sofreu muito. Nesse ano, mamãe e papai perderam a roça...o povo roubou nossa roça com tanta fome, carregaram mandioca, feijão", relembra Maria Quitéria.
Essa situação repercutiu durante os primeiros anos da infância dela. Sua mãe e outras mulheres dos quilombos tiveram dificuldades para criar os filhos.
"Minha mãe e as negras da época usavam rapadura pra fazer as papas das crianças. Meu avô viajava para Juazeiro do Norte e trazia muita rapadura", lembra.
"Minha mãe também era costureira...as mulheres do quilombo pediam pra ela costurar, mas, como não tinham dinheiro, davam banho na gente, comida, e eu observava aquilo e pensava que um dia queria ajudar aquelas mulheres e contar a história minha mãe de alguma forma", diz.
'Princesa do algodão'
Maria Quitéria também lembra de muitos momentos felizes de sua infância. Passado o período mais intenso da fome, ela ia junto com seus pais cultivar inhame, feijão, milho, algodão. "Eu amava a roça desde pequenininha, é uma história de amor".
Após o plantio, ela organizava festas com as crianças, que brincavam de "princesinha do algodão", "do inhame", "do feijão".
"Algodão sempre foi minha paixão...depois do plantio, eu juntava as crianças e vestia as meninas de folhagens, de mato, transformava as roupas delas e dizia ‘vamos fazer uma festa do algodão’. Eu fiz muita festa. Eu era pequenininha, mas já gostava de ter o comando da roça".
Fuga e organização
Maria Quitéria conta que, atualmente, as mulheres se sentem mais importantes no trabalho na roça. — Foto: Arquivo pessoal
Quando adolescente, seus pais e sete irmãos se mudaram para a cidade alagoana de Penedo, mas Maria Quitéria não se adaptou.
"Só fiquei 13 dias. Eu fugi. Esperei um dia que mamãe e papai não tivessem em casa e vim embora e só avisei depois, com a certeza de que eu não voltaria mais. A minha vida é aqui, minha raiz, eu sou feliz aqui", diz.
Desde então, Maria Quitéria dedicou toda a sua vida às duas comunidades e esteve à frente de associações de moradores na região. "Quando eu senti que já tinha dado a minha contribuição aos agricultores, pensei 'agora eu quero viver uma nova experiência somente com as meninas'", conta.
"Nossa associação nasceu apenas com apenas 18 meninas [em 2019]. Eu perguntei a elas se a gente podia fazer um trabalho somente entre nós, com a nossa cara, onde a gente pudesse ter a nossa voz de mulher e assumir a identidade do quilombo, da simplicidade, da tradição das nossas mães e avós. Elas toparam e foi um grande desafio", lembra.
Resgatando receitas tradicionais
Mulheres padronizaram receitas tradicionais do Tabuleiro do Negros e Povoado Sapé. — Foto: Arquivo pessoal
Maria Quitéria diz que, no começo, "muitos não acreditaram" no trabalho delas e que "acharam que era mais uma associação que ia nascer". Mesmo assim elas seguiram em frente e foram atrás de profissionalização, como cursos do Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar), em Alagoas.
Elas selecionaram receitas tradicionais do Tabuleiro do Negros e do Povoado Sapé e as padronizaram. "Não é cada um fazendo o que quer, eu me encarrego de supervisionar", diz Maria Quitéria, que coordena os trabalhos feitos nas residências das próprias agricultoras e em 15 casas de farinhas.
"Temos várias receitas. Hoje estamos vendendo bem os tradicionais pé de moleque, o Bolo da Semana Santa, que é feito de mandioca, de massa puba, na palha de bananeira, no forno a lenha", conta.
Foto: Arquivo pessoal
Bolo da Semana Santa sendo feito sobre a palha de bananeira. — Foto: Arquivo pessoal
Elas vendem para os vizinhos, pessoas de outras comunidades e feiras. "Hoje eu tenho 15 meninas nas feiras. Foi um dos maiores desafios, pois enquanto o pessoal chegava com salgadinho, pastel, cachorro quente, a gente chegou com os produtos da roça", diz.
Elas participam também do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), do governo federal, além de venderem para o Instituto de Inovação para o Desenvolvimento Rural Sustentável de Alagoas (Emater-AL), do governo estadual.
"Comprei uniformes para elas, toquinha, avental, joguei na mídia. Dei a cara para bater com meu nome sem saber se as pessoas iam querer saber dos nossos produtos", diz. Hoje, elas têm uma conta no Instagram e no Facebook.
Plantar no quintal
As mulheres que não têm um espaço grande de terra plantam em seus quintais. — Foto: Arquivo pessoal
Mesmo as mulheres que não têm um espaço grande de terra para plantar participam da associação.
"Elas me perguntavam 'como que eu vou trabalhar?' Eu digo 'a gente vai pegar o seu quintal e vai plantar nele o que você vai precisar'. O que era antes só terreno, hoje está coberto de legumes, maracujá, amendoim, feijão e a macaxeira, que é a campeã da gente. Não tem mais terra sobrando", diz Maria Quitéria.
Com a iniciativa, as mulheres ganharam mais autonomia financeira e gestão da terra. "Antes elas dependiam muito do preço que os atravessadores colocavam, pois não tinham acesso a quem vender. Elas colhiam tudo de uma vez e os atravessadores levavam tudo de graça".
Hoje, Maria Quitéria as orienta a ir colhendo somente o necessário para as receitas da semana. E também a gerir o próprio dinheiro.
"Antes, elas faziam todo o processo da farinha, mas, na hora em que enchiam o vaso, o marido delas diziam ‘sou eu quem vou vender' e elas ficavam quietas. Hoje são elas que chegam com o dinheiro da feira em casa...o dinheiro do PAA cai no cartão delas".
Maria Quitéria conta que ainda tem muito para caminhar com as mulheres do quilombo. E que mais um sonho delas foi realizado em março deste ano, quando a prefeitura de Igreja Nova cedeu a elas um espaço de uma antiga escola municipal, onde será a sede da associação. Ainda precisa de muita reforma, mas elas seguem confiantes.
“Vou lutar junto com as minhas companheiras para que este espaço se transforme numa grande fonte de trabalho para muito mais mulheres. Este será apenas um dos que a gente vai conquistar, porque trabalho, força de vontade, energia e persistência nós temos”, conclui.
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