Assim, a classificação indígena usa várias características para identificar plantas, fazendo com que muitas vezes os resultados sejam semelhantes, podendo ocorrer de uma espécie corresponder a um único nome indígena, ou ao contrário, um nome indígena pode corresponder a mais de uma espécie.
Conhecimentos indígenas para a cura de doenças e o uso de ervas para fins medicinais.
Os índios brasileiros encontram no mato as soluções para suas enfermidades e necessidades de autocuidado.
A prática da medicação e uso de remédios caseiros proporcionam benefícios para as doenças e promovem o “saber” sobre a flora em que vivem.
O conhecimento indígena pode ser definido como um conjunto cumulativo de crenças e conhecimentos que são transmitidas de geração em geração em sua comunidade, pela transmissão cultural sobre as relações existentes entre os seres vivos e o seu ambiente.
Os indígenas possuem um vasto conhecimento etnobotânico, capazes de fazer classificações e associações, o qual foi descrito por Levi-Strauss:
"Os indígenas têm um aguçado senso das árvores características, dos arbustos e das ervas próprias de cada "associação vegetal", tomando essa expressão em seu sentido ecológico.
Eles são capazes de enumerar nos mínimos detalhes e sem nenhuma hesitação as árvores próprias para cada associação, o gênero de fibra e de resina, as ervas, as matéria-primas que fornecem, assim como os mamíferos e pássaros que freqüentam cada tipo de habitat.
Na verdade, seus conhecimentos são tão exatos e detalhados,
que sabem também nomear os tipos de transição...Para cada associação,
meus informantes descreviam sem hesitar a evolução sazonal da fauna e dos recursos alimentares."
Preparação de bebidas para alimentação e rituais.
Os índios brasileiros produzem bebidas fermentadas a partir de cereais e raízes vegetais, conhecidas por cauim, caxirim ou chicha na literatura etnológica.
A bebida fermentada é muito utilizada para momentos recreativos como as festividades e rituais, mas também pode desempenhar um papel de caráter alimentício ao invés de somente tóxico.
Os indígenas também produzem bebidas à base de frutas, uma importante fonte de matéria-prima para a fabricação de bebidas alcoólicas, como relatado por Américo Vespúcio na sua primeira viagem ao Brasil em 1500, em que dizia que os indígenas daquela terra bebiam um
vinho feito de frutas e sementes do mesmo modo que eram feitas as cervejas europeias.
No ano de 1612, o monge francês capuchinho Claude d’Abbeville passou quatro meses entre os índios Tupinambás e escreveu o seu relato de experiência em 1614 no livro intitulado Histoire de
la Mission de Pères Capucins en l’Isle de Maragnan et terres circonvoisins (História da Missão dos Padres Capuchinhos na Ilha do Maranhão e Terras Circunvizinhas).
Neste livro, Abbeville conta que
os Tupinambás eram grandes consumidores de vinho de frutas, principalmente vinho feito a partir da fruta caju:
"Quando maduro, expremem os Índios o succo e especialmente do Cajúpiran para fazer vinho, a que dão o nome de- Acaiu-cauin, branco e saboroso, e também outro, ja de segunda qualidade porem azedo.
Tiram pelo menos tanto succo de um só fructo como nós aqui extrahimos de um caixo de uva, e ainda se pode comer o bagaço que fica tão bom como si não fosse amassado. Em toda a parte encontram-se facilmente cajús."
A este liquido chamam Caju-Cauiu, parece-se com o vinho branco, e é muito bom, e tão forte como os bons vinhos brancos de França, e quanto mais se usa d’elle, melhor se acha.
No ritual de culto aos mortos Kikikoi, da etnia Kaingang, é consumido uma bebida fermentada chamada kiki, que consiste na mistura de milho, pinhão, água, mel e algumas frutas.
A fonte de levedura (micro-organismos) usada no ritual consiste no milho e no pinhão, com adição de mel e frutas (suplementos) para aumentar os teores de açúcar e consequentemente o teor alcoólico.
Pe. Fernão Cardim (1540-1625) que, mesmo não lidando diretamente com a saúde dos irmãos, dedicou oito capítulos de sua obra “Do clima e terra do Brasil e de algumas cousas notáveis que se acham assim na terra como no mar” (Cardim, 1925) para descrever árvores e ervas de diferentes usos: empregadas na construção civil e naval, possíveis de serem consumidas e capazes de curar os distintos males que afetavam os colonos. Nascido em Portugal, o jesuíta chegou ao Brasil em meados de 1583, ao lado do governador Manuel Telles Barreto (1520-1588), do visitador geral, Pe. Christovão de Gouvea (1542-1622), e de outros irmãos da ordem (Garcia, 1925, p. 14).
Acompanhando o visitador geral pelos colégios situados em diferentes localidades – Bahia, Ilhéus, Porto Seguro, Pernambuco, Espírito Santo, São Paulo e Rio de Janeiro –, Cardim (1925) teve a oportunidade de desbravar e conhecer um pouco mais das particularidades de cada uma dessas regiões, bem como dos seus frutos e animais de caça. Ao se debruçar sobre as espécies vegetais, o letrado descreveu todos os elementos que compunham uma determinada planta, identificando os seus usos e, no caso das árvores frutíferas, demonstrando o aproveitamento de todas as partes do pomo, como cascas e sementes.
Para tratar das ‘árvores de fruto’, o religioso iniciou sua narrativa com o caju, “. . . fruta muito formosa [dos quais alguns são] amarelos, e outros vermelhos, e tudo é sumo: são bons para a calma, refrescam muito. . .” (Cardim, 1925, p. 57). Logo em suas primeiras linhas, Cardim apresentou algumas das qualidades do caju: uma fruta com capacidade refrescante, possivelmente pela sua natureza fria (Hue, 2008, p. 28).
Quem desejasse experimentar a fruta, deveria se voltar às suas árvores, “muito grandes e formosas”, de flores cheirosas e frutos de tamanho médio, como se fossem um “. . . repinaldo, ou maçã camoesa. . .” (Cardim, 1925, p. 57), pomos conhecidos entre os portugueses.
Sobre as castanhas de caju, Cardim (1925) afirmava serem tão saborosas, “. . . melhor[es] que as de Portugal. . .” e consumidas de diferentes maneiras: “. . . assadas, e cruas deitadas em águas como amêndoas piladas. . .” ou preparadas sob a forma de “. . . maçapães, e bocados doces. . .” (Cardim, 1925, p. 57).
Por meio dessas e de outras receitas de confeitaria, as castanhas brasílicas tornaram-se conhecidas na Europa e nos territórios africano e asiático, locais por onde essas sementes circularam desde finais do século XVI (Russell-Wood, 1998, p. 264).
As benesses do caju não se restringiam ao fruto e à sua castanha. Cardim (1925) alertava que a casca do tronco da árvore era mais terapêutica do que o próprio pomo, sendo considerada como o “. . . único remédio para chagas velhas. . .” (Cardim, 1925, p. 57), feridas materializadas sob a pele, decorrentes de ferimentos antigos. Para o procedimento médico, o religioso narrava que seria necessário tirar um pedaço da casca, triturá-lo e colocá-lo para cozer juntamente com alguma quantidade de cobre que estivesse disponível, deixando evaporar até que houvesse apenas um terço de água do cozimento.
Em sua breve descrição, o inaciano não apontou como o enfermo deveria fazer uso do preparo, banhando-se ou consumindo a água, apenas afirmava que, com o uso do tronco de caju, as chagas “saram depressa” (Cardim, 1925, p. 57).
Na culinária Karo Arara os alimentos são aqueles vindos da roça, da caça, da pesca e da coleta na floresta, na roça, os principais são o milho, a batata-doce, o cará, a mandioca.
O milho Karo, denominado milho verdadeiro, ou nosso milho, tem as seguintes espécies: milho branco, amarelo e, mais recentemente, o roxo.
Quanto aos produtos da caça, registramos neste livro a carne de jacaré, de porcão, tatu, paca, entre outros.
Suas receitas são obtidas através das coletas pela mata, destacam-se a castanha do Brasil, utilizada em várias receitas, e o gongo.
A folha da sororoca é parte importante para assados na brasa. Toda a comida Karo Arara é saudável, sem muito sal ou açúcar, sem frituras e é orgânica, sem agrotóxico.
Os Karo Arara não usam nenhum tipo de agrotóxico nos seus roçados.
Outra bebida usada pelos indígenas da Amazônia em seus rituais é a ayahuasca, conhecida também como caapi, yajé, natema, hoasca e vegetal.
A palavra ayahuasca tem origem na
língua indígena quíchua (ou quéchua) em que ‘aya’ significa “pessoa morta, espírito” e ‘huasca’ significa “corda, cipó”, ou seja, “corda dos mortos” ou “corda dos espíritos” em português.
A bebida é composta pela cocção de plantas essenciais: o caule do cipó mariri (Banisteriopsis caapi), e as folhas da planta chacrona (Psychotria viridis) e da planta chaliponga (Diplopterys cabrerana).
O papel fundamental da ação do chá é a inibição reversível da MAO, portanto, para a preparação da ayahuasca é necessário a mistura do caule com as folhas, formando uma associação sinérgica, pois os alcaloides β-carbolínicos presentes no cipó mariri inibem a enzima MAO,
normalmente encontrada no fígado, no sistema nervoso e trato gastrointestinal, que degrada naturalmente neurotransmissores e aminas exógenas que apresentam perigo.
Assim sendo, haverá o impedimento da degradação do alcaloide DMT no trato gastrointestinal, deixando o fármaco biodisponível para ser absorvido, provocando a ação alucinógena no sistema nervoso central.
A mandioca e o seu desenvenenamento para consumo.
A mandioca (Manihot esculenta) é uma planta alimentícia de extrema importância para o habitante da América do Sul, domesticada na Amazônia há quatro ou cinco mil anos e cultivada até hoje em diversos países.
Segundo Albuquerque, a mandioca era usada em diferentes empregos, como alimentação, bebida alcoólica e remédios.
É conhecida por diversos nomes em
diferentes regiões como aipim, maniva, manaíba, uaipi, macaxeira ou carim.
É um alimento rico em amido e fornece diversos subprodutos (farinha, tapioca, beiju, bebidas, bebidas fermentadas), é rica em vitamina A e aminoácidos, e pobre em proteína.
De acordo Albuquerque (2014), a mandioca era utilizada pelos indígenas em diversos empregos, como alimento, bebida embriagante, veneno, remédio e como presente para mortos e vivos.
Algumas dessas utilidades, como o alimento e o veneno foram citadas na carta de José de Anchieta para os padres e irmãos pertencentes à Companhia de Jesus de Portugal no ano de1555:
"O principal mantimento desta terra é uma farinha de pau, que se faz de
certas raizes, que se chamam mandioca, as quais são plantadas e lavradas a êste fim, e se se comem cruas ou assadas ou cozidas matam, porque é necessario deixá-las em água até que apodreçam, e depois de apodrecidas se fazem em farinha: êste é o principal mantimento, com alguns legumes e folhas de mostarda."
O procedimento padrão do desenvenenamento da mandioca por índios da Amazônia inclui processos que se pode identificar como mecânicos, bioquímicos e hidráulicos.
Trata-se da transformação de um tubérculo com alto grau de toxicidade em farinha torrada, que consiste em amido e outros subprodutos.
Primeiramente, a raiz da planta é colocada na água do rio para uma leve fermentação ácida.
Isto ocorre para que os micro-organismos ou os produtos de seu metabolismo ataquem as paredes dos vacúolos das células em que estão depositados os glicosídeos cianogênicos, possibilitando que a linamarina entre em contato com a enzima linamarase, permitindo que mais ácido cianídrico seja liberado.
Os micro-organismos gerados na fermentação também produzem a enzima linamarase, que decompõem a linamarina, e devido ao baixo valor
do pH, a atividade da enzima existente na planta aumenta.
Assim, com a diminuição do pH, o equilíbrio dissociativo do ácido cianídrico é deslocado na direção do HCN, e o HCN indissociado é removido do líquido.
Depois de exposto à água, deve-se remover as cascas do tubérculo,
pois nelas estão a maior concentração dos glicosídeos cianídricos.
Após serem retiradas do rio, as raízes são descascadas e raladas, transformando-se em farinha úmida e grossa.
Em seguida é usada uma grande invenção indígena: o tipiti, que consiste num tubo trançado de palha (folha de palmeira ou marantáceas) no qual se introduz a polpa de mandioca brava ralada e depois espreme e torce para eliminar o suco venenoso (ácido cianídrico) da raiz.
Em sua viagem pela Amazônia no início do século XX, o explorador alemão Theodor Koch Grünberg descreveu a utilização do tipiti pelos índios:
"Da massa branca [da raiz ralada de mandioca], que se parece com batata ralada, se remove o sumo tóxico, que contém ácido cianídrico, por meio de uma mangueira cilíndrica de palha trançada ou amassando-a longamente em uma peneira fina, colocada sobre uma armação de madeira triangular, dobrável.
A mangueira – trançada com tiras de taquara resistentes, mas muito elásticas (tipité) – que foi recheada com a massa, está pendurada em uma viga proeminente da casa e é pressionada por um peso pendurado no anel inferior ou por um sarrafo para fazer pressão sobre o qual às vezes se senta a família toda.
Com isso, a mangueira é esticada e espreme o sumo tóxico para fora, que escorre para um recipiente de argila colocado por baixo.
A farinha obtida após todo o processo pode ser conservada por meses, sendo servida com peixe, carne ou hortaliças.
O líquido tóxico liberado do escoamento no tipiti é reaproveitado de duas maneiras: usado para produção de tucupi, ou manipueira, ou é usado na conservação de carne.
Para a produção de tucupi, deixa-se exposto por alguns dias ao sol até fermentar, para que se remova mais ácido cianídrico.
Em seguida, se cozinha o líquido até surgir um sumo ácido amarelado que
foi chamado de tucupi, e é usado como molho para culinária.
Os índios também consomem a
folha da mandioca brava, chamada de kumí.
Durante a colheita, as folhas mais novas são escolhidas por possuírem menos veneno.
Antes do cozimento as folhas são socadas num pilão, em seguida fervidas com água juntamente com uma colher de pau (para “puxar” o veneno).
Depois é escoada toda a água, para eliminação do veneno, sendo utilizada para sopa (chamada maniçoba) ou ser frita em óleo.
Os procedimentos de desenvenenamento da mandioca e a produção de tucupi são exemplos de processos com múltiplas etapas para a transformação de substâncias desenvolvidas pelos indígenas da Amazônia.
Muitas substâncias foram descobertas por estes indígenas e hoje são usados na farmácia moderna, como o alcaloide pilocarpina presente no arbusto do jaborandi (Pilocarpus microphyllus), o arbusto da coca (Erythroxylum coca), o quinino encontrado no arbusto quinquina (Cinchona officinalis), entre outros.
Indígenas brasileiros e o uso das plantas: saber tradicional, cultura e etnociência.
Por Jéssica da Silva Gaudêncio
Doutoranda em História das Ciências e Educação Científica
Universidade de Coimbra
jessigaudencio@hotmail.com
Sérgio Paulo Jorge Rodrigues Décio Ruivo Martins
Doutor em Química Doutor em História e Ensino de Física
Universidade de Coimbra (FCTUC) Universidade de Coimbra (CEFIsUC)
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