Como os Guarani de São Paulo estão voltando a plantar seus cultivos ancestrais

Como os Guarani de São Paulo estão voltando a plantar seus cultivos ancestrais

por Patricia Moll

No extremo sul da cidade de São Paulo, indígenas Guarani conseguiram recuperar terras degradadas antes usadas para a monocultura de eucalipto.

Recolhendo sementes de aldeias de outros estados e países, os indígenas chegaram a plantar mais de 200 variedades livres de qualquer transformação gênica.

Entre os plantios, há nove tipos de milho, quinze de batata-doce, quatro de amendoim e ainda frutas nativas da Mata Atlântica como juçara, araçá, jaracatiá, cambuci e pitanga.

A agricultura é a base da sociedade Guarani. Plantar estas sementes, para os indígenas, significa fortalecer não só o físico, mas também o espírito. Os mais idosos costumam dizer que a comida de juruá, ou não indígena, não nutre.

“Até os meus 22 anos, eu nunca tinha visto esses milhos coloridos, só o milho Tupi, esse amarelo que é padrão da cidade. E hoje a gente tem aí no território mais de nove variedades de milho Guarani, quinze tipos de batata-doce, muitas frutas nativas. E as pessoas estão cada vez mais interessadas em fortalecer a nossa agricultura tradicional”.

O depoimento acima é de Jerá Poty Mirim, agricultora, pedagoga e uma das lideranças Guarani Mbya da Terra Indígena Tenondé Porã, no extremo sul da cidade de São Paulo.Ela é moradora da Kalipety, no distrito de Parelheiros, uma das catorze aldeias desta TI, que teve seus limites reconhecidos pela Funai em 2012, quando foram identificados 16 mil hectares de terras Guarani. Mas foi apenas em 2016 que o território foi declarado para usufruto exclusivo da comunidade. Jerá conta que, quando era criança, cerca de 1.500 indígenas viviam em uma pequena área de 26 hectares e não havia espaço suficiente para plantarem.

Foi somente depois da demarcação que os Guarani puderam iniciar a retomada de sua agricultura tradicional. Isso aconteceu nas várias aldeias que surgiram com a posse definitiva da terra, como Tekoa Porã, Tenondé Porã, Tape Mirī e Yporã. Onde hoje está a aldeia de Jerá havia antes uma área bastante seca e degradada, por conta de décadas de monocultura de eucalipto. Daí o nome Kalipety, palavra em idioma Guarani para “roça de eucalipto”.

Ty é uma partícula usada para se referir ao tipo de plantio. Segundo Jerá, muitos indígenas sentiram vergonha do nome, principalmente as crianças, que  o comparavam com o de outras aldeias, mais bonitos. “A gente tentou alterar para Jetyty, que seria ‘roça de batata-doce’, ou Kalipety Mirim, mas não pegou. Parece que não vai mudar nunca mais”, queixa-se Jerá, rindo.

“Até os meus 22 anos, eu nunca tinha visto esses milhos coloridos, só o milho Tupi, esse amarelo que é padrão da cidade. E hoje a gente tem aí no território mais de nove variedades de milho Guarani, quinze tipos de batata-doce, muitas frutas nativas. E as pessoas estão cada vez mais interessadas em fortalecer a nossa agricultura tradicional”.

O depoimento acima é de Jerá Poty Mirim, agricultora, pedagoga e uma das lideranças Guarani Mbya da Terra Indígena Tenondé Porã, no extremo sul da cidade de São Paulo.

Ela é moradora da Kalipety, no distrito de Parelheiros, uma das catorze aldeias desta TI, que teve seus limites reconhecidos pela Funai em 2012, quando foram identificados 16 mil hectares de terras Guarani. Mas foi apenas em 2016 que o território foi declarado para usufruto exclusivo da comunidade. Jerá conta que, quando era criança, cerca de 1.500 indígenas viviam em uma pequena área de 26 hectares e não havia espaço suficiente para plantarem.

Foi somente depois da demarcação que os Guarani puderam iniciar a retomada de sua agricultura tradicional. Isso aconteceu nas várias aldeias que surgiram com a posse definitiva da terra, como Tekoa Porã, Tenondé Porã, Tape Mirī e Yporã. Onde hoje está a aldeia de Jerá havia antes uma área bastante seca e degradada, por conta de décadas de monocultura de eucalipto. Daí o nome Kalipety, palavra em idioma Guarani para “roça de eucalipto”.

Ty é uma partícula usada para se referir ao tipo de plantio. Segundo Jerá, muitos indígenas sentiram vergonha do nome, principalmente as crianças, que  o comparavam com o de outras aldeias, mais bonitos. “A gente tentou alterar para Jetyty, que seria ‘roça de batata-doce’, ou Kalipety Mirim, mas não pegou. Parece que não vai mudar nunca mais”, queixa-se Jerá, rindo.

Os Guarani da Tenondé Porã contaram com a assistência de diversos programas e instituições para a recuperação dos solos, uma vez que o eucalipto tem uma raiz profunda e puxa água em excesso do lençol freático. Depois, foram em busca de sementes de espécies nativas para plantar na terra renovada. Para isso, estiveram em feiras de trocas e pediram exemplares a parentes de outras aldeias, viajando inclusive a outros estados e países, como Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, Rio de Janeiro e Argentina.

Uma vez obtidas as sementes, os plantios aconteceram por meio de mutirões. Neste processo, participam indígenas de todas as idades e gêneros da aldeia, onde vivem cerca de 90 pessoas.

A agricultura é a base da sociedade Guarani. A vontade de realizar esse resgate, portanto, era enorme. Porque plantar estas sementes simboliza muito para a etnia. Significa fortalecer não só o físico, mas também o espírito. Os mais idosos costumam dizer que a comida de juruá, ou não indígena, não nutre. Ainda mais a industrializada ou multiprocessada.

Segundo os anciãos, os verdadeiros alimentos são variedades de cultivos ancestrais que as divindades possuem em suas moradas celestes. Consumi-los ajuda a manter os corpos humanos saudáveis, à semelhança dos seres divinos.

No livro Os agricultores Guarani e a atual produção agrícola na Terra Indígena Tenondé Porã no Município de São Paulo, organizado pelo antropólogo Lucas Keese dos Santos e o agroecólogo José Eduardo Oliveira, diz-se que “o nhandereko, modo de viver Guarani, são práticas e saberes guardados como um tesouro, assim como suas sementes. É através desses ensinamentos, passados de geração em geração, que se encontra a potência da agricultura, tão resiliente quanto seu povo”.


Luta pela soberania e segurança alimentar

Somando a sabedoria dos mais velhos ao suporte técnico, que incluiu princípios da agroecologia e permacultura, os Guarani fizeram grandes conquistas rumo à soberania e à segurança alimentar. 

O processo ocorreu com o apoio do Programa Aldeias, uma iniciativa proporcionada pela Secretaria Municipal de Cultura da Cidade de São Paulo e implementada junto às comunidades pela organização do Centro de Trabalho Indigenista (CTI).

Hoje, no território, são encontradas mais de 200 variedades livres de qualquer transformação gênica. Entre os cultivos ancestrais e pré-coloniais replantados, estão nove tipos de milho, quinze de batata-doce, quatro tipos de amendoim — um preto e outro grande com linhas vermelhas —, feijão, erva-mate, pinhão, a chamada “caninha Guarani” (uma cana bem fininha), e várias frutas nativas da Mata Atlântica como juçara, araçá, jaracatiá, cambuci e pitanga, a maioria ameaçada de extinção cultural e ambiental. E seguem multiplicando.

Havia um mito que o milho, ou avaxi, base da alimentação Guarani, não dava naquela terra. Atualmente, por sua vez, ele é encontrado em múltiplos tamanhos e cores, como azul, vermelho, branco, preto e mesclado.

As muitas variedades de cada um dos alimentos tradicionais, segundo a mitologia Guarani, mostram como as divindades criaram o mundo, desdobrando uma espécie a partir da outra, tornando-as eternas pela renovação. Considerado sagrado, o milho passa por inúmeros rituais e bênçãos desde o plantio, quando se canta para os grãos, até a colheita, momento em que a aldeia se junta para festejar e comer junto. O receituário inclui dezenas de preparos, dos antigos a alguns contemporâneos introduzidos pelos mais jovens.

Os almoços coletivos viraram verdadeiros banquetes na Kalipety. Na visita da Mongabay, em um dia comum durante a semana, foram servidos milho socado e cozido em caldo de frango, feijão preto ensopado com canjica, arroz, feijão, salada, frango e cabeça de tilápia ensopada, considerada a parte mais nobre do peixe, bastante apreciada pelos Guarani, além de mingau de milho com mel. Durante a manhã, a cozinha é tomada essencialmente por mulheres e cada uma é responsável por algum prato. Em seguida, todos se sentam para comer juntos, começando pelas crianças.

Se o almoço é esta fartura, o jantar é bem mais leve e acontece ao final da tarde. Diariamente, das 18h à aproximadamente 01h da manhã, os indígenas se encontram na casa de reza. “Sempre vai ter nas aldeias Guarani uma casa de reza, ponto principal de uma aldeia. Tudo acontece lá: batizados, casamentos, velórios, curas. A gente passa a noite dançando, tocando, cantando e rezando”, diz a agente ambiental e também liderança, Vera Popygua.

“Eu diria de uma forma muito feliz que estamos resgatando nossa cultura e soberania alimentar”, comemora Jerá. “Nunca mais compramos milho, batata-doce, abóbora, banana. Gostaria de ver esse movimento se ampliar. E que as pessoas na aldeia queiram comer uma macarronada por mera opção, não porque não tenham o suficiente da sua própria comida tradicional, saudável e sem veneno.”

É importante contextualizar que os Guarani não plantam com a intenção de comercializar ou enriquecer, mas para a própria subsistência e, principalmente, para fortalecer a cultura de seu povo. Faz parte dos valores da etnia também o mborayvu, ou generosidade, que é o próprio fundamento da vida comunitária. O excedente costuma ser compartilhado com outras aldeias.

Os Guarani acreditam no princípio de que se deve viver com o suficiente. “Isso significa não acumular e acelerar tudo. Porque, se você destruir a natureza, não vai ter futuro nem pros seus filhos, muito menos pros seus netos”, provoca Jerá. “A agricultura Guarani é um exemplo pros juruá de que é possível comer sem destruir a natureza. Ainda mais São Paulo, umas das metrópoles que mais consomem os recursos naturais desse planeta. Uma hora a política do país tem que começar a observar nosso modelo e se espelhar nos povos indígenas.”

Esta pauta, inclusive, pode parecer distante para de uma cidade como São Paulo, mas não é. Aproximadamente 30% do município guarda características rurais e, se ainda existe Mata Atlântica no território, muito devemos a este povo, que também está presente na Terra Indígena Jaraguá, a noroeste da cidade.

Jerá vai além: segunda ela, falta também o reconhecimento de que grande parte da comida consumida na metróopole vem da sabedoria indígena. A partir do milho, por exemplo, os paulistas aprenderam com os povos originários a fazer farinha, pamonha, curau, broa e canjica, só para citar alguns pratos.

Mesmo com tantos obstáculos e desafios relacionados principalmente à privação territorial que os Guarani ainda enfrentam, todo este caminho precisa ser comemorado. Com espaço para plantar e o resgate da agricultura tradicional, a cada ano este povo faz mais avanços.

Além disso, o processo reúne toda a aldeia, que tem se mostrado bastante entusiasmada e envolvida. Os mais velhos estão felizes porque fazia tempo que não plantavam e agora podem compartilhar ensinamentos com os mais jovens. E esses também estão animados por ganharem mais uma perspectiva de futuro.

Os bancos de sementes que conservam o futuro da alimentação no Brasil

Imagem do banner: Indígenas Guarani debulhando o milho na aldeia Kalipety, TI Tenondé Porã (SP). Foto: Fellipe Abreu.

Comentários

Postagens mais visitadas