Filosofia Africana: um estudo sobre a conexão entre ética e estética
Obras como a Filosofia e Tradição Oral de 1997 e a Feitiçaria, Reencarnação de 1992 e a divindade de Deus atestam sua missão de corrigir os pressupostos que sustentavam o sistema de ensino colonial – criado pelos ingleses – sob o qual Sophie Oluwole foi ensinada.
“Eles diziam que os africanos não podiam pensar”, disse Oluwole ao jornal Punch, “que não éramos pensadores, que éramos primitivos”.
Eu me senti desafiada e disse que ia descobrir se realmente não podíamos pensar. Eu queria provar que eles estavam errados. Quando criança, mesmo na escola secundária, a palavra filosofia era alheia a Oluwole. Aos olhos dos mestres coloniais, não havia filosofia africana.
Os povos africanos têm uma forma particular de viver e expressar o mundo que os caracterizam.
Essa forma e cosmovisão de mundo embasa o constructo ético-filosófico africano e S. B. Oluwole tem sólido trabalho sobre Filosofia Africana e nesta obra coloca o Ifá e a tradição oral Yorubá em destaque e como ponto de partida para explicar a cosmovisão africana.
No artigo Filosofia Africana: um estudo sobre a conexão entre ética e estética, *Naiara Paula, apresenta características e novos fatos para uma comparação entre Sócrates e Òrúnmìlà, como dois grandes Mestres da tradição ocidental e Africana, respectivamente.
O Culto de Òrúnmìlà-Ifá é originário da África Ocidental e, mais especificamente, da cultura Yorubá que concebe o mundo como formado por elementos físicos, humanos e espirituais.
Os elementos físicos amplamente divididos em dois planos de existência: ayé (terra) e òrun (céu), que durante uma fase ancestral da mitologia compartilhavam um território comum.
Assim, para a compreensão da filosofia de Òrúnmìlà-Ifá é fundamental a análise interpretativa da cosmovisão própria, com arcabouço complexo de divindades hierarquizadas a partir de um Ser Supremo: Òlódùmarè que lidera e organiza a estrutura e o movimento entre o céu e a terra, mobilizando no sentido do bem e da paz as demais arqui-divindades, ancestrais, fenômenos da natureza e orisá.
A ancestralidade é destaque nessa cultura. A figura do ancestral, uma pessoa ou entidade reverenciada por suas virtudes e ensinamentos éticos, geralmente, anciãos que repassam valores de geração a geração firmando uma forte característica de tradição oral com princípios voltados para a formação do bom caráter, da convivência harmoniosa e de respeito ao outro e a natureza.
No trabalho de Oluwole, contudo, é importante compreender que Òrúnmìlàe as outras figuras do Corpus Literário Ifá não são deuses no significado ocidental do termo, também não apenas figuras mitológicas, como são deuses no Monte Olimpo na tradição grega e sim, nesta pesquisa, a autora, nos leva a entender Òrúnmìlà como ser humano histórico, que foi reverenciado e "deificado" após sua morte, por causa de sua contribuição para a filosofia, ciência política e diversos conhecimentos que aprimoraram o conjunto de saberes do povo.
Tendo realizado extensa pesquisa sobre Òrúnmìlà, Oluwole apresenta características importantes de arcabouço filosófico deste Mestre e seus ensinamentos sobre a “vida plena” do indivíduo e sociedade e faz um paralelo com a produção socrática sobre a “vida boa”.
Oluwole reconhece a contribuição Socrática para a construção do conhecimento ético com sua preocupação da constituição individual e social, mas enfatiza que esta visão não é exclusiva do conhecimento ocidental e ainda mais, mesmo a produção filosófica ocidental posterior não deu conta do vácuo conceitual que existe, por exemplo, na concepção atual de direitos humanos. Ainda após a fase iluminista, a cisão entre sujeito e objeto (“um ou outro”) oblitera a formatação de direitos que possam ser estabelecidos como fundamentais e inalienáveis, daí a necessidade de estabelecimento de um outro arcabouço lógico, não excludente. Afirma a pensadora:
◇A demanda intelectual por um axioma científico em termos do qual os Direitos Humanos sejam justificados racionalmente, precisa ser satisfeita.
◇A questão é que, enquanto a realidade é identificada e formulada dentro estruturas conceituais de oposições binárias, com um inerente “um ou outro”, assumido no sentido exclusivo, em que toda e cada existência não é apenas independente da outra, mas em oposição a isto, não pode haver racionalmente interesse e obrigação inalienável por parte de um indivíduo de reconhecer e respeitar a existência e igualdade de direitos de outros seres humanos.
A partir dessas reflexões iniciais, Oluwole revela seus argumentos contra um jogo de oposições que se constituem um verdadeiro paradoxo para a experiência humana, uma vez que todo fenômeno pareado (binário) existe independentemente do outro e, na visão Africana, complementarmente ao outro.
Assim, a filosofia africana pode contribuir para superar a oposição binária via a Complementaridade Binária, sua proposta trata-se de um conceito que reabilita uma visão de mundo sistêmica e integrada, capaz de fazer o ser humano se entender e se colocar sempre “em relação a”, como explica a pensadora: “... como pode a ‘cara’ e a ‘coroa’ de uma moeda existir independentemente uma da outra?
Quão significativa é a ideia de uma montanha que não é complementada pela ideia de um vale?
O lado frontal de uma medalha existe separadamente da parte de trás?
O fato de que cada aspecto pareado dessa existência apareça como o oposto do outro, não justifica a crença de uma existência independente ou ainda, o funcionamento correlato de duas existências de oposição irreconciliável.
A experiência humana é da existência pareada com aspectos complementares entre si”.
Após reconhecer o que há de mais original africano se desvela na filosofia africana ancestral, a jornada deste texto continua com Dona Marimba Richards que estabelece em seu texto uma relação entre a espiritualidade com as necessidades políticas dos povos africanos, entendendo que as possibilidades dessa relação estão na natureza da estética africana.
Richards nos leva a refletir em qual medida a ética da “vida plena” ou ideal de vida estético “em interconexão” pode contemplar as demandas políticas para sedimentação de uma consciência nacional Africana, especialmente após a diáspora africana, assim diz a autora:
Uma consciência nacional é uma consciência política na qual os membros de um grupo se compreendem como compartilhando um destino comum, baseado em uma história cultural compartilhada e em uma origem radical.
Uma consciência nacional Africana existe quando nos identificamos com a África como um ponto de origem simbólico, um princípio maternal ou criativo, que determina nosso ser coletivo.
A proposta de Dona Marimba Richards é muito desafiadora, foca em como promover consciência nacional após o epistemicídio secular que negou e mesmo, bloqueou acesso inúmeros conhecimentos formadores de identidade do povo Africano, questão discutida por muito pesquisadores da diáspora Africana, como Ramose:
Os conquistadores da África durante as injustas guerras de colonização se arrogaram a autoridade de definir filosofia.
Eles fizeram isto cometendo epistemicídio, ou seja, o assassinato das maneiras de conhecer e agir dos povos africanos conquistados [...] que não nivelou e nem eliminou totalmente as maneiras de conhecer e agir dos povos africanos conquistados, mas introduziu, entretanto, e numa dimensão muito sustentada através de meios ilícitos e “justos”, a tensão subsequente na relação entre as filosofias africana e ocidental na África.
A base fundamental da resposta a esse desafio, segundo a autora, é a retomada do eixo estruturador e estruturante da civilização Yorubá, e aproximação ao princípio originário da ancestralidade Òrúnmìlà-Ifá que leva as pessoas a formarem a consciência de si e que dirige a vida da comunidade, assim, um conjunto ético que repercute nas produções estéticas africanas.
Ao longo de seu projeto, a autora introduz alguns termos africanos buscando “africanizar” a conceituação de forma crescente na perspectiva de afrocentricidade.
Richards propõe uma reconceitualização de "estética" com base espiritual, para ser fiel ao utamaroho africano (vida espiritual). E afirma o Kugusa Mtima (tocar o coração) como um termo Africano de apoio ao entendimento e afirmação de africanidade.
Trata-se da experiência africana de ser mobilizado e sensibilizado pelos fenômenos de forma autoconsciente, com tremenda capacidade de transformação da realidade.
A concepção ética africana
A extensa pesquisa de Oluwole sobre Socrates e Òrúnmìlà mostra que existem semelhanças surpreendentes, ambos viveram em épocas próximas, cerca de 500 a. C. , também tiveram discípulos a quem transmitiram seus ensinamentos sobre virtudes como o ideal de vida plena (ou vida boa) e viviam em centros de vida intelectual e social de seus povos à época: Atenas na Grécia antiga e Ile-Ife, respectivamente.
Tudo o que sabemos sobre eles advém de fontes secundárias, o que dá a esses dois Mestres um certo caráter lendário ou mesmo, mítico. Tais similaridades são detalhadamente explanadas na Introdução da obra.
O mais inovador dessa comparação é, sem dúvida, a confrontação sobre as produções e ensinamentos desses Mestres, sinalizando um conjunto teórico, de visões e ideias muito similares, que a autora explicita em um quadro comparativo com as principais questões do pensamento desses patronos.
Os achados de Oluwole evidenciam que Òrúnmìlà desenvolveu uma Filosofia dentro do Sistema Africano tradicional de pensamento de forma tão crítica e rigorosa quanto Sócrates, que inclui até mesmo, as bases de Álgebra e de Geometria.
Deste modo, Oluwole rebate a posição Ocidental que negam a existência de critérios, racionalidade e conteúdo crítico e científicos na Filosofia Africana e mesmo de alguns poucos estudiosos africanos como Kwasi Wiredu, Kwame Gyekye, Gerald Joseph Wanjohi, Peter O. Bodunrin, entre outros, que apontam um alto grau de abstração no corpus da produção do conhecimento tradicional africano.
Em suas conclusões, Oluwole esclarece como Sócrates, o Patrono da Filosofia ocidental clássica, faz distinções binárias na produção de sua Filosofia, criando um jogo de oposições que separa corpo e mente, imanente e transcendente e, porque não dizer, um mundo do lado de cá e outro do lado de lá - um mundo sensível e outro inteligível - ou seja, a realidade dividida em duas partes: o mundo sensível (mundo material), mediado pelas formas autônomas que encontramos na natureza, e que percebemos pelos sentidos; e o mundo das ideias (realidade inteligível) denominado de “mundo ideal”.
Assim, aproxima-se da ideia de perfeição de algo aquilo que alcança a elevação do mundo das ideias, em que se observa já a aproximação com um ideal estético.
Essa visão de mundos desarticulados em uma cisão vai impactar a produção filosófica de muitas gerações de filósofos no Ocidente por séculos posteriores.
Por outro lado, Òrúnmìlà, o patrono da filosofia africana clássica, tem como premissa uma cosmovisão abrangente e interconectada, que a autora passa a nomear como “Complementaridade binária”. Oluwole sinaliza este achado como uma grande contribuição da filosofia africana para a humanidade. Trata-se de um modo de pensar e visão de mundo sem cisão, ou ainda, de dois mundos em permanente relação.
Superar a cisão proporciona perceber-se a si e o outro sem oposições. Também leva a perceber o outro como condição necessária para a minha própria existência como ser humano, em uma forma ancestral de fraternidade universal - mas com outro entendimento acerca do que seja universal - talhado naquilo que é comum a todos e que inclui todas as formas de vida e a própria Natureza.
A mesma concepção também pode ser encontrada no termo “Ubuntu” como termo fundamental da filosofia africana, amplamente estudado por Mogobe Ramose da Universidade da África do Sul, que desenvolveu Filosofia Africana através do Ubuntu.
Oluwole também faz referência a provérbios “bantu” redescobertos por Ramose por expressar o núcleo da filosofia do Ubuntu e do conceito de complementaridade binária, evidenciando que as bases filosóficas africanas pressupõe um mundo em interconexão e não fragmentado.
Assim diz Ramose:
A lógica de Ubuntu é em direção ao sufixo formador de substantivos abstratos (dade). Esta lógica se coloca em oposição ao dogmatismo do raciocínio fragmentado. Um dos primeiros princípios da ética ubuntu é a libertação do dogmatismo.
É flexibilidade orientada para o equilíbrio e para a harmonia no relacionamento entre seres humanos, e entre os últimos e o mais abrangente ser-sendo ou natureza.
Transcrevo aqui alguns do provérbios “bantu” investigados por Ramose que Oluwole aponta como exemplo de metáforas socias, resultado inerente da Complementaridade Binária:
1. Umuntu ugumuntu nga bantu
Ser um ser humano é afirmar a própria humanidade reconhecendo a humanidade dos Outros, e com base nisso, estabelecer relacionamento humano com eles
2. Motho gase mphshe ga a tshewe sesotlho
Nenhum ser humano pode ser tão inútil.
3. Kgosi ke kgoSi batho
A fonte e justificação do poder real é o povo.
4. Molato ga o bole
Justiça significa a restauração do equilíbrio perturbado.
5. Feta kgomo o tshware motho
Quando uma escolha deve ser feita entre preservar a vida e integridade de um ser humano ou construir riqueza, então o primeiro deve ser preferido e prevalecer.
Os achados e proposta de Oluwole sintonizam com a proposta de Marimba Richards para uma retomada do vínculo espiritual que favoreça a formação de uma consciência nacional, um vínculo que está acima de oposições binárias.
Dona Marimba Richards estabelece a relação entre a espiritualidade com as necessidades políticas dos povos africanos, uma relação de natureza da estética que se faz a base para a formação da consciência individual que se desdobra em consciência nacional e política, compartilhada.
A visão filosófica do Yorubá conserva o aspecto metafísico que reflete e aprofunda a sensibilidade para o sagrado.
As vivências, experiências de vida e de mundo mantém a abertura espiritual na produção filosófica e reverbera no aprimoramento do autoconhecimento pessoal e na convivência ético-comunitária múltipla: relação do indivíduo consigo mesmo, com o outro e com a natureza.
Um estado de completude que amalgama o aspecto humano e divino do indivíduo, de repercussões ético-estéticas, que foca no aprimoramento do indivíduo e suas relações e que, em algum grau impõe uma certa dificuldade de entendimento por parte de quem está mergulhado no modelo lógicofilosófico ocidental.
Entender que Òrúnmìlà não faz uma ruptura entre o imanente e o transcendente, que se dão em uma espécie de continuidade, oportuniza que o indivíduo tome “conhecimento de si” “em relação a”, apoia que o indivíduo seja consciente do seu pertencimento, através do processo de autoconhecimento contínuo, de autoavaliação, de discernimento e revisão dos seus valores.
Essa consciência de si mesmo está afinada com um tipo de vida filosófico pautado no bom caráter, no bem comunitário, na bondade e na convivência harmoniosa com todos os seres.
Essa condição de existência possibilita o alcance da felicidade compartilhada, o encontro consigo mesmo e a plenitude de uma consciência voltada ao sagrado em um conjunto Ético-Estético amplificado, inclusivo e abrangente.
O sagrado reconsiderado como dentro do mundo, o lugar do mistério preservado. Diz Marimba Richards:
Nesse sistema conceitual limitado [ocidental], “estética” é entendida como “conceito de beleza”. Se pretende lidar com “gosto” e apreciação do “belo”.
A “Estética” lida com teorias do caráter essencial do “belo” e como ele pode ser julgado. A discussão europeia de “estética” torna-se analítica; o pathos (do grego – paixão) é intelectualizado; o mistério negado.
O foco se torna o julgamento e a crítica.
Novo cânone filosófico
Paradoxalmente, Sócrates continua a ser estudado em África. Ọ̀rúnmìlà e gerações inteiras de seus descendentes são acusados de prática de “feitiçaria”, desqualificando-se o seu saber. Para Sophie Oluwole tal situação é deplorável. Por essa razão, exige-se com urgência um novo cânone filosófico para ensinar os jovens africanos a pensar de forma endógena sobre o seu legado cultural e intelectual.
*Naiara Paula- Filosofia Africana: um estudo sobre a conexão entre ética e estética
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