Conheça Mãe Cristina, que alimenta sua comunidade com comida de Santo e empatia
Imagem: arquivo pessoal Mãe Cristina.
Como boa filha de Iansã, Isabel Cristina Ribeiro Rosa está sempre em movimento. Aos 60 anos, ela é fundadora da premiada Associação Ojinjé, que dissemina as tradições de matriz africana em Navegantes, litoral norte de Santa Catarina, por meio do trabalho social, da arte e da comida. Seus quitutes são tão apreciados pela vizinhança que em 2021 ela lançou o livro “Culinária brasileira: sabores ancestrais”, tema sobre o qual poderia falar por horas.
Não à toa, Mãe Cristina, como é conhecida no candomblé, é uma das entrevistadas do podcast Alimentação Ancestral, lançado na última terça-feira (6) pelo Catarinas. O produto é fruto do “Alimentação ancestral: identidade cultural e orixalidade na comida afro-brasileira”, projeto selecionado pelo Prêmio Elisabete Anderle de Estímulo à Cultura – Edição 2021, executado com recursos do estado de Santa Catarina, por meio da Fundação Catarinense de Cultura.
Aqui você confere o bate-papo na íntegra. Acompanhe!
A senhora promove um diálogo entre ações sociais e cultura de terreiro. Como se deu essa aproximação?
Eu fui uma criança cuja certidão de nascimento dizia que era parda, e eu sempre me bati com isso, porque pardo é papel kraft, né? Poxa, eu não tenho essa cor. Isso foi uma coisa que me incomodou a vida inteira e ao mesmo tempo me fez acreditar que eu podia ir muito além do pardo. Eu fui criada por uma avó que teve muita força, que nos protegeu muito, mas que reproduzia frases racistas, talvez até pra nos proteger. Ela me disse que eu precisava me casar com um homem branco, como ela também ouviu a vida toda. Certa vez, em uma conversa de crianças, a minha prima disse que queria ser aeromoça e eu respondi que queria também, queria viajar pelo mundo. A minha vó me disse: ela pode porque ela é branquinha, você não pode. Essas coisas me marcaram, eu com 60 anos tenho essa lembrança, é como se fosse ontem.
E quando eu cheguei na comunidade terreiro, no candomblé, nossa! Ali eu me descobri. Ali eu descobri meu povo, minha gente, minha origem.
Eu descobri que pode existir algum país da África que não conheça o Brasil, mas não existe nenhuma parte do Brasil que não tenha a mão do povo africano.
Foi a partir do candomblé que a senhora se aproximou das lutas sociais?
Foi o candomblé que me deu o empoderamento de saber quem sou eu, de onde vim, qual é o meu papel e o que eu preciso fazer para que eu e aqueles que vivem no meu entorno tenhamos uma vida melhor. Eu não posso viver olhando só para o meu quadrado, a minha família é toda a família de axé, é toda a minha comunidade. Aqui no terreiro eu atendo crianças, seres humanos pretos, brancos, evangélicos, católicos, de umbanda, do candomblé, enfim, eu atendo gente. E tudo isso foi o candomblé que me ensinou.
Qual é o papel da comida nos terreiros de candomblé?
A comida é o que existe de mais sagrado. Tudo na comunidade de terreiro envolve o alimento. O alimento é santíssimo porque vem da terra. Ele é plantado e cultivado para alimentar todo o ebé, ou seja, toda a comunidade. Qualquer coisa que aconteça na comunidade terreiro tem comida. Samba de terreiro tem comida, reunião dos filhos tem comida, tudo aqui tem que ter comida.
E como se dão as sacralizações de animais?
O sacrifício de animais tem um papel importantíssimo no nosso sagrado, ele é litúrgico. E todos esses animais não são sacrificados para se colocar na encruzilhada. Isso não é nosso. O nosso sacrifício é rezado em formas de cantigas, depois é preparado na cozinha com muita cebola, camarão, enfim, nossos temperos, e aí é servido pra comunidade. A gente consegue alimentar muitas pessoas com essa comida porque tudo que vai no pé do orixá volta pra gente.
A gente comunga com os orixás, comemos do mesmo alimento. Eu sempre digo que a comida do orixá alimenta o sagrado e o profano, que somos nós.
Como a senhora analisa as polêmicas em torno das sacralizações realizadas em cultos de candomblé em um país que consome tanta carne?
Eu acho que é hipocrisia. Porque como você disse todo mundo consome muita carne, e não se sabe a origem do animal que se consome, nem de que forma ele foi morto. Mas você sabe a origem do animal que está dentro da comunidade terreiro. Você sabe de que forma foi sacrificado e o porquê. Então eu acho que a crítica é uma coisa do racismo religioso, da intolerância religiosa. Quando se fala em proteção dos animais, que animais protegidos são esses? Porque se você usa um sapato de couro, de onde vem esse couro? Os frangos que estão lá congelados não nasceram na árvore. Entende? É muita falta de conhecimento. A intolerância e o racismo, os preconceitos em geral dizem muito mais sobre quem os têm.
Existe ainda o apagamento da origem de comidas de terreiro. A senhora também enxerga esse movimento como sintomático do racismo religioso?
Sim. O acarajé não é comida baiana, é comida de orixá. Ele veio com os negros africanos e aqui no Brasil eles foram adaptando como dava.
Em 1802 já haviam as negras e negros que saíam pra vender os quitutes, e até os dias de hoje muitas baianas sustentam a sua família, formam os seus filhos com seus tabuleiros. Quando eu faço eventos de culinária, falo muito sobre isso. Sobre sustentabilidade, sobre o contexto dessa comida dentro da comunidade do terreiro, e aqui no terreiro o dinheiro arrecadado com essas vendas compra material para promover eventos para crianças. Veja como esse alimento é importante… Isso também ajuda a desconstruir a coisa do preconceito, do racismo, da intolerância religiosa.
Quais outros pratos tradicionais da cultura brasileira também estão nos terreiros?
Bom, o milho branco, por exemplo, que a gente oferece pra Oxalá, também está na canjica da festa junina. Todo mundo que vai numa festa junina quer comer canjica, quer comer bolo de milho, bolo de fubá. Todos esses grãos estão na nossa culinária. As pessoas às vezes dizem que não comem isso e aquilo porque é coisa de gente macumbeira, mas estão comendo a mesma coisa que a gente está comendo. Hoje, muitas pessoas que não são do candomblé nem da umbanda vêm aos nossos eventos porque gostam da culinária, da alquimia, da mistura de temperos. Imagine você misturar leite de coco com azeite de dendê, com camarão seco, com camarão defumado, com pimentas, né? E olha como dá certo.
Quais são os ingredientes e temperos tradicionais nos terreiros de candomblé?
A canjica, o milho, o camarão seco ou defumado, o inhame, a batata doce, a cebola… Nada que cozinhamos é temperado com alho, só com cebola, gengibre e azeite de dendê. Comida de Oxum é feita com feijão fradinho, comida do Ogum leva feijão preto… Enfim, essa é a base da nossa alimentação. Alguns pratos servem de oferenda para todos os orixás, outros são para alguns específicos. É o que a gente chama de comida votiva: a comida que alimenta o orixá, e com isso também alimenta toda a comunidade de terreiro.
No terreiro cada um desses ingredientes têm sua história, suas razões, certo?
Teve uma passagem aqui que eu ri bastante, porque eu fiz uma comida chamada omolocum, que é comida de Oxum, feita com feijão fradinho, azeite de dendê, cebola, camarão… E aí uma moça me perguntou o que era aquela comida e eu disse que era pra deusa da fertilidade e do amor, então esses grãos representam ovários e precisam ser servidos numa numa vasilha redonda como se fosse o ventre. Ela disse: olha, não vou comer omolocum, vou tomar duas caixas de anticoncepcional. Eu ri muito disso porque é assim que as pessoas começam a entender que tudo que você come tem um porquê, nada é à toa. A palavra ojinjé, do iorubá, quer dizer: tudo aquilo que é próprio para alimentar.
No candomblé nós nos alimentamos de comida, de cultura, de solidariedade e de empatia.
Fonte: Catarinas
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