Culinária e gastronomia, dois pesos e duas medidas.


A comida comunica, registra, traduz e difunde.

Não é de hoje que venho observando e denunciando, a necessidade, de que tenhamos réguas diferencias entre a culinária e a gastronomia, são visões distintas que comprometem principalmente as culturas tradicionais, a identidade e o pertencimento, que marca claramente um desencaixe entre as práticas, valores e significados.

A riqueza das culinárias tradicionais em nosso país, sua diversidade, força simbólica, e no campo sensorial, tem características singulares, são uma expressão com principios descolonizadores.

Saberes relacionados ao trato alimentar, não se reservam à códigos e valores instrumentais eurocentricos, regidos por réguas de mercado.

Revelam sim, um ethos muito particular, atravessadas por questões do sensível, das extensões corpóreas, e das experimentações.

A imposição de regras de controle rigidas, receitas apriori e padronização, são redutivas, que alteram a sistematização de uma compreensão muito maior, que o mero fato de comer.

Quando falamos em comer coletivamente, nos referimos à pensar a comida de forma polissemica, transcultural, entrecruzada por códigos estéticos, Afetos, a sacralidade dos rituais, as linguagens, texturas, sistemas de uso e utilização da terra, das técnicas, e um fortalecimento das próprias formas de entendimento dos sujeitos, do que para ele e sua comunidade, determina e representa o que é comida e alimento, em suas formas subjetivas de apropriação, inscrições e significações que se inserem no corpo individual e coletivo.

Numa sociedade onde seres anímicos, ancestrais participam do ato do "De comer", seria no mínimo um descaso, colocar em "segundo plano", como a comida é colocada nas culturas ocidentais.

Comer de mão, comer dançando, ou mesmo andando, integra o corpo no processo de realimentar e reconectar com a natureza, são códigos de compartilhamento que se estabelecem para além de uma compreensão objetiva e cartesiana.

É entender que a comida faz o sujeito, e também o seu contrário, dá mesma forma que penso que é a comida que nós escolhe, e acolhe.
Penso neste observar um Devir a ser considerado, quando pensamos em algo tão profundo.



"Hoje eu lembrei de um tecido de sombra estendido debaixo duma castanheira, vazado de sol, sobre o muro amarelo. Eu ficava reparando a luz balançando. Não fazia calor. E frio era que não fazia. A gente adivinhava bichinhos os mais pequenos, na terra meio molhada. Dava gosto de ver as folhas temperando o chão. Ali ainda era a terra, eu tinha essa impressão, mas hoje, lembrando, eu penso que já era mar, esse oceano. A barca vai levando, levando. Onde será o cais, o porto, próximo, último ponto? Ou quando? Dessas coisas, um não sabe, eu não sei. Sei que vou sabendo um pouco do azul, do vermelho, do verde, do amarelo, do corisco do final da tarde, o vento no mato. Ou o vento marinho, como se fosse chover. Já outra coisa, parecida e diferente, é quando a chuva escorre na vidraça, ainda nem noite. Depois passa. Faz tempo, faz tempo... não ouço mais cigarras, cigarras em multidão. Nem aqueles bichinhos de esvoaçar os postes, girando girando em torno da lâmpada, morrendo de luz. Hoje eu lembrei de quando aprendi a textura intocável do tecido da sombra e seus rasgos de luz. Foi por aquele mesmo tempo que aprendi o verde do peito dum passarinho... Que nome tinha? Não sei. Os cardumes passam velozes. E na ponta da ilha deve de ter um farol."
Rildo Policarpo 


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