FOLHAS, DOBRADURAS E SABERES: DA ARTE DO ORIGAMI AO SAGRADO ABARÁ

No entanto, não foram os únicos. Também os mouros, povos islâmicos do Norte da África, já utilizavam técnicas de dobradura de papel para criar formas geométricas, uma prática ligada à proibição religiosa de representar figuras humanas ou animais. Após a invasão árabe à Península Ibérica no século VIII, esse conhecimento foi levado à Espanha, espalhando-se posteriormente para a América do Sul.

Com as rotas comerciais marítimas, a técnica japonesa do origami também encontrou seu caminho na Europa e, mais tarde, nos Estados Unidos, ganhando popularidade como arte, educação e terapia. Hoje, encontramos mestres em dobraduras nos quatro cantos do mundo.

Assim como o papel no Japão, as folhas de bananeira desempenham, em várias culturas tropicais, um papel simbólico e prático na culinária. Comum na Ásia e na América Latina, o uso dessas folhas vai além da funcionalidade: elas conservam o sabor, mantêm a umidade e compõem o visual de pratos tradicionais. Na Bahia, são parte essencial de uma cozinha de resistência.

O abará é um dos pratos mais emblemáticos da culinária baiana de matriz africana. Assim como o acarajé, faz parte da comida ritual do Candomblé. Sua massa, à base de feijão-fradinho, é idêntica à do acarajé, mas a preparação e o cozimento são distintos: o abará é cozido no vapor, embrulhado em folhas de bananeira cuidadosamente dobradas.

Tradicionalmente, a massa de feijão era moída na pedra de Oló — uma estrutura cônica sobre a qual outra pedra corria, triturando os grãos. No contexto ritual, adiciona-se um pouco de pó de camarão. Na culinária do dia a dia, camarões secos são escaldados para retirar o sal, moídos com o feijão ou acrescentados inteiros.

O embrulho na folha de bananeira é um ponto crucial: ela deve ser passada ligeiramente no fogo para torná-la mais flexível e, então, envolver a massa com precisão, formando pequenos pacotes piramidais. A preparação não perde sua dimensão sagrada, mesmo com a introdução de utensílios modernos, como o liquidificador ou o fogão a gás — desde que esses objetos não sejam interditos aos orixás.

Outro elemento fundamental na manutenção do caráter ritual do abará é o uso do pano da costa, ou alaká — vestimenta de forte valor simbólico e estético herdado da cultura ioruba.

O Moi Moi — também conhecido como Koki em Camarões — é o “bolo de feijão africano”, muito similar ao abará. Preparado com feijão-fradinho, temperos e azeite de dendê, é embrulhado em folhas de bananeira e cozido no vapor. Pode também ser feito com milho, soja ou até feijão branco.

Potente em proteína e carregado de memória, o Moi Moi é parte fundamental da alimentação em diversas regiões da África Ocidental. Como no abará, o uso das mãos para comer — utilizando os três primeiros dedos da mão direita — é também um gesto cultural, que carrega tradição e identidade.

A Força Simbólica e Ecológica da Folha de Bananeira

A folha de bananeira é muito mais do que uma embalagem. Flexível, resistente, impermeável e biodegradável, ela empresta sabor, cor e forma aos alimentos. Amplamente utilizada em países tropicais, é parte central da culinária baiana de rua: abarás, beijus molhados, cuscuz, pamonhas, bolos de puba, acaçás e abarám — muitos dos quais hoje restritos a barracas especializadas ou aos terreiros de Candomblé.

Graças à atuação de chefs comprometidos com a valorização da ancestralidade, muitos desses alimentos voltaram a ser vistos nos cardápios de restaurantes. Outro exemplo é a moqueca de folha, prato típico do Recôncavo baiano, especialmente em Cachoeira, onde é feita com peixes pequenos como manjuba, pitinga ou até mesmo com folhas de embirí (Canna Glauca).

Apesar de todos os seus benefícios, a folha de bananeira tem sido alvo de pressões equivocadas. Há cerca de dois anos, agentes da segurança alimentar tentaram substituir seu uso por papel alumínio, alegando riscos sanitários. A resistência imediata de baianas de acarajé, movimentos culturais e ativistas da gastronomia tradicional evitou a perda desse elo fundamental com nossa ancestralidade culinária.

Do Tecido ao Sagrado: Dobrando com o Corpo

A tradição da dobradura não está apenas nas folhas e papéis, mas também no corpo e na roupa. O uso do pano da costa — o alaká — é exemplo disso. Produzido por tecelãs do Ilê Axé Opô Afonjá, ele carrega toda a estética iorubá influenciada pela cultura islâmica africana. Tecidos como o Kente, entre os Ashanti, ou os estampados Denkira, demonstram a sofisticação do trabalho têxtil ancestral africano.

No Brasil, o turbante — ou òjá — também comunica pertencimento, hierarquia e identidade religiosa. Entre as mulheres iorubás, por exemplo, o pano é enrolado com várias voltas ao redor da cabeça; já entre as mulheres fon, o lenço triangular indica até mesmo o gênero dos Voduns a que pertencem. Assim, vestir o pano é dobrar o sagrado.

Dobrando o Tempo e a Memória

Se o origami é a arte de dobrar o papel para criar formas simbólicas, o que fazemos ao preparar um abaré ou moldar um moi moi senão dobrar o tempo e a memória? Cada dobra de uma folha de bananeira, cada amarração de um pano de cabeça, cada grão de feijão triturado na pedra ou no liquidificador guarda em si uma travessia, uma herança, uma resistência.

Cozinhar, vestir, dobrar: gestos que mantêm viva a ancestralidade e recriam, todos os dias, o elo entre passado, presente e futuro.


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