🔥7 INDÍCIOS DE UMA VIRADA EPISTÊMICA: O RESSURGIMENTO DAS CULINÁRIAS TRADICIONAIS NO MUNDO (PARTE 2 — CONSOLIDAÇÃO INSTITUCIONAL E CRÍTICA DE PARADIGMAS)
Universidades, políticas públicas, órgãos de patrimônio e mesmo a linguagem utilizada para descrever esses conhecimentos estão passando por transformações profundas, capazes de legitimar e proteger a tradição culinária como campo legítimo de saber.
Essa consolidação não ocorre de forma neutra: ela carrega críticas ao modelo elitizado da “alta gastronomia” e desafia padrões coloniais que por muito tempo determinaram o que seria considerado saber culinário legítimo. Assim, vemos não apenas a preservação de receitas e técnicas, mas uma mudança de paradigma no modo como as sociedades reconhecem, valorizam e institucionalizam esses patrimônios vivos.
Neste segundo texto, vamos explorar três dimensões centrais desse processo:
Políticas públicas e legislação 👉 Proteção de saberes culinários em políticas de segurança alimentar, patrimônio e biodiversidade.
Expansão acadêmica do tema 👉 Avanço de pesquisas multidisciplinares que legitimam a culinária tradicional como campo de conhecimento.
Questionamento do termo “gastronomia” 👉 Movimentos que rejeitam a palavra elitizada e reposicionam a “culinária” como expressão plural, democrática e comunitária.
✅ 5. Políticas públicas e legislação
A França, por exemplo, incluiu a refeição gastronômica francesa (com elementos populares, não só a “alta cozinha”) na lista da UNESCO de patrimônio imaterial, abrindo a porta para outras tradições.
Em países como Peru, México, Colômbia, há legislações recentes para proteger saberes culinários tradicionais como parte de políticas de segurança alimentar e biodiversidade.
⚖️ 1️⃣ Panorama internacional
✅ França
Em 2010, a refeição gastronômica dos franceses foi inscrita na lista do Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade pela UNESCO.
O dossiê não se restringiu à alta gastronomia, mas incluiu práticas familiares, rituais de mesa, valorização de produtos regionais e a transmissão de modos de fazer — ou seja, reconheceu a cultura alimentar como patrimônio coletivo.
✅ Peru
A culinária peruana é hoje uma das mais valorizadas do mundo, e o Estado peruano tem políticas explícitas de promoção do patrimônio culinário, incluindo programas de apoio a guardiões de saberes tradicionais em comunidades andinas e amazônicas.
Há também legislações para proteger variedades tradicionais de milho, quinoa e batata, ligadas diretamente aos modos de preparo ancestrais.
✅ México
Desde 2010, a culinária tradicional mexicana (especialmente do estado de Michoacán) também foi reconhecida pela UNESCO.
O governo federal mexicano desenvolveu programas de incentivo às cocineras tradicionales, incluindo circuitos de feiras, apoio técnico e financiamento de eventos para valorizar ingredientes nativos e processos como a nixtamalização.
✅ Colômbia
Políticas recentes vêm incluindo a culinária tradicional dentro de ações de soberania e segurança alimentar, articuladas com o reconhecimento de territórios indígenas e afrodescendentes.
⚖️ 2️⃣ Panorama e esforços no Brasil
✅ Patrimônio Imaterial
O IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) tem atuado desde 2000 com a salvaguarda de bens imateriais ligados à culinária:
•O ofício das baianas de acarajé (2005)
•O modo de fazer queijo de Minas (2008)
•O modo de fazer farinha de mandioca no Pará (2010)
•O modo de fazer beiju de tapioca no Nordeste (em estudo em alguns estados)
•As panelas de barro de Goiabeiras, fundamentais na culinária capixaba (2002)
✅ Programas estaduais e municipais
Estados como Pernambuco, Ceará e Bahia mantêm políticas de Registro de Patrimônio Vivo, que incluem mestres da culinária tradicional, garantindo-lhes apoio financeiro e reconhecimento público.
Municípios têm incluído saberes culinários em leis de incentivo à cultura e à economia solidária, por exemplo Salvador, que articula as baianas de acarajé como patrimônio cultural e turístico.
✅ Segurança alimentar
O Brasil, através do SISAN (Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional), reconhece a importância de alimentos tradicionais para a soberania alimentar, ainda que nem sempre esses programas recebam o investimento necessário.
Redes como CONSEA (Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional) e movimentos da sociedade civil pressionam para que políticas públicas protejam variedades tradicionais de sementes e os saberes culinários associados a elas.
✅ Iniciativas da sociedade civil
Muitas ONGs, movimentos sociais e redes agroecológicas atuam para valorizar esses saberes culinários em políticas públicas, incluindo a Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), o Movimento Slow Food Brasil e a Rede Ecovida, entre outros.
⚖️ 3️⃣ Por que isso é tão estratégico?
✔ As políticas públicas ajudam a proteger conhecimentos ancestrais de serem apropriados ou apagados por interesses comerciais.
✔ Ao garantir suporte financeiro e visibilidade, estimulam a transmissão intergeracional e o fortalecimento da cultura alimentar como elemento de identidade.
✔ Conectam os saberes culinários a outras agendas fundamentais: soberania alimentar, agroecologia, direitos territoriais, preservação da biodiversidade.
⚖️ 4️⃣ Desafios no contexto brasileiro
⚠ Muitos programas ainda sofrem descontinuidade, especialmente em períodos de cortes de orçamento ou mudanças políticas.
⚠ Faltam instrumentos mais adaptados para povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais, que enfrentam barreiras legais e sanitárias para comercializar seus produtos sem descaracterizar seus modos de preparo.
⚠ Há risco de folclorização, quando a política valoriza o produto final (o prato), mas não garante a dignidade social e territorial de quem o produz.
⚖️ 5️⃣ Fontes e referências úteis
UNESCO: lista do patrimônio imaterial (link oficial)
IPHAN: inventários do patrimônio cultural imaterial (site do Iphan)
CONSEA: propostas de políticas para segurança alimentar e culinária tradicional
FAO: estudos sobre culinária e biodiversidade alimentar (Food and Agriculture Organization)
Slow Food Brasil: projetos de proteção de alimentos e saberes tradicionais (slowfoodbrasil.org.br)
✅ 6. Expansão acadêmica do tema
Universidades e centros de pesquisa cada vez mais estudam as culinárias tradicionais não como folclore, mas como campo legítimo de conhecimento, inclusive multidisciplinar (sociologia, história, antropologia, nutrição).
Projetos de pesquisa-ação (ex: universidades comunitárias no Brasil, colaborações na África com saberes de plantas nativas) dão protagonismo a pessoas que sempre transmitiram oralmente esses conhecimentos.
🎓 1️⃣ Reconhecimento acadêmico das culinárias tradicionais
Historicamente, as universidades tratavam a culinária tradicional apenas como “folclore” ou “curiosidade antropológica”, sem reconhecê-la como sistema de saber complexo. Isso começou a mudar nos últimos 20 anos, em parte devido à pressão de movimentos sociais, políticas patrimoniais e novas linhas de pesquisa multidisciplinares.
Hoje, áreas como antropologia alimentar, etnobotânica, história da alimentação, sociologia do alimento e nutrição cultural formam um campo de estudos sólido e respeitado, dialogando com as comunidades portadoras de saberes.
🎓 2️⃣ Exemplos de iniciativas e projetos
✅ Brasil
O Programa de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade da UFBA, e também grupos da UFRJ e USP, têm linhas de pesquisa sobre culinárias tradicionais, analisando desde a história das comidas afro-brasileiras até os modos de transmissão de saberes nas comunidades quilombolas.
A Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) apoia projetos de pesquisa-ação em comunidades indígenas e quilombolas para documentar práticas alimentares e garantir sua continuidade.
A Universidade Comunitária da Região de Chapecó (UNOCHAPECÓ), em Santa Catarina, desenvolveu estudos de mapeamento de saberes alimentares de povos do Oeste catarinense, incluindo migrantes e povos originários.
✅ África
Universidades em Moçambique, Cabo Verde e Senegal mantêm parcerias com ONGs para resgate de técnicas culinárias baseadas em plantas alimentícias nativas, associando biodiversidade, cultura e segurança alimentar.
Projetos de etnobotânica e etnoculinária investigam a relação entre práticas tradicionais e soberania alimentar, conectando pesquisa universitária a agricultores e cozinheiras populares.
✅ Europa
Na França, o Institut National de la Recherche Agronomique (INRAE) investiga saberes culinários regionais associados ao manejo sustentável da terra, reconhecendo a interdependência entre cozinha, território e biodiversidade.
Grupos de pesquisa na Itália estudam o impacto da globalização na perda de cozinhas regionais, e desenvolvem projetos de public history para registrar e divulgar tradições culinárias locais.
🎓 3️⃣ Projetos de pesquisa-ação
Os chamados projetos de pesquisa-ação merecem destaque, porque:
✔ aproximam universidade e comunidade, reconhecendo o protagonismo de quem detém o saber tradicional
✔ valorizam a transmissão oral e a experimentação prática como forma legítima de conhecimento
✔ constroem soluções para problemas reais, como a perda de biodiversidade ou a marginalização cultural
Exemplos no Brasil incluem:
•o trabalho do NECOI/UFBA (Núcleo de Estudos sobre Culinária de Origem Indígena e Afrodescendente)
•oficinas de culinária tradicional integradas ao currículo da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB)
•projetos em parceria com a Articulação Nacional de Agroecologia para catalogar alimentos regionais ameaçados de extinção
•culinafro_Urfg Sabores, saberes e memórias da culinária afrodescendente, através de receitas, tradições e histórias que celebram a ancestralidade.
🎓 4️⃣ Impactos dessa expansão acadêmica
✅ Reconhecimento das mestras e mestres como detentores de conhecimento válido, e não apenas “informantes”
✅ Integração de saberes práticos e científicos, superando dicotomias (popular x acadêmico)
✅ Formação de novas gerações de profissionais (nutricionistas, agrônomos, historiadores) com olhar mais respeitoso e plural
✅ Ampliação do acervo documental — pesquisas registram receitas, modos de fazer, nomes de plantas, contextos sociais, evitando perda de memória coletiva.
🎓 5️⃣ Fontes e referências úteis
Sidney Mintz, referência clássica em antropologia da alimentação (Sweetness and Power, 1985)
Rachel Laudan, historiadora que discute tradição e modernidade na culinária (Cuisine and Empire, 2013)
UNESCO: publicações sobre patrimônio imaterial alimentar
FAO (Food and Agriculture Organization): estudos sobre culinária, biodiversidade e segurança alimentar (link)
Revista Estudos de Alimentação e Sociedade (UFRGS): publica artigos sobre culinárias tradicionais no Brasil
Revista Anthropology of Food (França): pesquisas globais sobre práticas alimentares
🎓 6️⃣ Desafios
⚠ Ainda existe resistência acadêmica em alguns setores, que veem a culinária tradicional apenas como “objeto de estudo”, sem reconhecer a autoria dos saberes comunitários.
⚠ Falta de financiamento para pesquisa-ação continuada e para bolsas destinadas a estudantes de comunidades tradicionais.
⚠ Necessidade de mecanismos de retorno do conhecimento para as comunidades pesquisadas, evitando extrativismo acadêmico.
✅ 7. Questionamento do termo “gastronomia”
Muitos movimentos sociais e culturais passam a rejeitar a palavra “gastronomia” (vista como elitizante) e resgatam culinária como expressão mais democrática, popular e plural.
Esse reposicionamento linguístico também é parte da virada epistêmica, pois desloca o centro da autoridade para quem cozinha de fato.
🍲 1️⃣ Por que o termo “gastronomia” vem sendo questionado?
A palavra gastronomia tem raízes gregas (gastro = estômago, nomos = leis), mas ganhou força principalmente na Europa do século XVIII-XIX, associada ao refinamento, à arte de comer bem e ao prestígio social. Ao longo do tempo, a gastronomia passou a se relacionar:
✅ com saberes acadêmicos, codificados, institucionalizados
✅ com restaurantes de alta classe, técnicas francesas, chefs com formação formal
✅ com distinções sociais (quem pode consumir e quem não pode)
Muitos movimentos culturais, sociais e acadêmicos criticam que o termo reproduz hierarquias coloniais e eurocêntricas, ao colocar práticas culinárias populares ou periféricas como “menos valiosas”.
Por isso, há uma crescente preferência pela palavra culinária, que remete ao ato de cozinhar no dia a dia, aos processos comunitários, à tradição oral e ao conhecimento transmitido por gerações — muito mais democrático, plural e inclusivo.
🍲 2️⃣ Teses e estudos que embasam essa crítica
✅ Jack Goody (1982) — em Culinary Practices and Social Hierarchies, Goody mostrou como as elites históricas usaram a gastronomia para demarcar status social e controlar práticas alimentares.
✅ Massimo Montanari (2006) — autor italiano que discute em Food is Culture como a gastronomia erudita se apropriou de saberes camponeses e populares, apagando suas origens coletivas.
✅ Rachel Laudan (2013) — em Cuisine and Empire, Laudan demonstra que os sistemas culinários tradicionais foram transformados em “gastronomias nacionais” para atender mercados e turismo, muitas vezes retirando o poder de decisão dos cozinheiros populares.
✅ Sociologia crítica da alimentação — correntes contemporâneas (ex: Priscila Campos, no Brasil; Krishnendu Ray, nos EUA) apontam que “gastronomia” reforça a mercantilização e a espetacularização da comida, em oposição à culinária como prática social cotidiana.
🍲 3️⃣ Dados e fatos que reforçam o reposicionamento
✅ Movimentos de cozinheiras tradicionais — no Brasil, muitas associações de baianas de acarajé, quituteiras e mestras da comida de roça adotam explicitamente a palavra culinária para marcar sua identidade, recusando serem chamadas de “gastrônomas”.
✅ Slow Food — ainda que use a palavra gastronomia em alguns eventos, cada vez mais o movimento valoriza termos como “culinária de território” ou “cozinhas da ancestralidade” para evidenciar a autoria popular.
✅ Mídias populares — em podcasts, coletivos de cozinheiras, redes agroecológicas e festivais comunitários, a palavra “culinária” aparece como símbolo de resistência ao elitismo do mainstream gastronômico.
🍲 4️⃣ Por que isso também é virada epistêmica?
✔ Ao trocar “gastronomia” por culinária, há um deslocamento do centro da autoridade:
•da escola europeia para a tradição oral
•do restaurante para a cozinha comunitária
•do chef-celebridade para a mestra do saber popular
✔ É uma mudança de linguagem, mas também de poder, pois reconhece que cozinhar é um ato social, cultural, político, e não apenas artístico ou técnico.
✔ Isso legitima práticas que estavam invisibilizadas e abre espaço para novos agentes de saber — mulheres negras, indígenas, camponesas, quilombolas — que nunca se autodefiniram como “gastrônomas”, mas como cozinheiras, guardiãs de uma cultura viva.
🍲 5️⃣ Desafios e tensões
⚠ Existe resistência de setores que veem a palavra gastronomia como sinônimo de status, e não querem abrir mão dessa valorização simbólica.
⚠ Em políticas públicas, às vezes ainda se usa “gastronomia” de forma genérica, sem refletir suas conotações elitistas — isso pode dificultar a inclusão de cozinheiras populares.
⚠ O mercado turístico costuma preferir “gastronomia” como forma de vender experiências, o que pode gerar conflitos com a visão comunitária.
🍲 6️⃣ Referências e fontes para aprofundar
Jack Goody — Cooking, Cuisine and Class (1982)
Massimo Montanari — Food is Culture (2006)
Rachel Laudan — Cuisine and Empire (2013)
Krishnendu Ray — The Ethnic Restaurateur (2016)
Sidney Mintz — Sweetness and Power (1985)
Priscila Campos — artigos recentes sobre culinária quilombola no Brasil (Revista Estudos de Alimentação e Sociedade, UFRGS)
CONSOLIDAÇÃO INSTITUCIONAL E CRÍTICA DE PARADIGMAS
Com esses elementos, fica evidente que a virada epistêmica das culinárias tradicionais não se limita ao resgate simbólico: ela se firma também na pesquisa acadêmica, nas políticas públicas e até na forma de nomear e classificar o ato de cozinhar. Esse processo amplia horizontes, devolve protagonismo aos verdadeiros detentores dos saberes e questiona as hierarquias coloniais que moldaram, por séculos, a ideia de “boa comida”.
Ao consolidar esses avanços, construímos caminhos mais justos, plurais e sustentáveis para o futuro da alimentação — um futuro que reconheça, valorize e proteja as cozinhas tradicionais como patrimônios vivos da humanidade.


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