COMIDA É DISCURSO: O CUSCUZ COMO METÁFORA DA DIÁSPORA AFRICANA
Por Alicio Charoth
Comida é Discurso
Cozinhar é dizer. Comer é escutar. O alimento, antes de nutrir o corpo, atravessa a história, o território e os afetos. Em cada prato, um gesto. Em cada tempero, um mundo. Quando dizemos que comida é discurso, reconhecemos sua capacidade de narrar trajetórias, denunciar apagamentos, preservar memórias e afirmar existências.
O que se come, como se come, com quem se come — tudo isso comunica. O discurso da comida, no entanto, não é apenas simbólico: ele é político, social e espiritual. Em sociedades marcadas por colonizações, como a brasileira, os pratos populares carregam camadas de resistência e invenção.
O Cuscuz como Metáfora da Diáspora
No Brasil, o cuscuz é um desses alimentos que falam. Feito de milho, mas também de arroz, tapioca ou mandioca, o cuscuz é ao mesmo tempo cotidiano e ancestral, simples e sofisticado, periférico e central. Ele é um prato que conta — e conta alto — a história da diáspora africana, da resistência cultural e da formação da identidade nordestina.
O cuscuz não chegou pronto ao Brasil. Ele foi reinventado por mãos negras e indígenas, adaptado a partir do couscous do norte da África, onde o grão de trigo era semolado e cozido ao vapor. No solo colonizado, o trigo foi substituído pelo milho e pela mandioca, e a técnica foi ressignificada. Mas a essência permaneceu: grão por grão, a memória foi preservada.
Essa adaptação, longe de ser perda, é potência criativa da diáspora: um discurso que diz “estamos aqui, resistimos, recriamos”. A panela de barro, o cuscuzeiro, a manteiga de garrafa, o leite de coco — cada elemento compõe uma fala culinária que desafia a homogeneização alimentar e afirma o valor da oralidade e da ancestralidade.
Cuscuz na Diáspora Brasileira: Reinvenção e Segurança Alimentar
Se o cuscuz carrega consigo a memória da África, foi no Brasil — especialmente no Nordeste — que ele ganhou novos formatos, sabores e significados, tornando-se símbolo de resistência alimentar e cultural. Ele se adaptou aos territórios e aos recursos disponíveis, reinventando-se pelas mãos de mulheres negras, indígenas e sertanejas. O que era couscous de trigo virou cuscuz de milho, de arroz, de puba, de mandioca. A criatividade foi a linguagem da sobrevivência.
Na Bahia, o cuscuz ganhou camadas. Pode vir molhado no leite de coco, acompanhado de peixe frito ou ovo cozido, lambuzado de manteiga de garrafa, com mel de engenho ou azeite de dendê. Em algumas regiões, é prensado em formas; em outras, esfarelado na mão. Há o cuscuz de tapioca das festas, o de milho da manhã e o de arroz do quintal. Cada versão é uma resposta ao território, ao clima, ao tempo de preparo, ao que havia na despensa — mas também uma afirmação de pertencimento.
Mais do que um alimento, o cuscuz se transformou em eixo da segurança alimentar popular. Ele é barato, versátil, nutritivo e sacia. Pode ser preparado com ou sem fogão, em cuscuzeira de alumínio ou na panela de barro. Por isso, está presente nas mesas das casas, nas marmitas de trabalhadores, nas feiras e nas merendas escolares.
O cuscuz é democrático e resistente. É a antítese dos ultraprocessados — não vem em embalagem de plástico, não depende de insumos estrangeiros, não é controlado por conglomerados industriais. Ele é feito no tempo do roçado, com o milho plantado, ralado, pilado, cozido. É saber transmitido por gerações — da avó para a neta, da vizinha para a amiga, da feira para o fogão.
> Em tempos de insegurança alimentar no Brasil, o cuscuz continua a dizer: há caminhos que sustentam a vida a partir do que é nosso.
Ele desafia o discurso dominante que associa “comer bem” ao consumo elitizado e ocidentalizado. Comer cuscuz é, portanto, reivindicar o direito de comer com dignidade, com sabor e com história.
O Cuscuz em Marselha: um Encontro de Vozes
Participar do Festival do Kos-Kos, em Marselha, é mais do que cozinhar: é oferecer um discurso em forma de prato. Marselha, cidade portuária marcada por encontros entre África, Europa e Oriente Médio, escuta esse cuscuz com ouvidos atentos. É nesse chão que o cuscuz se torna ponte — entre continentes, entre tempos, entre sabores e memórias.
Nosso cuscuz brasileiro, quando apresentado nesse contexto, carrega um contraponto ao olhar colonial: ele não é uma adaptação inferior, mas sim um testemunho de reinvenção cultural. Ele fala das mulheres negras que o cozinharam com silêncio e sabedoria, dos corpos escravizados que recriaram o mundo com o que tinham, dos territórios quilombolas que o mantêm vivo.
Cozinhar é Afirmar
Vivemos um tempo em que a comida tem sido transformada em commodity, em espetáculo gourmet, em “experiência sensorial” para poucos. Mas nas cozinhas das casas simples, nos quintais, nas feiras, a comida continua falando uma outra língua: a da fartura repartida, da memória coletiva, da espiritualidade do fogo e do tempo.
Ao afirmar que comida é discurso, estamos também dizendo que cozinhar pode ser um ato de insurgência, um manifesto contra o apagamento dos saberes ancestrais, uma denúncia do racismo alimentar e uma afirmação da dignidade dos povos que, mesmo sob opressão, continuam falando por meio dos seus pratos.
Cuscuz é Palavra Viva
Cuscuz não é só receita. É poema, protesto, oração. Em Marselha, ao lado de outros povos da diáspora, levamos o nosso cuscuz como quem leva um tambor, uma carta, uma oferenda. Ele não vai apenas ser degustado — vai ser escutado.
E que saibam: o que se ouve no cuscuz é o eco de um povo que nunca se calou.
Sobre o autor
Alicio Charoth é cozinheiro, pesquisador e ativista da culinária afro-baiana. Desenvolve projetos de valorização das tradições alimentares quilombolas, plantas alimentícias tradicionais e saberes ancestrais. Atua na intersecção entre comida, território e identidade, sendo referência em ações de intercâmbio culinário entre Brasil, África e Europa. Em 2025, representa a culinária brasileira no Festival do Kos-Kos, em Marselha (França), com foco na diáspora e na reinvenção popular do cuscuz.


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