“Wherá Tupã e o Fogo Sagrado”
Assista https://youtu.be/v-Vg_I_XI7Y
- Rafael Coelho
- Meu primeiro contato com uma aldeia guarani aconteceu em fevereiro de 2013. Naquele tempo, cursava cinema na UFSC e fui convidado pelo grupo Pachorra Teatro Livre para fazer a filmagem do espetáculo “A origem das estrelas ou a revolta da pamonha”, que foi apresentado na comunidade guarani Yyn Moroti Wherá – Brilho das Águas Cristalinas, localizada em Biguaçu – SC, nas margens da BR. No fim de semana seguinte, estávamos participando da cerimônia que ocorreu dentro do opy (casa de reza).
- O caminho que percorri da minha casa até o opy foi também um deslocamento no tempo. Durante a cerimônia entrei em contato com uma sensibilidade sutil e profunda, enraizada na ancestralidade guarani, que se apresentava de modo pungente especialmente na cura realizada pelo karai (liderança espiritual) Alcindo Wherá Tupã.
- Em um determinado momento da cerimônia, foi colocado um banquinho de madeira em frente ao fogo, uma pessoa sentou-se para ser atendida por Wherá Tupã. Eu observava a cena do meu lugar sentado no chão, os movimentos que o karai, de olhos fechados, fazia com as mãos sobre o nhe’e rete (conjunção entre corpo e espírito) da pessoa parecia agir também sobre o meu corpo. Tive uma sensação de mal-estar, como se algo revirasse dentro de mim, logo vomitei. Seu Alcindo Wherá Tupã, com as mãos e a fumaça do petyngua (cachimbo), limpava o nhe’e rete do paciente, através da chupada extraía algo invisível, que era materializado em pedrinhas. No canto final, em frente ao fogo, Wherá Tupã desmaterializou as pedrinhas de suas mãos.
- No final da cerimônia, antes de ir embora, fui até a casa dele conversar um pouco. Falei que senti vontade grande de fazer um filme sobre a cura. Ele me olhou fundo nos olhos, mantendo-se em silêncio por um tempo, e disse: “você pode fazer, mas não dá para ser qualquer coisa, tem que ser bem feito”. Esse filme é o curta metragem “Wherá Tupã e o Fogo Sagrado”, que filmamos em 2019, com projeto contemplado pelo Prêmio Catarinense de Cinema 2018, o filme está finalizado e iniciará o seu caminho pelos festivais nacionais e internacionais. Eu o dirigi e montei, Seu Alcindo, junto ao filho Wanderley, assinam comigo a concepção do filme, construído após uma série de conversas sobre como abordar o trabalho espiritual feito por Wherá Tupã.
- Rafael (diretor) e Wherá Tupã (Foto de Arantxa Pellme, produtora)
- Seguir adiante com a vontade de fazer um filme sobre a cura, sendo eu e grande maioria da equipe djurua (não-indígena), é dispor-se a atravessar um limiar muito delicado, caminho carregado de conflitos. Muitas vezes, o Wanderley me relembrou que ter a permissão para filmar a cura é um tabu que está sendo quebrado na cultura, e se algum dia a cura chegou a ser filmada esse registro nunca foi divulgado. Seu Alcindo Wherá Tupã, karai de 111 anos, foi o primeiro que abriu o opy aos djurua, pois sentiu que esses deveriam conhecer a cultura guarani de perto. Isso ocorreu há 21 anos, abertura esta que não aconteceu em muitas das aldeias Guarani que ainda tem opy. Ele e sua falecida esposa, Dona Rosa Potydjá, perceberam ser necessário construir um outro vínculo com os djurua, de modo que as diferentes culturas se retroalimentassem, cada qual com as suas singularidades, acarretando aprendizado e evolução para os dois lados.
- Essa relação está sendo constantemente problematizada por Seu Alcindo. À medida que o karai é o alicerce principal sobre o qual é sustentada a cosmovisão da cultura Guarani, o portador da sabedoria que é repassada oralmente de geração em geração desde os primórdios desse povo, é também o mediador entre o mundo dos homens e dos deuses, responsável por fazer as curas e dar o nome espiritual das crianças no batismo. O contato com os djurua, desde a colonização, certamente é o principal acontecimento que dificultou a repetição do nhandereko (regra, costume, modo-de-viver) desse povo. Segundo eles, não é possível aos Guarani praticar o nhandereko do modo como os seus ancestrais faziam. Contudo, os anciões perceberam que, na situação atual, já não era possível viverem apartados dos djurua. Na esperança de aproximarem-se do nhandereko e preservá-lo, alguns Guarani aprendem a escrever, estudam na universidade, lutam por seus direitos, participando da vida na cidade, tentando compreender melhor o pensamento dos djurua e buscando apresentar a cultura Guarani para que os djurua tenham melhor entendimento a seu respeito e, assim, passem a respeitá-la.
- Um dos impactos do distanciamento do nhandereko entre os guarani pode ser atestado nas novas gerações de karai. Seu Alcindo Wherá Tupã disse que as novas gerações de karai não têm mais a força espiritual que os karai kuery (os líderes espirituais) tinham antigamente, assim como a quantidade de doenças e mortes aumentou drasticamente. Ele conta que antes quase não se via doença; as doenças letais, então, eram muito raras, quando alguém estava doente curava-se no opy com os cantos, danças, petyngua (cachimbo), e havia vários karai muito potentes para curar. Há tempos a medicina dos não indígenas é utilizada para tratamento de doenças nas aldeias, porém, além disso, Seu Wherá Tupã também mantém diálogo com alguns profissionais da saúde, buscando um caminho de fortalecimento que abarque esses distintos saberes, potencializando-os e alcançando melhores resultados para a saúde da comunidade.
- Ao longo dos oito anos desde que Seu Alcindo me permitiu fazer esse filme, minha compreensão foi amadurecendo, não se tratava só de um filme sobre a cura feita pelo karai, mas também de um filme sobre o Fogo Sagrado. Segundo Seu Wherá Tupã, o Fogo Sagrado tem dono, nós estávamos mexendo com o que é do Nhanderu (Nosso Pai) e isso não era brincadeira. Toda permissão e possibilidade de avanço para realizar o filme passava por um circuito de troca que envolvia a presença das próprias divindades ancestrais dos Guarani. Os conselhos simples e pontuais que Seu Wherá Tupã dava para nossa equipe eram instruções práticas para o nosso dia a dia. Ele previu e nos contou sobre provas que teríamos no caminho e sobre como caminhar bem mesmo diante de todas as dificuldades, tendo coragem e força espiritual, sempre relembrando das divindades, fortalecendo esse vínculo com o povo do alto para que Eles possam estar olhando por nós, visto que são capazes de ler os nossos corações e as intenções ali depositadas, assim como as nossas ações e postura diante a vida. Por isso a ênfase de Seu Wherá Tupã de que não se tratava de uma brincadeira, mas algo muito sério, onde seríamos testados e teríamos que ter firmeza para com o propósito que iniciamos.
- Um exemplo desse circuito de troca com as divindades ocorreu quando fomos filmar uma cena no opy e um enorme estrondo de trovão ocorreu durante a gravação. Seu Wherá Tupã disse que os Tupã (divindades) haviam passado por ali e estavam vistoriando todo o nosso movimento, pois a equipe estava mexendo com um Fogo que é Deles. Disse também que os Tupã deixaram uma mensagem dizendo que em um dia específico estariam de volta. Na data mencionada, realizamos a segunda etapa de filmagem, quando filmamos as cenas da cura que não aconteceu na primeira etapa. A data de retorno da nossa equipe ainda não havia sido informada aos guarani, ela foi comunicada através das divindades neste momento do trovão. Além disso, o ancião nos disse que as divindades nos fotografaram e que se a equipe fosse alterada, no próximo retorno Deles, teríamos um “desconto”, no sentido de perda, na relação sustentada entre nossa equipe com o povo do alto.
- Lipe Tortoro (diretor de produção) mostrando as filmagens para as crianças (Foto de Arantxa Pellme)
- Para Seu Wherá Tupã isso era como uma prova no nosso caminho, deveríamos permanecer unidos e atentos enquanto equipe, o “desconto” ou a “perda” imaginei ser a impossibilidade de gravar a própria cura, à medida que o propósito da segunda etapa era esse. O fato é que já sabíamos dessa notícia e a nossa relação enquanto equipe sempre foi boa e forte, nunca imaginei que isso poderia acontecer, contudo, diante de diversos mal entendidos, as coisas foram se desenhando para o afastamento de uma pessoa da equipe, até que, no último momento, relembramos essa história e resolvemos as discordâncias, continuamos com a mesma equipe até o final, hoje está tudo certo e o ocorrido nos fortaleceu.
- Um dos acontecimentos que também abriu os caminhos em direção ao filme foi o batismo guarani com a minha família: Rafaela Herran, Nhamandu Coelho e Wherá Coelho. Nós nos aproximamos muito da aldeia, construímos uma rede de amizade com os indígenas e com os djurua que mantêm esse elo com a comunidade, e boa parte dessas pessoas fizeram parte da equipe de filmagem. Em 2015, dois anos após a minha primeira visita à aldeia, eu, Rafaela e Nhamandu fomos batizados em frente ao Fogo Sagrado e recebemos do karai o nosso nome espiritual, o nome do Nhe’e (palavra-alma). Depois disso, tivemos maior acolhimento e confiança pelas pessoas da aldeia, como se pertencêssemos a uma grande família, aumentando também a nossa compreensão, sensibilidade e responsabilidade no caminho de aproximação e vínculo sustentado com o nosso próprio Nhe’e, e, consequentemente, com o opy (casa de reza), que é o espaço privilegiado para se estabelecer o contato com as divindades, lugar de trânsito e de reunião dos Nhe’e, espaço de circulação das palavras (ayvu) que fortalecem, são imperecíveis (marã e’ỹ).
- Nhe’e é o princípio anímico, de origem celeste, na pessoa, comumente traduzido por voz, espírito guardião, porção divina da alma, ou alma-palavra, eles descem à Terra provenientes das regiões celestes onde moram as divindades Guarani, os Nhanderu kuery. São eles que erguem o corpo sobre a Terra e o fazem caminhar e é neles que se encontra a palavra, a possibilidade da fala. Nhe’e kuery se comunicam com aqueles que são capazes de ouvi-los, passando as instruções de como se deve levar a vida, transmitindo o nhandereko aos guarani.
- Nhanderu deixou aos Guarani o nhandereko quando ele os gerou e os enviou à Terra, o nhandereko guarani é praticamente tudo o que se vive e como se vive na aldeia e fora dela e o que constitui a maior parte das explicações sobre o nhandereko é a importância de repetir na Terra o que os deuses fazem em suas moradas. Repetir o nhandereko é trilhar um caminho novo para cada um, cheio das pegadas dos ancestrais, através do qual se pode criar para si um corpo mais potente, um corpo leve, capaz de estabelecer um circuito de troca com os Nhe’e kuery. Através das práticas no opy, assim como da repetição do nhandereko, faz-se com que a luz vital cresça, nhembopy’aguatchu, o que permite que os laços entre o indivíduo e seu Nhe’e se estreitem, aumentando a sua potência espiritual. Os conselhos do Seu Wherá Tupã para a comunidade guarani e para a equipe de filmagem eram em torno desse fortalecimento no opy, da reza, da aproximação com os Nhe’e.
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