Mulheres do Brasil, a história não contada


Após desmistificar as figuras de Dom Pedro I e sua primeira esposa, a Imperatriz Leopoldina, o pesquisador e escritor Paulo Rezzutti escreve sobre as mulheres famosas e anônimas que fizeram a história do Brasil. Mulheres do Brasil – A história não contada (Editora Leya), lançado em maio deste ano, resgata a história de mais de 200 mulheres das mais variadas épocas que tiveram suas biografias alteradas, deturpadas ou que simplesmente sequer apareceram nos registros convencionais. Das guerreiras às vilãs, das mulheres do poder às artistas, o historiador ainda ilumina trajetórias pouco conhecidas de indígenas e negras escravizadas. Avançando até os dias atuais, com perfis díspares como o de Suzane von Richthofen e Marielle Franco. Esta última incluída após ter finalizado sua pesquisa, com o seu assassinato: “Me doeu, de verdade, ter que colocá-la”, disse.


Membro titular do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, Rezzutti trabalhou como consultor técnico na exumação dos corpos dos primeiros imperadores do Brasil. Com livros publicados sobre o período do Primeiro Reinado – Titília e o Demonão: Cartas inéditas de Dom Pedro à marquesa de Santos e Domitila: A verdadeira história da marquesa de Santos –, Rezzutti lançou pela LeYa, em 2015, Dom Pedro – A história não contada: O homem revelado por cartas e documentos inéditos, vencedor do Prêmio Jabuti 2016 na categoria Biografia; e, em 2017, Dona Leopoldina – A história não contada: A mulher que arquitetou a Independência do Brasil.




Nesta entrevista exclusiva ao jornal Extra Classe, Rezzutti fala o que o levou a escrever este livro e o que espera dele.




Extra Classe – Você saiu recentemente de um belo livro que mostrou a importância da Imperatriz Leopoldina (Carolina Josefa Leopoldina Francisca Fernanda de Habsburgo-Lorena, primeira esposa do imperador Dom Pedro I) no processo que culminou na Independência do Brasil.


Foi isso que te animou a abraçar este novo projeto?

Paulo Rezzutti – Na realidade minha produção de biografias se inicia com a da Marquesa de Santos, em 2012, já faz tempo que estou trabalhando com mulheres brasileiras, a minha obra sobre Dom Pedro I foi um ponto fora da curva. Desde a marquesa, que me levou à Leopoldina, vi como muita coisa não era contada na história da mulher e isso me levou ao Mulheres do Brasil.


EC – Na introdução do seu novo livro, você diz que quer contar como as mulheres “foram apagadas ou tiveram o seu papel diminuído”. Levando em conta que esse é realmente um tema tão complexo, a ponto da Sorbonne, décadas atrás, entabular uma discussão a respeito de existir efetivamente uma história das mulheres, em que ponto você acha que o seu trabalho contribui com essa reflexão?

Rezzutti – Eu acho que a maior contribuição do meu livro é escancarar o discurso patriarcal que pautou a construção dos livros de história no Brasil. Ver como e porque certas mulheres foram aceitas neles e outras não, como o discurso machista foi determinante para o processo de apagamento da memória delas.


EC – Na introdução do seu novo livro, você diz que quer contar como as mulheres “foram apagadas ou tiveram o seu papel diminuído”. Levando em conta que esse é realmente um tema tão complexo, a ponto da Sorbonne, décadas atrás, entabular uma discussão a respeito de existir efetivamente uma história das mulheres, em que ponto você acha que o seu trabalho contribui com essa reflexão?


Rezzutti – Eu acho que a maior contribuição do meu livro é escancarar o discurso patriarcal que pautou a construção dos livros de história no Brasil. Ver como e porque certas mulheres foram aceitas neles e outras não, como o discurso machista foi determinante para o processo de apagamento da memória delas.




EC – Você cita a historiadora Michelle Perrot (Paris, 1928 – historiadora, professora emérita da Universidade Paris VII, precursora dos estudos sobre a história das mulheres no ocidente) que afirma que é preciso que a mulher seja piedosa ou escandalosa para poder existir e diz que acrescentaria também infeliz. Como você considera essa realidade? Existe margem para otimismo?


Rezzutti – Na verdade não muito. Você conhece a história de alguém que foi 100% feliz? Isso não existe, nem em ficção, você precisa de conflitos para prender o leitor. Com a história não é muito diferente. Gente feliz não entra nela.




EC – Você cita a historiadora Michelle Perrot (Paris, 1928 – historiadora, professora emérita da Universidade Paris VII, precursora dos estudos sobre a história das mulheres no ocidente) que afirma que é preciso que a mulher seja piedosa ou escandalosa para poder existir e diz que acrescentaria também infeliz. Como você considera essa realidade? Existe margem para otimismo?


Rezzutti – Na verdade não muito. Você conhece a história de alguém que foi 100% feliz? Isso não existe, nem em ficção, você precisa de conflitos para prender o leitor. Com a história não é muito diferente. Gente feliz não entra nela.




EC – Uma questão bem instigante: como que uma escrava e ex-prostituta (Rosa Maria – Costa da Mina, África, 1719) vira freira, passa a ser considerada a primeira escritora afro-brasileira e começa a ser considerada uma santa não só pelo povo, mas também pelo clero, e acaba degredada pela inquisição em Portugal e esquecida em seu país?


Rezzutti – A própria Igreja que deu suporte para que ela surgisse ajuda em sua destruição. O recolhimento que ela criou para ter uma certa liberdade de praticar o que ela entendia como religião acaba passando para a Igreja que a usa para aprisionar as mulheres que não se adequavam ao que a sociedade da época ditava. Ela é apenas uma de várias outras que foram apagadas da nossa história.


EC – Interessante o paralelo que você traça entre Maria Felipa de Oliveira (Ilha de Itaparica, data incerta – 4 de julho de 1873) e Maria Quitéria (freguesia São José de Itapororocas, hoje Feira de Santana,1792 – salvador, 1853). A primeira, negra, líder de comunidade, pobre, iletrada e que jogava capoeira; a segunda branca, de classe média. Ambas pegaram em armas contra os portugueses, mas somente Quitéria teve maior projeção histórica. Além de você refletir que a história foi escrita por homens brancos, dentro de uma sociedade escravagista, e que Maria Quiteria voltou obedientemente à casa paterna após a guerra, algo mais poderia ser ressaltado?


Rezzutti – O fato de que mesmo assim, Maria Quitéria só entra em nossa história porque a história dela foi resguardada por outra mulher, a inglesa Maria Graham (Nota da Redação: Preceptora da princesa dona Maria da Glória 1819 – 1853, filha do imperador dom Pedro I. Papcastle, 1785 – 1842) que estava no Brasil e a conheceu. Até mesmo a imagem que temos hoje de Quitéria devemos a Graham que ganhou, de um artista inglês no Brasil, o desenho que ele tinha feito da baiana e ela o reproduziu em seu livro: Diário de uma viagem ao Brasil.


EC – No exemplo de Maria Felipa e Maria Quitéria, além do machismo, da questão de gênero, você acaba também tocando em uma questão racial e de classe. Hoje, no politicamente correto de alguns setores da esquerda, em especial os movimentos feminista, negro e LGBT, surgiu o conceito de Lugar de Fala, ou seja, a busca pelo fim da mediação: a pessoa que sofre preconceito fala por si, como protagonista da própria luta e movimento. Você como homem, branco, como vê isto?


Rezzutti – Eu não vejo o feminismo como um movimento de esquerda vejo como uma luta da mulher, mas também o vejo como sendo causado por conta do preconceito de gênero. Eu não preciso ser mulher para lutar contra o preconceito, do mesmo modo que acredito que o feminismo, ao contrário do machismo, seja a busca pela igualdade entre os gêneros e não a extinção ou sobreposição de um sobre o outro. Nesse espaço, acho que aliados são bem-vindos e o lugar da fala não pode ser confundido com censura. O que determina a fala é o conhecimento. Eu, como homem, posso não deter o conhecimento do preconceito que atua hoje sobre o fato de um indivíduo ser uma mulher, entretanto, além de ter empatia, tenho conhecimento da história desse preconceito e como ele atuou ao longo dos anos.


EC – Saindo da saia justa (risos) e voltando para o seu trabalho específico. Você fala que as capitanias hereditárias que mais deram certo, Pernambuco e São Vicente, foram administradas por mulheres. Sem o tradicional comprem o livro, poderia nos falar um pouco sobre isto?


Rezzutti – Algumas mulheres, como as que assumiram a administração das capitanias de Pernambuco, São Vicente, Espírito Santo e várias outras, acabaram chegando lá não por ordem do rei mas sim por herança, os maridos morreram, ou os filhos, e elas se encontraram a frente da administração. A maioria era respeitada, mas inclusive o Padre Anchieta faz uma homenagem em uma peça a uma delas mas a coloca como um ser inferior ao homem.




EC – Por ironia do destino (e você registra isto no seu livro), Pagu (Patrícia Rehder Galvão – São João da Boa Vista, 9 de junho de 1910 — Santos, 12 de dezembro de 1962) que sofreu preconceito no Partido Comunista Brasileiro por suas ideias feministas foi a primeira presa política do país no século XX. Que ela era uma libertária, todo mundo já ouviu falar, mas e essas histórias de ter sido a primeira mulher a desenhar quadrinhos no Brasil e ser a responsável pela introdução das sementes de soja, produto que contribui fortemente com a nossa balança comercial?


Rezzutti – Pois é… essa é só uma das várias histórias que se encontram por detrás das chamadas “mulheres ícones” que foram criadas. Pagu sofreu preconceito desde cedo por ser diferente, ela mesmo registra isso em seu diário.


EC – Como no paralelo das Marias, você registra outro não menos interessante. Quando se fala em mulheres na política no Brasil sempre aparece a médica paulista Carlota Pereira de Queirós como a primeira mulher a ser eleita deputada para a Constituinte de 1934. No entanto, não é dito que ela não era a única mulher parlamentar naquela Assembleia. Havia também Almerinda Farias Gama (Maceió, 16 de maio de 1899 — Rio de Janeiro, 1992), alagoana negra e pobre, representante sindicalista na Constituinte. Mais uma vez a questão de classe ou outros fatores também contribuíram para esse “esquecimento”?


Rezzutti – Sem dúvida alguma. A história durante muitos anos foi escrita por determinada classe social e isso influi no que foi registrado. Talvez nem pelo preconceito em si, mas até mesmo por falta de conhecimento, a falta de ver além do seu meio e sua classe. Na luta da mulher na política podemos observar como muitas de classes elevadas pensavam em como elas poderiam almejar chegar a determinados lugares, mas esqueceram-se das mulheres da classes abaixo das dela.




EC – Porque Suzane von Richthofen figura no seu livro?


Rezzutti – Porque ela é um estudo de caso interessantíssimo. Ela está na parte das mulheres más e até hoje, pelo relato recolhido de dentro da prisão em que ela cumpre pena, Suzane continua machucando e fazendo o mal para outras prisioneiras. Aparentemente não física, mas psicologicamente.




EC – Sua obra é bem recheada de paralelos mesmo (risos). Você fala que a princesa Isabel era retratada na opinião pública de sua época como vítima de “deslumbramentos nervosos”; que Dilma recebeu da revista IstoÉ uma capa em que aparecia gritando, com o título As explosões nervosas da presidente, enquanto que a atual primeira-dama, Marcela Temer ganhou o título de “bela, recatada e do lar” da revista Veja. Como Você analisa tudo isto?


Rezzutti – Com tristeza (risos). Cem anos passaram entre o nascimento de Dona Isabel e de Dilma e o discurso contra a mulher é o mesmo. Nas duas épocas vemos que pior do que a ideia de ter uma mulher no comando era o homem que estava por detrás dessa mulher. No caso de Dona Isabel o marido, um estrangeiro, é que iria governar os brasileiros; no caso de Dilma era o Lula. O discurso é o mesmo, não mudou nada, a mulher é um ser que para atuar no espaço público, na mente das pessoas, tem que ter um homem por detrás, mandando nela, como se ela fosse destituída de Inteligência e vontade. Recentemente, no caso da Marielle, vemos que o discurso é que o Freixo é que estava por trás dela. Uma mulher bela, recatada e do lar, não incomoda, afinal, o “do lar” já a confina ao espaço interno e determina que o seu local não seja o público, como as que atuam na política. Nesse ponto, ai vai mais um paralelo, o que lhe vem na mente quando escuta as expressões “homem público” e “mulher pública”?




EC – Falando em Marielle Franco, quando você já tinha toda a sua pesquisa concluída, aconteceu o assassinato da vereadora no Rio de Janeiro. Como isto te tocou e, sinceramente, caso essa monstruosidade não tivesse acontecido, Mariele pessoa física estaria nas páginas do Mulheres do Brasil – A história não contada?


Rezzutti – Me doeu, de verdade, ter que colocá-la. Eu havia assistido a sua fala no dia das mulheres em que ela enfrentou um ser abjeto que da galeria gritava palavras favoráveis à ditadura. Eu esperava, sinceramente, que ela entrasse em um volume 2 do Mulheres do Brasil, em que as realizações dela estivesse muito mais sedimentadas do que agora e que os frutos de suas realizações estivesse maduros. Mas, mesmo ceifada, a sua vida nos serve de exemplo. Eu gostaria que nos servisse de esperança. Entretanto, da forma como ela se extinguiu fisicamente nos serve de alerta e isso não pode ser calado.


SERVIÇO


Mulheres do Brasil – A história não contada




Autor: Paulo Rezzutti


Editora LeYa


320 páginas


R$ 59,90





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