Farinha A Mariazinha (Bater na Mulher) - Anos 50
A naturalização da violência através da mídia, "Diário de Notícias", 13 de Fevereiro de 1941
Quer um polêmica do passado? Propaganda dos anos 50 da Farinha de Fava 'A Mariazinha'.
Produto português que, em sua propaganda, recomendava que a mulher consumisse o produto para poder bater no marido, caso ela sofresse alguma violência no lar. Confira:
"Seu marido bate-lhe? E Não pode conter com a força dele? Pois então tome farinha de Fava ou Favacu d'A Mariazinha e verá como cria forças para até o atirar pela janela fora".
Até há relativamente poucos anos, a violência doméstica povoava a vida quotidiana da comunidade de modo indelével mas sem gerar grandes manifestações de indignação.
A apresentação dos cônjuges como a cara-metade traduzia o índice de pertença a uma unidade maior mas, simultaneamente, a referência a uma perda de identidade após o casamento: cada cônjuge não seria senão a metade de um todo e esse todo indivisível constituía a finalidade da relação a dois. A educação, sobretudo das mulheres, dirigia-se a esse projecto comum no qual se realizariam cuidando do marido, da casa, dos filhos, e no qual o marido se realizaria garantindo que nada de material faltava à família. Não surpreende, assim, que o fim da relação conjugal fosse sentido como uma falha dessa unidade na qual os projectos individuais se diluíam e para a qual era necessário encontrar o culpado.
Ensinavam-se alegremente às crianças cantigas de um Sebastião que “come tudo tudo tudo chega a casa e dá pancada na mulher”, ou do “mar que também é casado com a areia, bate nela quando quer”, ou da amante do fado Valentim que clama pelo seu amor “quero o Valentim olaró laró, quero o Valentim, olaró meu bem” mas que, a determinado passo afirma “agora é que eu percebo o valor do pau de marmeleiro”. E não havia espanto que uma marca de farinhas usasse como slogan “Seu marido bate-lhe? Então tome farinha de fava, ou Favacau d’A Mariazinha ... e verá como cria forças para até o atirar pela janela fora!”. Poderia pretender ser apenas um spot publicitário de (duvidoso) humor se não correspondesse, infelizmente, a uma forma comum de acomodar a realidade.
Olhando para a sociedade em que foram educadas gerações e gerações até há não tanto tempo que não nos tivesse permitido presenciar algumas dessas manifestações, verifica-se que o mundo dos preceitos morais, que de modo afincado e rigoroso – rígido, até - nos eram transmitidos, coabitava com um dispositivo lúdico que tinha como matéria prima este tipo de violência.
A acriticidade com que estas cantigas se difundiam poderia traduzir, insensibilidade, alheamento, mas resumir, também, a constatação da impotência para agir numa sociedade em que todos – instâncias formais e comunidade - procuravam instintivamente detectar um comportamento da vítima que pudesse fundamentar, de alguma maneira, a reacção do agressor: o poder correctivo dos pais a tentar conduzir ao bom caminho um filho insurrecto; a paixão incomensurável do agressor imerso na sua dor de não ser já querido por quem jurou uma vida a dois “até que a morte nos separe”; a perturbação incontrolável do amante para quem qualquer conduta menos dependente do ser amado (que julga pertencer-lhe) era sentido como sinal de infidelidade; ou apenas demonstração da incapacidade de se imaginar sozinho num mundo desenhado para dois, ainda que fosse um mundo azedo, triste e violento.
Por outro lado, capear com humor as situações que causam sofrimento foi sempre um artifício usado para permitir um convívio menos doloroso com a realidade.
Os provérbios e frases populares constituem, igualmente, um bom manancial de exemplos que ilustram, não apenas o que se constatava, mas os comportamentos considerados aceitáveis nestes contextos: “entre marido e mulher não metas a colher”, “casa que não é ralhada não é governada”, “amor querido, amor batido”, “quanto mais me bates mais gosto de ti”, “só sabe do convento quem la está dentro” ou o não menos elucidativo, “só se perdem as bofetadas que caem no chão” constituem bons exemplos.
As palavras traduzem conceitos, moldam comportamentos e podem, elas próprias, vitimizar.
Portugal tem construído, ao longo dos últimos anos, um sistema integrado dirigido ao combate contra a violência familiar e à protecção das vítimas de que pode orgulhar-se. Porém, nenhum sistema, por mais bem estruturado que seja, por muitos meios que coloque ao dispor da vítima e do agressor, poderá obter bons resultados por si só.
É indispensável que se mobilizem todos os actores e se convoquem todos os meios para combater e prevenir a violência familiar. Porém, a principal força motriz para modificar comportamentos será a educação. Aprender a compreender e dominar os sentimentos e as emoções, aprender a respeitar o outro incondicionalmente, ensinar a pedir ajuda e onde buscar essa ajuda.
Fortalecer a autoestima torna-se uma exigência, de modo a que se adquira a capacidade de compreender que não se é dono de ninguém e se aceite que o fim de uma relação, por muito dolorosa que seja, não é o fim da vida. Que, se o caminho escolhido pelo outro distar do que se traçou a dois incialmente, o respeito pelos valores da liberdade exigem que se respeite essa decisão. Fortalecer a autoestima e o conhecimento das redes de suporte, para ser capaz de acreditar que é possível a tal “madrugada que eu esperava/ O dia inicial inteiro e limpo” de um amanhã sem medo.
Por outro lado, exige-se que a Justiça seja capaz de encontrar o ponto óptimo que, valorando todas as condicionantes, seja capaz de responsabilizar os agressores sem perpetuar as cantigas e os provérbios da minha infância, isto é, sem ignorar a vítima, sem procurar nela a causa da agressão e sem a revitimizar, ainda que tenha de considerar, e bem, o estado emocional em que o agente se encontre mas sem que tal signifique compreender o facto.
Ana Paula Pinto Lourenço /Docente Universitária
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