Arroz Vermelho-Aportes dos escravos na história do cultivo do arroz africano nas Américas

Assim foi até o século 18, quando os portugueses importaram do sul dos Estados Unidos as sementes do então chamado arroz-da-carolina – melhor, mais produtivo, mais branco e mais rentável. 
O plano da Coroa era substituir por completo as lavouras do arroz-de-veneza pelo novo grão, para isso, baixou um decreto em 1772, em que proibia o cultivo de qualquer outra variedade que não o arroz branco. 














As penas pela reincidência eram severas: um ano de cadeia e cem mil-réis de multa para os homens livres e, para os escravos, “dois anos de calceta com surras interpoladas nesse espaço de tempo”. 
Por “calceta”, entenda uma argola de ferro presa ao tornozelo. 














Documentos históricos sobre o Brasil, de meados do século XVIII, fazem freqüentes referências ao arroz, especialmente a uma espécie de casca vermelha, em uma grande área do nordeste da Amazônia (Primeiro, 1818; Marques, 1870; Chermont, 1885; Alden, 1959; Nunes Dias, 1970; Barata, 1973; Hemming, 1987; Oliveira, 1993; Acevedo, 1998). 

O arroz vermelho novamente torna-se bastante comentado durante a segunda metade do século XVIII, quando um sistema de plantação do arroz desenvolveu-se no leste da Amazônia com o apoio da metrópole. O objetivo era o de desenvolver mercados amazônidas de exportação para Portugal e adjacências, reduzir a dependência do arroz da Carolina do Sul, já que as colônias americanas haviam começado a Guerra Revolucionária (Nunes Dias, 1970; Acevedo, 1998). 
A importância do arroz como base da alimentação das comunidades de quilombolas (maroons) da Guiana já era evidente no século XVIII, quando mercenários europeus foram mandados para recapturá-los; e os quilombolas freqüentemente cultivavam o arroz em áreas descampadas e em pântanos interiores.






A domesticação do arroz africano (Oryza glaberrima) ocorreu há mais de três mil anos em uma região que vai do Senegal à Costa do Marfim, muito antes que algum navegador de Java ou Arábia tivesse introduzido o arroz em Madagascar ou na costa leste africana (Portères, 1976; NRC, 1996: 23)

Do século VIII ao XVI, árabes e europeus mencionam o cultivo do arroz ao longo do interior do delta do Rio Niger e na costa oeste africana, bem como freqüentes compras dos excedentes pelos navegadores portugueses (Ribeiro 1962; Lewicki, 1974; Littlefield, 1981; Brooks, 1993). 
Durante o tráfico de escravos pelo Atlântico, os excedentes de arroz abasteceram os navios de escravos com destino às Américas (Carney, 1996a, b). 
Ademais, apesar dos numerosos estudos sobre o arroz do oeste africano, mesmo no século XX, estudiosos rotineiramente atribuem ao arroz origem asiática, sendo sua difusão para a África dita decorrente dos comerciantes árabes e portugueses (Reznik, 1932; Ribeiro, 1962; Grimé, 1976). 
A primeira está relacionada à história do arroz nas ilhas do Cabo Verde, enquanto a segunda, tratada na próxima parte deste trabalho, analisa a presença da O. glaberrima, conforme documentos, nas regiões de colonização africana nas Américas, onde as cozinhas que utilizavam o arroz ainda mantêm sua importância. 
A partir de meados do século XV, a colonização das Ilhas do Cabo Verde, em especial de Santiago, desenvolveu um ativo comércio com os povos da costa oeste africana de cera, peles, índigo, alimentos, sal e escravos (Brooks, 1993: 130, 129). Desde o século IX o litoral e ilhas distantes da costa da Guiné, da Guiné-Bissau e Serra Leoa foram importantes entrepostos para o comércio de sal a longa distância (Brooks, 1993: 80).

O cultivo do arroz em áreas alagadas sustentou esta vasta rede de comércio, mas esse cultivo somente emergiu como um importante bem de comércio com a chegada dos portugueses. Em torno de 1479, os principais grupos étnicos da região –Baga, Diola, Balanta, Bullom/ Sherbro e Temni– já estavam comercializando sua base alimentar com os portugueses (Rodney, 1970: 21; Carreira, 1984: 27-28; Brooks 1993: 276-96).8 

Em conseqüência desse conhecimento de certa forma tendencioso, pesquisadores falharam ao não considerar a base nativa do conhecimento sobre os sistemas de produção de arroz africano e sua intensa relação com o aparecimento deste cereal nas Américas. 
A proibição durou 120 anos, tempo mais que suficiente para que o arroz-vermelho fosse quase levado à extinção e condenado ao esquecimento. 
Se não sumiu, foi porque virou prato de resistência e subsistência em certos grotões do Nordeste, onde se escondeu para fugir da vigilância da Coroa. 
Está lá até hoje, sob o nome de arroz-da-terra, refugiado em três vales contínuos do sertão nordestino: Piancó e Rio do Peixe, na Paraíba, e Apodi, no Rio Grande do Norte. 
E, mesmo ali, também periga desaparecer. Hoje a área produtiva é três vezes menor que cinco décadas atrás. Ainda assim, podemos considerá-la a maior extensão de arroz-vermelho cultivado no mundo. 
E, ao mesmo tempo, uma espécie de fóssil vivo da alimentação humana, pois se trata da primeira variedade domesticada desse cereal. Só depois é que surgiu o branco, como uma mutação desse grão original. 
“O primeiro arroz do mundo era vermelho”, assegura José Almeida Pereira, pesquisador da Embrapa Meio-Norte e coordenador da Fortaleza do Arroz Vermelho, projeto de desenvolvimento local criado pela Fundação Slow Food. 
 É uma lavoura rara, portanto, pois são poucos os lugares onde ainda se dá valor alimentar a esses grãos. O mais comum é encontrá-los em seu estado selvagem, crescendo como invasores nos arrozais comerciais e alimentando o ódio dos arrozeiros. Tem até campanha no Brasil empenhada em varrer o arroz-vermelho do mapa. 
Tamanho é o estigma que a variedade só deixou de ser considerada oficialmente uma erva daninha em 2009, quando o Ministério da Agricultura revisou a classificação oficial. 
O fato é que, historicamente, houve pouco ou nenhum interesse pelo arroz-vermelho com fins comerciais. Se sobreviveu no sertão, foi mais como uma cultura de subsistência, uma das poucas viáveis numa região isolada e miserável, que só conheceu o arroz branco em meados dos anos 1940. Por falta de opção, virou ingrediente essencial da dieta sertaneja, sobretudo na Paraíba. Ali, e em algumas comunidades rurais do Rio Grande do Norte também, o costume é cozinhá-lo com leite e servi-lo com feijão-de-corda – combinação, no mínimo, excêntrica para os paladares destreinados. 
Mais curioso ainda é o hábito local de polir o arroz-vermelho, retirando justo aquilo que lhe dá cor e sabor, que é a película que reveste cada grão, conhecida como pericarpo. Antigamente, o povo se dava ao trabalho de passar horas socando o arroz no pilão, com a intenção de deixá-lo o mais branco possível. 
Hoje, o serviço é feito em pequenos armazéns de beneficiamento, onde uma máquina chamada “descopadeira”, enorme e barulhenta, se encarrega de descascar e polir os grãos por meio de um sistema de correias. As ilhas do Cabo Verde e o arroz africano Há algumas razões que sugerem o relevante papel do arroz africano no estabelecimento de tal cultivo nas Américas. 
Apesar de rústica, a descopadeira tem papel crucial na manutenção de uma cadeia produtiva sustentável. 
Ela gera três subprodutos, e nenhum é desperdiçado. A casca vai para os aviários, onde se torna a serragem que forra o chão dos galpões. 
Os grãos quebrados, conhecidos como “xerém”, viram ração animal, que é também o mesmo destino do pericarpo. Essa película vermelha, quando retirada, transforma-se num pó altamente nutritivo chamado por aqui de “vitamina”. 
“É lá que está o ferro e o zinco. E vai quase tudo para o porco”, diz Francisco Batista, agrônomo de Piancó (PB) especializado no cultivo do arroz-vermelho. Existe também a questão do sabor, que pode ser uma virtude para um chef de cozinha, mas que no sertão chega a ser motivo de rejeição. “O povo tem preconceito"

Não gosta do vermelho. 
Dizem que a vitamina amarga muito o arroz”, afirma Sueli Lira, moradora da zona rural de Apodi e entusiasta declarada do cereal. 
O gosto é intenso, de fato, mas nada que um bom garfo não possa se acostumar ou um bom cozinheiro não possa adaptar. Sueli mesmo diz que já aprendeu várias receitas, com vitamina e tudo: “Dá pra fazer escondidinho, risoto, doce de coco...”. Sem a vitamina, o que fica é um arroz menos vermelho, menos nutritivo e menos saboroso. 
E, de certa forma, mais parecido com o branco. 
“A influência do arroz comercial é tão grande que as famílias estão polindo o vermelho porque acham o branco mais bonito”, diz José Almeida, da Embrapa. De fato, a chegada do arroz comercial nas últimas décadas trouxe benefícios que as gerações antigas desconheciam, como a maior produtividade, a agilidade no cozimento e, para certos paladares, o sabor mais suave. Sem contar a incomparável vantagem de se comprar um pacote no supermercado com os grãos já descascados e polidos, prontos para o consumo.
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