A Bahia sob o olhar de Stefan Swaig
Stefan Zweig e sua segunda mulher, Lotte, escolheram o Brasil como refúgio às atrocidades que eram cometidas na Europa durante a Segunda Guerra Mundial.
Zweig nasceu a 28 de novembro de 1881 em Viena. Estudou Filosofia e começou a escrever poesias, dramas e traduziu inúmeras obras francesas para o alemão. Pacifista, sonhava com uma Europa unida.
A primeira guerra mundial o desanimou.
Iniciou escrevendo pequenas histórias que o tornaram famoso. Sua origem judaica o obrigou a abandonar a Áustria.
Problemas de consciência, somados à angústia devido à guerra, levou-o ao suicídio em Petrópolis, em 22 de janeiro de 1942.
Suas inúmeras obras foram divulgadas em várias línguas, inclusive “Brasil, país do futuro”, hoje esgotado e raro, graças à falta de sensibilidade e bom senso dos editores brasileiros de livros em papel.
Zweig conduz o leitor a passeios pela Bahia, observa hábitos da cultura brasileira que se destacam aos olhos estrangeiros, como o simples fato de sempre haver um café fresco para receber um visitante.
Além desses dados pitorescos, o autor se aprofunda em uma análise sobre a história e a economia brasileiras, fazendo com que este livro seja, ao mesmo tempo, um documento histórico, uma crônica, um registro de impressões escrito pelas mãos de um célebre autor europeu que se impressionou e se emocionou com o que viu.
Zweig e Lotte empreenderam três viagens ao Brasil.
Na primeira, entre 1940 e 1941, para uma série de palestras pelo país, escreveu da Bahia para Manfred e Hannah Altmann, seus cunhados: "Você não pode imaginar o que significa ver este país que ainda não foi estragado por turistas e tão interessante - hoje estive nas cabanas dos pobres que vivem aqui com praticamente nada (as bananas e mandiocas estão crescendo em volta) e as crianças se desenvolvem como se estivessem no Paraíso -, a casa inteira, desde o chão, lhes custou seis dólares e, por isso, são proprietários para sempre. É uma boa lição ver como se pode viver simplesmente e, comparativamente, feliz - uma lição para todos nós que perdemos tudo e não somos felizes o bastante agora, ao pensar como viver então"
Confira neste trecho:
Com essa cidade teve início o Brasil e, com direito podemos dizê-lo, a América do Sul.
Nessa cidade levantou-se o primeiro pilar da grande ponte lançada sobre o Atlântico, nela originou-se de matéria européia, africana e americana a mistura nova que ainda fermenta eficazmente. Veneremos, pois, a Bahia antes de a admirarmos!
Essa cidade tem a prerrogativa de ancianidade entre todas as da América do Sul.
Com seus quase quatrocentos anos, com suas igrejas, sua catedral e seus castelos, a Bahia é para o Novo Mundo o que para nós europeus são as metrópoles milenárias, o que para nós são Atenas, Alexandria e Jerusalém: um santuário da civilização.
E, como ante uma fisionomia humana, sentimos respeitosamente diante dessa cidade que ela tem uma história, um passado glorioso.
A atitude da Bahia é a de uma rainha viúva, de uma rainha viúva grandiosa como as das peças de Shakespeare.
A Bahia está presa ao passado.
Há muito tempo que entregou o régio poder a uma geração mais nova e sôfrega. Todavia não abdicou, conservou sua posição e, com esta, uma incomparável dignidade.
Altiva e ereta olha do alto para o mar, no qual, séculos atrás, todos os navios se dirigiam para ela; ainda traz os antigos adereços, constituídos por suas igrejas e sua catedral, e essa dignidade de atitude continua a existir na sua população. Podem as cidades mais novas, podem o Rio, Montevidéu, Santiago, Buenos Aires ser hoje mais ricas, mais poderosas, mais modernas, mas a Bahia tem sua história, sua civilização própria, seu modo de vida próprio.
De todas as cidades do Brasil foi ela a que mais fielmente respeitou a tradição. Só pelas suas pedras e ruas se compreende a História do Brasil, só essa cidade nos permite compreender como de Portugal nasceu o Brasil.
A Bahia é uma cidade conservadora, uma cidade fiel à tradição: protegeu seus antigos monumentos contra a apressada invasão do que é novo e, através dos séculos, conservou íntegra, exteriormente, sua fisionomia e, interiormente, sua tradição.
A quem se aproxima da Bahia pelo mar, não se apresenta ela diferente do que o fazia no tempo dos vice-reis e dos imperadores. Em baixo está o porto com suas ruas comerciais, em grande parte modernizadas, e no alto acha-se a cabeça de pedra, a cidade em forma de fortaleza, a cidade que, calma e imponente, esperava o visitante.
Na parte alta foram-se concentrar, há quatro séculos os colonos por trás de estacadas para estarem protegidos contra os assaltos dos piratas e dos aborígenes.
O baluarte de barro pouco a pouco foi sendo substituído por uma muralha, atrás da qual se foi erguendo, com segurança, a cidade; dentro de pouco tempo os seus habitantes ousaram construir igrejas e palácios sobre o rochedo alcantilado, e a cidade conservou assim um admirável perfil, uma linha régia.
Na América do Sul nada posso comparar com essa atitude altiva e majestosa com que a Bahia olha por cima do seu porto e seus castelos para o longe, para o Atlântico. Subindo o caminho íngreme, estreito e ladeado de casas muito velhas, reconhecemos quão rica já foi essa cidade. Ela não está empobrecida hoje, não decaiu. Estacionou apenas, e isso lhe dá a beleza que têm todas as cidades que passaram decênios e séculos sonhando, como Veneza, Bruges, e Aix-les-Bains. Demasiado soberba para impetuosa acompanhar a época moderna e erguer arranha-céus, a fim de rivalizar com o Rio e São Paulo, por outro lado, demasiado viva para decair como as cidades do ouro, de Minas Gerais, permaneceu ela o que era: a cidade do antigo Brasil português, e só nela percebemos a origem do Brasil e a tradição secular deste país. Por toda a parte nessa cidade sentimos a tradição. A Bahia, ao contrário de todas as outras cidades brasileiras, possui um traje próprio, uma cozinha própria e uma cor própria. Em nenhuma outra parte as ruas mostram tanta variedade de cores como na Bahia, onde a população africana e a colonial antiga se conservaram sem grande modificação; sem cessar julgo estar vendo, como quadros vivos, as cenas do “Brasil pittoresque” de Debret, todas aquelas coisas de outrora que já há muito tempo desapareceram das outras cidades grandes. É verdade que automóveis percorrem as ruas da Bahia, mas na cidade velha muares com cangalhas ainda carregam frutas e lenha; nessa cidade ainda podem alugar-se burros por hora, como se alugam automóveis numa cidade moderna, e no porto a carga, como nos tempos dos fenícios e dos romanos, não é embarcada por meio de guindastes, é transportada para bordo às costas de carregadores.
Vendedores ambulantes com seus chapéus de palha de abas largas trazem sobre os ombros, como se fosse o travessão de uma enorme balança, um pau de cujas extremidades pendem os cestos com a mercadoria, e na feira noturna os feirantes estão sentados diretamente no chão junto a velas ou a chamas de gás acetileno, entre montões de laranjas, abóboras, bananas e cocos. Ao passo que estão atracados ao cais os grandes e poderosos transatlânticos, baloiçam ainda próximo da terra as pequenas embarcações de vela que chegam das ilhas e vão para elas e cujos mastros formam uma floresta oscilante. E até ainda se vêem as jangadas, que constituem uma curiosidade sem par. São formadas de três ou quatro troncos de árvore ligados entre si sem nenhuma arte, e encima desse conjunto há um assento estreito. Não se pode imaginar coisa mais primitiva que essas jangadas. Mas seus tripulantes saem nelas para o mar alto; é incrível que haja tanta coragem. Conta-se que um vapor norteamericano, havendo avistado uma dessas embarcações distante do litoral, dirigiu-se para ela, pensando que se tratasse de uma jangada de náufragos.
Na Bahia tudo, com as mais variadas cores, se mistura, o presente e o passado. Nessa capital encontra-se a velha Universidade com a sua celebérrima Faculdade, a mais velha do país, a Biblioteca, o Palácio do Governo, hotéis e clubes esportivos modernos. Basta andarmos mais duas ruas e achamo-nos numa esfera portuguesa; casinhas baixas, cheias de pessoas, de atividade, com as mil formas do trabalho manual, e logo atrás os mocambos, as choças de crioulos, entre bananeiras e pés de árvore-do-pão.
Há ruas asfaltadas e muito perto delas ruas calçadas com pedras brutas; na Bahia podemos, num período de dez minutos, estar em dois, três ou quatro séculos diferentes, e todos eles parecem genuínos. O verdadeiro encanto da Bahia reside no fato de nela tudo ainda ser genuíno e não propositado; as chamadas “coisas dignas de serem vistas” não se impõem ao forasteiro, acham-se incorporadas de um modo imperceptível, no conjunto. Velho e novo, presente e passado, luxuoso e primitivo, 1600 e 1940, tudo isso se une para formar um só quadro, emoldurado por uma das mais tranqüilas e aprazíveis paisagens do mundo. No permanente pitoresco o que há de mais pitoresco são as baianas, as pretas gordas, de olhos escuros, com seu vestuário especial.
Esse vestuário, as baianas, mesmo as mais pobres, usam-no sempre, todos os dias, e não podemos imaginar outro mais pomposo. Não é comparável com nenhum outro, não é africano, não é oriental, não é português, mas sim, os três ao mesmo tempo. Consiste num turbante, enroscado com apurada arte, vermelho, verde, amarelo, azul ou multicor, mas sempre de tom vivo, uma bata branca e uma saia de enorme roda e com a forma de sino.
Não posso deixar de suspeitar que as avós ou bisavós dessas crioulas na época da saia-balão tivessem visto em suas senhoras portuguesas as crinolinas e houvessem conservado essa moda em seus vestidos de chita, como símbolo de distinção. Ainda um pano dramaticamente lançado sobre os ombros, que também serve para pôr sobre a cabeça quando sobre ela carregam potes d’água ou grandes cestos, e mais umas pulseiras de metal barato. Assim anda trajada cada uma dessas pretas baianas, cada qual, porém, com outras cores, outros matizes.
Mas a imponência dessas baianas propriamente não está no traje, está no garbo com que o usam, no seu modo de andar, nas suas maneiras. Sentadas no mercado ou na soleira duma porta, dispõem elas a sua saia como se fosse um manto real, de modo que parecem estar sentadas dentro duma enorme flor. Nessa atitude imponente, vendem essas princesas de cor as mercadorias mais baratas deste mundo, iguarias gordurosas ou condimentadas que preparam num fogareiro de carvão, iguarias tão baratas que uma folha de papel seria muito cara para nela as embrulharem.
As iguarias são entregues aos fregueses em pedaços de folha de bananeira. Essas baianas têm no andar a mesma majestade que apresentam quando assentadas.
Carregam sobre a cabeça uma arroba, cestos com roupa, peixe, ou frutas; é um prazer vê-las andarem com isso pelas ruas, de pescoço altivamente erguido, com as mãos nos quadris, com o olhar sério e desembaraçado.
Um ensaiador que tenha que ensaiar um drama no qual apareçam personagens régias, poderá aprender muito vendo essas princesas do mercado e da cozinha. À noite, quando as vemos em suas cozinhas escuras, apenas iluminadas pelas chamas do fogão, preparando com misterioso zelo as singulares iguarias, não podemos deixar de pensar nas feiticeiras da antigüidade. Não, não há nada mais pitoresco do que as pretas da Bahia, nada mais variegado, mais genuíno, mais original do que as ruas dessa cidade. A Bahia, e só a Bahia nos permite conhecer e compreender o Brasil (por Stefan Zweig, In: Brasil, país do futuro).
Zweig nasceu a 28 de novembro de 1881 em Viena. Estudou Filosofia e começou a escrever poesias, dramas e traduziu inúmeras obras francesas para o alemão. Pacifista, sonhava com uma Europa unida.
A primeira guerra mundial o desanimou.
Iniciou escrevendo pequenas histórias que o tornaram famoso. Sua origem judaica o obrigou a abandonar a Áustria.
Problemas de consciência, somados à angústia devido à guerra, levou-o ao suicídio em Petrópolis, em 22 de janeiro de 1942.
Suas inúmeras obras foram divulgadas em várias línguas, inclusive “Brasil, país do futuro”, hoje esgotado e raro, graças à falta de sensibilidade e bom senso dos editores brasileiros de livros em papel.
Zweig conduz o leitor a passeios pela Bahia, observa hábitos da cultura brasileira que se destacam aos olhos estrangeiros, como o simples fato de sempre haver um café fresco para receber um visitante.
Além desses dados pitorescos, o autor se aprofunda em uma análise sobre a história e a economia brasileiras, fazendo com que este livro seja, ao mesmo tempo, um documento histórico, uma crônica, um registro de impressões escrito pelas mãos de um célebre autor europeu que se impressionou e se emocionou com o que viu.
Zweig e Lotte empreenderam três viagens ao Brasil.
Na primeira, entre 1940 e 1941, para uma série de palestras pelo país, escreveu da Bahia para Manfred e Hannah Altmann, seus cunhados: "Você não pode imaginar o que significa ver este país que ainda não foi estragado por turistas e tão interessante - hoje estive nas cabanas dos pobres que vivem aqui com praticamente nada (as bananas e mandiocas estão crescendo em volta) e as crianças se desenvolvem como se estivessem no Paraíso -, a casa inteira, desde o chão, lhes custou seis dólares e, por isso, são proprietários para sempre. É uma boa lição ver como se pode viver simplesmente e, comparativamente, feliz - uma lição para todos nós que perdemos tudo e não somos felizes o bastante agora, ao pensar como viver então"
Confira neste trecho:
Com essa cidade teve início o Brasil e, com direito podemos dizê-lo, a América do Sul.
Nessa cidade levantou-se o primeiro pilar da grande ponte lançada sobre o Atlântico, nela originou-se de matéria européia, africana e americana a mistura nova que ainda fermenta eficazmente. Veneremos, pois, a Bahia antes de a admirarmos!
Essa cidade tem a prerrogativa de ancianidade entre todas as da América do Sul.
Com seus quase quatrocentos anos, com suas igrejas, sua catedral e seus castelos, a Bahia é para o Novo Mundo o que para nós europeus são as metrópoles milenárias, o que para nós são Atenas, Alexandria e Jerusalém: um santuário da civilização.
E, como ante uma fisionomia humana, sentimos respeitosamente diante dessa cidade que ela tem uma história, um passado glorioso.
A atitude da Bahia é a de uma rainha viúva, de uma rainha viúva grandiosa como as das peças de Shakespeare.
A Bahia está presa ao passado.
Há muito tempo que entregou o régio poder a uma geração mais nova e sôfrega. Todavia não abdicou, conservou sua posição e, com esta, uma incomparável dignidade.
Altiva e ereta olha do alto para o mar, no qual, séculos atrás, todos os navios se dirigiam para ela; ainda traz os antigos adereços, constituídos por suas igrejas e sua catedral, e essa dignidade de atitude continua a existir na sua população. Podem as cidades mais novas, podem o Rio, Montevidéu, Santiago, Buenos Aires ser hoje mais ricas, mais poderosas, mais modernas, mas a Bahia tem sua história, sua civilização própria, seu modo de vida próprio.
De todas as cidades do Brasil foi ela a que mais fielmente respeitou a tradição. Só pelas suas pedras e ruas se compreende a História do Brasil, só essa cidade nos permite compreender como de Portugal nasceu o Brasil.
A Bahia é uma cidade conservadora, uma cidade fiel à tradição: protegeu seus antigos monumentos contra a apressada invasão do que é novo e, através dos séculos, conservou íntegra, exteriormente, sua fisionomia e, interiormente, sua tradição.
A quem se aproxima da Bahia pelo mar, não se apresenta ela diferente do que o fazia no tempo dos vice-reis e dos imperadores. Em baixo está o porto com suas ruas comerciais, em grande parte modernizadas, e no alto acha-se a cabeça de pedra, a cidade em forma de fortaleza, a cidade que, calma e imponente, esperava o visitante.
Na parte alta foram-se concentrar, há quatro séculos os colonos por trás de estacadas para estarem protegidos contra os assaltos dos piratas e dos aborígenes.
O baluarte de barro pouco a pouco foi sendo substituído por uma muralha, atrás da qual se foi erguendo, com segurança, a cidade; dentro de pouco tempo os seus habitantes ousaram construir igrejas e palácios sobre o rochedo alcantilado, e a cidade conservou assim um admirável perfil, uma linha régia.
Na América do Sul nada posso comparar com essa atitude altiva e majestosa com que a Bahia olha por cima do seu porto e seus castelos para o longe, para o Atlântico. Subindo o caminho íngreme, estreito e ladeado de casas muito velhas, reconhecemos quão rica já foi essa cidade. Ela não está empobrecida hoje, não decaiu. Estacionou apenas, e isso lhe dá a beleza que têm todas as cidades que passaram decênios e séculos sonhando, como Veneza, Bruges, e Aix-les-Bains. Demasiado soberba para impetuosa acompanhar a época moderna e erguer arranha-céus, a fim de rivalizar com o Rio e São Paulo, por outro lado, demasiado viva para decair como as cidades do ouro, de Minas Gerais, permaneceu ela o que era: a cidade do antigo Brasil português, e só nela percebemos a origem do Brasil e a tradição secular deste país. Por toda a parte nessa cidade sentimos a tradição. A Bahia, ao contrário de todas as outras cidades brasileiras, possui um traje próprio, uma cozinha própria e uma cor própria. Em nenhuma outra parte as ruas mostram tanta variedade de cores como na Bahia, onde a população africana e a colonial antiga se conservaram sem grande modificação; sem cessar julgo estar vendo, como quadros vivos, as cenas do “Brasil pittoresque” de Debret, todas aquelas coisas de outrora que já há muito tempo desapareceram das outras cidades grandes. É verdade que automóveis percorrem as ruas da Bahia, mas na cidade velha muares com cangalhas ainda carregam frutas e lenha; nessa cidade ainda podem alugar-se burros por hora, como se alugam automóveis numa cidade moderna, e no porto a carga, como nos tempos dos fenícios e dos romanos, não é embarcada por meio de guindastes, é transportada para bordo às costas de carregadores.
Vendedores ambulantes com seus chapéus de palha de abas largas trazem sobre os ombros, como se fosse o travessão de uma enorme balança, um pau de cujas extremidades pendem os cestos com a mercadoria, e na feira noturna os feirantes estão sentados diretamente no chão junto a velas ou a chamas de gás acetileno, entre montões de laranjas, abóboras, bananas e cocos. Ao passo que estão atracados ao cais os grandes e poderosos transatlânticos, baloiçam ainda próximo da terra as pequenas embarcações de vela que chegam das ilhas e vão para elas e cujos mastros formam uma floresta oscilante. E até ainda se vêem as jangadas, que constituem uma curiosidade sem par. São formadas de três ou quatro troncos de árvore ligados entre si sem nenhuma arte, e encima desse conjunto há um assento estreito. Não se pode imaginar coisa mais primitiva que essas jangadas. Mas seus tripulantes saem nelas para o mar alto; é incrível que haja tanta coragem. Conta-se que um vapor norteamericano, havendo avistado uma dessas embarcações distante do litoral, dirigiu-se para ela, pensando que se tratasse de uma jangada de náufragos.
Na Bahia tudo, com as mais variadas cores, se mistura, o presente e o passado. Nessa capital encontra-se a velha Universidade com a sua celebérrima Faculdade, a mais velha do país, a Biblioteca, o Palácio do Governo, hotéis e clubes esportivos modernos. Basta andarmos mais duas ruas e achamo-nos numa esfera portuguesa; casinhas baixas, cheias de pessoas, de atividade, com as mil formas do trabalho manual, e logo atrás os mocambos, as choças de crioulos, entre bananeiras e pés de árvore-do-pão.
Há ruas asfaltadas e muito perto delas ruas calçadas com pedras brutas; na Bahia podemos, num período de dez minutos, estar em dois, três ou quatro séculos diferentes, e todos eles parecem genuínos. O verdadeiro encanto da Bahia reside no fato de nela tudo ainda ser genuíno e não propositado; as chamadas “coisas dignas de serem vistas” não se impõem ao forasteiro, acham-se incorporadas de um modo imperceptível, no conjunto. Velho e novo, presente e passado, luxuoso e primitivo, 1600 e 1940, tudo isso se une para formar um só quadro, emoldurado por uma das mais tranqüilas e aprazíveis paisagens do mundo. No permanente pitoresco o que há de mais pitoresco são as baianas, as pretas gordas, de olhos escuros, com seu vestuário especial.
Esse vestuário, as baianas, mesmo as mais pobres, usam-no sempre, todos os dias, e não podemos imaginar outro mais pomposo. Não é comparável com nenhum outro, não é africano, não é oriental, não é português, mas sim, os três ao mesmo tempo. Consiste num turbante, enroscado com apurada arte, vermelho, verde, amarelo, azul ou multicor, mas sempre de tom vivo, uma bata branca e uma saia de enorme roda e com a forma de sino.
Não posso deixar de suspeitar que as avós ou bisavós dessas crioulas na época da saia-balão tivessem visto em suas senhoras portuguesas as crinolinas e houvessem conservado essa moda em seus vestidos de chita, como símbolo de distinção. Ainda um pano dramaticamente lançado sobre os ombros, que também serve para pôr sobre a cabeça quando sobre ela carregam potes d’água ou grandes cestos, e mais umas pulseiras de metal barato. Assim anda trajada cada uma dessas pretas baianas, cada qual, porém, com outras cores, outros matizes.
Mas a imponência dessas baianas propriamente não está no traje, está no garbo com que o usam, no seu modo de andar, nas suas maneiras. Sentadas no mercado ou na soleira duma porta, dispõem elas a sua saia como se fosse um manto real, de modo que parecem estar sentadas dentro duma enorme flor. Nessa atitude imponente, vendem essas princesas de cor as mercadorias mais baratas deste mundo, iguarias gordurosas ou condimentadas que preparam num fogareiro de carvão, iguarias tão baratas que uma folha de papel seria muito cara para nela as embrulharem.
As iguarias são entregues aos fregueses em pedaços de folha de bananeira. Essas baianas têm no andar a mesma majestade que apresentam quando assentadas.
Carregam sobre a cabeça uma arroba, cestos com roupa, peixe, ou frutas; é um prazer vê-las andarem com isso pelas ruas, de pescoço altivamente erguido, com as mãos nos quadris, com o olhar sério e desembaraçado.
Um ensaiador que tenha que ensaiar um drama no qual apareçam personagens régias, poderá aprender muito vendo essas princesas do mercado e da cozinha. À noite, quando as vemos em suas cozinhas escuras, apenas iluminadas pelas chamas do fogão, preparando com misterioso zelo as singulares iguarias, não podemos deixar de pensar nas feiticeiras da antigüidade. Não, não há nada mais pitoresco do que as pretas da Bahia, nada mais variegado, mais genuíno, mais original do que as ruas dessa cidade. A Bahia, e só a Bahia nos permite conhecer e compreender o Brasil (por Stefan Zweig, In: Brasil, país do futuro).
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