'Já produzimos proteína para 7 bilhões de pessoas', diz chef do movimento 'Da granja à mesa'

Por Amelia Gonzales
“Não se faz boa comida sem bons ingredientes. 
Comida precisa ter sabor, e isso só se consegue com culturas cuidadosas,  sem uso de produtos químicos. O agronegócio quer variedades que durem muito, que não se estraguem em longas viagens, não está procurando estimular o sabor, nem a nutrição”.



















Até há pouco tempo, os chefs de cozinha ficavam na masmorra de seus territórios de trabalho e pouco se ouvia falar deles. Isso vem mudando. Os experts ganharam em notoriedade à medida que passaram a se envolver profundamente com questões ligadas aos alimentos, à nutrição, e à necessidade de se mudar o conceito de agricultura. Nós, o público em geral, ganhamos com a possibilidade de refletir sobre o tema com pessoas que se cercam de informações e estão absolutamente engajados, têm conhecimento. 
O resultado disso são os variados tipos de programas, documentários e palestras que temos visto e ouvido sobre comida, nutrição, os melhores alimentos, por aí vai.


No fim de semana que passou, assisti a um episódio da série documental “Chef’s Table”, realizada pela Netflix sobre o cotidiano e a ideologia de Dan Barber, chef norte-americano que vem se dedicando a mostrar ao mundo a importância dos sabores na comida. As observações que escrevi na abertura deste texto são dele.

Dan Barber se tornou uma espécie de voz corrente do movimento “Da granja à mesa”, que valoriza os alimentos orgânicos. E é um crítico feroz  à falsa preocupação sobre como alimentar 7 bilhões de pessoas. Falsa porque a questão não está na falta de alimentos.

“Nós já produzimos calorias suficientes para mais do que 7 bilhões de pessoas e, mesmo assim, quase um bilhão vai passar fome hoje no mundo. Isso é devido à enorme desigualdade na distribuição, não na tonelagem”, diz ele.

Há quem acrescente: falta dinheiro, não comida. Mas, isso é outra  história, que vai me fazer voltar à desigualdade social,  produto acabado do sistema capitalista, tema recorrente em minhas reflexões.  

Vamos, portanto, voltar ao documentário, que recupera bastante a trajetória de Dan Barber desde quando ele se tornou preocupado, por exemplo, com o fato de usar produtos que estão fora da estação. É uma lição e tanto até para quem, como eu, se envolve apenas com compras semanais.

Dan Barber tinha um restaurante normal, ou seja, sem a preocupação ecológica que tem hoje quando, um dia, por um erro de cálculo, ficou com uma quantidade absurda de aspargos na geladeira. Depois de lançar alguns impropérios ao ar, o chef decidiu ousar: naquele dia todos os pratos do restaurante conteriam aspargos, já que, ele descobriu depois, o produto estava na estação, portanto mais barato e mais gostoso. O que poderia ter sido um tiro no pé, uma loucura com poucas chances de dar certo, acabou sendo muito bem recebido por um crítico de gastronomia que apareceu para jantar.

"Ele nos chamou de novo exemplo da granja à mesa. E assim meu restaurante começou a chamar atenção, sobretudo de pessoas mais jovens, antenadas com questões de alimentos éticos e sustentáveis, que passaram a querer trabalhar comigo”, conta ele.

O sabor da comida é a principal meta de Dan Barber, e ele a segue quase obsessivamente.

“Não sou ativista, mas aprendi que quando se quer o melhor sabor é preciso usar os melhores ingredientes. E quando se busca os melhores ingredientes acaba-se caindo em ótimas produções rurais orgânicas”, conta ele.

Nem era preciso dizer, mas Dan Barber reafirma sua posição crítica à gastronomia como ela é exercida hoje, quando ataca ferozmente o jeito norte-americano de se alimentar. Para ele, os Estados Unidos sempre foram a terra da abundância, o que fez com que seu povo se distanciasse da culinária mais sofisticada. As melhores culinárias do mundo vêm de países e povos que passaram por muitas privações, lembra ele.

“A cozinha norte-americana atual tem ingredientes medianos em grande abundância. E ponto final”, avalia o chef.

Enquanto Dan Barber fala, as câmeras, sob direção de David Gelb, vão deliciando os espectadores com cenas  espetaculares de alimentos frescos, servidos à mesa de maneira quase artesanal. Dan Barber tem um restaurante no coração de Nova York, o Blue Hill, e tem outro que fica nas montanhas. Ali os visitantes experimentam o sabor de alimentos e animais plantados e criados de maneira simbiótica com a natureza, sem interferências químicas ou maus-tratos.

“Para ter boa grama é preciso ter vaca no campo. Para ter leite suficiente desses animais, devo apoiar a melhoria contínua do pasto e, para isso, criamos galinhas, o melhor jeito de quebrar o esterco das vacas leiteiras e espalhá-lo pelo campo. Para impedir que a floresta invadisse nosso campo, criamos cabras, que comem as sarças que as vacas não comem. E, depois de empurrar a floresta, tivemos a chance de começar a trabalhar com porcos. Quando a gente se aprofunda nessas relações simbióticas, só vamos melhorando o capim. Apoiar a melhoria contínua do sistema como um todo é a meta pelo sabor melhor”, conta ele.

A civilização ocidental foi baseada no trigo, que representa 65% da nossa agricultura. Legumes e verduras ocupam apenas 6%. Ocorre que perdemos o sabor do trigo e os benefícios que ele faz à saúde por causa da necessidade que a indústria alimentícia tem de transformá-lo em alimento não perecível, de fácil ingestão.

Dan Barber cita Michael Pollan, jornalista e ativista da forma orgânica de fazer cultura de comidas, que perpetuou a frase: “Você é o que você come, mas sua comida também se alimenta”.  Nesse momento do documentário, a conversa acontece com estudantes e outros chefs numa visita a uma fazenda de cultura orgânica.  Dan Barber se emociona, fica de fato muito feliz, quando o dono da fazenda conta que estão fazendo uma experiência de dar pimentões vermelhos para as galinhas. Elas não sentem a capsaicina presente nesses produtos, portanto alimentá-las assim é um sistema natural, vai explicando o fazendeiro. E os ovos saem com uma cor diferente.

“É  isso, adoro isso! Precisamos de um novo conceito de agricultura!”, disse Barber.

É, precisamos sim, mas que não seja uma armadilha. Desde a primeira revolução agrícola, os humanos vêm tentando se alimentar, a mais necessária das tarefas, de diversas maneiras. Lendo “A Brief History  of Humankind” (Harper), best-seller recém-lançado pelo historiador Yuval Noah Harari (ainda sem tradução no Brasil), no capítulo dedicado à nutrição, há uma interessante história sobre o trigo. Na verdade, sobre como o homem se deixou sequestrar pelo trigo.  Há dez mil anos,  o território do trigo era confinado no Oriente Médio, mas depois da Revolução  Agrícola o grão se espalhou por todo o mundo. Sempre numa relação muito difícil, sempre exigindo muito do homem.
É o que o historiador chama de armadilha, da qual os seres humanos não conseguem se livrar. Precisa ser criativo, precisa soltar amarras até mesmo na hora de se alimentar. Acho que é por aí.

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