Tacacá com tucupi por Mario de Andrade

O escritor paulistano Mario de Andrade (1893-1945), entre suas valiosas produções literárias e pesquisas, antecedeu em quase um século o interesse pela Culinária brasileira, marcando seu pioneirismo também nessa área. Seria um bom mote para o centenário daquela que seria lembrada no Brasil afora como Semana de Arte Moderna de 1922

"Tacacá com Tucupi", uma crônica deliciosa em que Mário de Andrade traça um panorama das iguarias do país de Macunaíma.

"De modo grosseiro", escreve Mário, "pode-se dizer que há uma ascensão geográfica quanto ao refinamento e à delicadeza da culinária nacional. À medida que avançamos para o Norte, mais os pratos se tornam delicados."

Tacacá com tucupi

Quem me chamou uma atenção mais pensamentosa para a cozinha brasileira foi, uns quinze anos atrás, o poeta Blaise Cendrars. Desde que teve conhecimento dos pratos nossos, ele passou a sustentar a tese de que o Brasil tinha cultura própria (ou melhor: teria, se quisesse...), pois que apresentava uma culinária completa e específica. Sem impertinência doutrinária, era apenas como viajante de todas as terras que Blaise Cendrars falava assim. 

A tese lhe vinha da experiência, e o poeta garantia que jamais topara povo possuindo cozinha nacional que não possuísse cultura própria também.

Pouco lhe importava que a maioria dos nossos pratos derivasse de outros vindos da África, da Ásia ou da península ibérica, todos os povos são complicadas misturas arianas.

O importante é que, fundindo princípios constitucionais de pratos asiáticos e elementos decorativos de condimentação africana, modificando pratos ibéricos, chegamos a uma cozinha original e inconfundível. E completa.

Alguns comedores bons discordam de que a nossa cozinha seja completa. Acham-na pesada e incapaz de criar jantares dignos, leves e cerimoniais.

Culinária própria de almoço, exclusivamente. Não há dúvida que a maioria dos nossos pratos principais é pesada, mesmo grosseira. Pratos como a panelada de carneiro nordestina, o vatapá baiano, o tutu com torresmo são de violência estabanada. 

O efó preparado à baiana é tão brutalmente delirante que nem somos nós que o comemos, ele é que nos devora. 

A primeira vez que ingeri uma colherada de efó, a sensação exata que tive foi essa de estar sendo comido por dentro. Pratos que implicam a sesta na rede e o entre-sono... Alguns mesmo nos deixam num tal estado de burrice (de sublime burrice, está claro) que não é possível, depois deles, comentar sequer Joaquim Manuel de Macedo.

Mas isto é meia verdade, e dentro da nossa culinária variadíssima temos o que comer a qualquer hora do dia e da noite. O sururu alagoano bem como o dulcíssimo pitu nordestino são espécies delicadíssimas de manjar. 

Em todo caso, de modo grosseiro, pode-se dizer que há uma ascensão geográfica quanto ao refinamento e delicadeza da culinária nacional. À medida que avançamos para o Norte, mais os pratos se tornam delicados.

Se principiamos no Sul, o churrasco gaúcho nem pode-se dizer que seja prato de mesa; é antes comida de campo que tira parte do seu encanto em ser provada de pé, entre os perfumes do vento e do fogo perto. 

E faz grande exceção em toda a nossa culinária característica, por ser um prato simples, que não se inspira apenas no seu elemento básico para combinações mais complexas, antes procura revelar a carne em toda a sua mensagem. Dir-se-ia, neste sentido, um prato inglês. Porque, filosoficamente falando, desculpem, diremos que a culinária pode se orientar por duas apenas das três grandes ideias normativas que regem nossa humanidade: pelo Bem e pelo Belo. 

Está claro que, sendo necessariamente verdadeira e não interessando imediatamente ao... pensamento puro, a culinária põe a Verdade de banda. 

As cozinhas francesa e inglesa podem comparecer como protótipos das duas orientações normativas da culinária.

A inglesa se orienta pela ideia do Bem: mais simples, mais franca, buscando apenas variar pelos molhos a monotonia das suas bases. Até o seu uísque de após janta, mais digestivo e funerário, é um valor fácil como a maioria dos heróis shakespearianos, se o compararmos ao sabor montaigne de uma fine. 

A cozinha francesa se orienta francamente pela ideia do Belo. As bases alimentares quase desaparecem, sutilizadas às vezes em combinações de um inesperado miraculoso. Isso é invenção desnecessária, é arte às vezes do mais gratuito hedonismo.

Em geral a nossa culinária se dirige também pelas normas do Belo. Vindo do Sul para esta zona caipira, os nossos pratos já são ricas multiplicações. Em alguns deles chega a ser difícil descobrir qual a base alimentar inspiradora. 

A feijoada, por exemplo, em que o feijão deixou de ser o fundamento, pra se tornar o dissolvente das carnes fortes. E quase o mesmo diríamos do nosso cuscuz paulista, que pondo de parte a farinha, se determina pela combinação principal, "cuscuz de galinha", "cuscuz de camarão".

Com a Bahia a violência dos pratos se acentua em mesa bem mais variada. Estamos no auge da influência negra: e uma brutalidade de zabumba, agressivamente misteriosa, cheia de carícias estupefacientes, arrasa os paladares, que caem no santo, completamente divinizados.

Da Bahia pro Norte, os grandes pratos vão se tornando cada vez mais delicados. É certo que continuam ainda pratos ásperos, vem a panelada, vem o trágico tacacá com tucupi. Mas o Nordeste concorre com os seus pitus e sururus; e então uma sioba cremosa deslizando sobre o feijão de coco em calda, servida em porcelana translucidamente branca, isso é prato para o mais granfino jantar.

 Mas, a meu ver, onde a culinária brasileira atinge suas maiores possibilidades de refinamento é na Amazônia.

Todos já perceberam que pus de lado certas caças, encontráveis mais ou menos por todo o país, que podem nos dar pratos da maior delicadeza. 

O macuco baixa do poleiro com seu sabor tão silencioso; e vem a ingênua paca no seu gosto irônico de estarmos prejudicando virgens; e principalmente o tatu-galinha, uma das nossas mais perfeitas carnes como sutileza do tecido. Mas são carnes que ainda não se culturaram e não sabemos tratar. 

A rusticidade jesuítica dos nossos costumes rurais ignora esse requinte pecaminoso de descansar suficientemente uma caça, de modo que a asperidade do mato fique apenas como um... background do paladar.

Não. É na Amazônia que melhormente podemos jantar. É lá que se encontra o nosso mais fino pescado de água-doce, ninguém pode imaginar o que seja uma pescadinha do Solimões!

Ninguém pode imaginar o que é um "casquinho de caranguejo" distraidamente pulverizado com farinha-d'água. 

A tartaruga, principalmente a tracajá mais risonha, dá vários pratos suaves, e o pato de Marajó vagamente condimentado com o tucupi picante... Devo acabar aqui, pois estou ficando com vontade de comparar tais sabores com Morgan, Bergson e o engenhoso fidalgo Valéry.

E certas frutas, principalmente o bacuri perfume puro, tratadas sem açúcar, viriam finalizar tais jantares, como versos de Rilke. E assim é que, nestes tempos aviatórios, a minha experiência já vos pode dar este conselho: Almoça-se pelo Brasil, janta-se no Amazonas.


O Estado de São Paulo, 28 de maio de 1939

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