Recheados de "carbono azul", manguezais ganham destaque no combate às mudanças climáticas

Texto: Herton Escobar

Arte: Guilherme Castro

Nascido e criado na lama, com um pé na terra e outro no mar, hora seco, hora submerso pelo incansável vai-e-vem das marés, o manguezal é um ecossistema acostumado a mudanças e adversidades. Nem mesmo ele, porém, está imune ao impacto das mudanças climáticas que açoitam o planeta com intensidade cada vez maior. “O manguezal aguenta quase tudo, mas até ele tem um limite”, diz a professora Yara Schaeffer Novelli, do Instituto Oceanográfico (IO) da USP, matriarca acadêmica da ecologia de manguezais no Brasil. Modificações ambientais que costumavam ocorrer ao longo de milhares de anos estão ocorrendo, agora, num único ciclo de vida, impulsionadas pela ação humana. “São alterações muito grandes num tempo muito curto. Não há ecossistema que suporte isso”, alerta a professora ao Jornal da USP. 

Isso é má notícia não só para os bichos e plantas desses ecossistemas costeiros, mas também para os seres humanos em geral, incluindo aqueles que nunca pisaram nem planejam afundar um dia os pés na lama de um manguezal. Distribuídos ao longo das franjas de quase toda a linha de costa brasileira — do extremo Norte do Amapá até meados do litoral de Santa Catarina — os manguezais cobrem apenas 0,16% do território brasileiro, mas possuem uma relevância socioambiental que se projeta muito além de sua extensão territorial. 


Pôster com dados e ilustrações dos manguezais no Brasil, produzido especialmente para esta reportagem. 









Serviços ecossistêmicos

O armazenamento de carbono é apenas um dos muitos serviços ecossistêmicos e socioambientais prestados à humanidade pelos manguezais. Seu papel mais famoso, talvez, seja o de berçário da vida marinha. 

Cientistas estimam que cerca de três quartos (entre 70% e 80%) das espécies marinhas de valor comercial para a pesca utilizam o manguezal em alguma fase do seu desenvolvimento (para procriar, se alimentar ou crescer) e, portanto, dependem desse ecossistema para sobreviver — mesmo que, no fim da linha, sejam pescadas muito longe dali. “Não corte o mangue porque pode morrer a vida que tem dentro do mar”, diz o refrão de uma música do educador Carlinhos de Tote, do grupo Cantarolama, em Maragogipe (BA), que há mais de quatro décadas trabalha pela preservação dos manguezais no Brasil. (Clique aqui para ouvir a música, apresentada no seminário Manguezais na Década dos Oceanos.) 

Robalo, tainha e camarão-sete-barbas são alguns exemplos de espécies marinhas que se criam dentro do manguezal; além de tantas outras que podem não ter valor comercial para a pesca, mas são igualmente valiosíssimas para a saúde dos ecossistemas costeiros e marinhos. O gigantesco mero (Epinephelus itajara), uma espécie criticamente ameaçada de extinção no Brasil, por exemplo, passa os primeiros anos de vida no manguezal antes de migrar para o oceano na vida adulta.

“O manguezal para nós é um mundo diferente, né? Porque tudo no manguezal se cria; o peixe, o camarão, as ostras que a gente come e vende, se cria tudo no manguezal. É o nosso berçário, né?”, diz o pescador e guia turístico Sergio Neves, um legítimo caiçara da Ilha do Cardoso, no litoral Sul de São Paulo.  

Mesmo dentro de uma unidade de conservação, com manguezais extremamente saudáveis, Neves percebe claramente os efeitos do aquecimento global e das mudanças climáticas sobre a paisagem, com impactos diretos sobre o ecossistema e a vida das comunidades locais, que tiram da natureza o seu sustento. Tempestades, ventanias e outros fenômenos meteorológicos extremos estão cada vez mais frequentes, intensos e destrutivos, segundo ele. A elevação do nível do mar fez aumentar o alcance das marés e a força dos ventos, principalmente nas frentes frias, que também parecem chegar com uma frequência cada vez maior. As ondas erodem a costa e jogam areia do oceano para dentro do estuário, soterrando os manguezais.  

Em 2018, a entrada de uma forte frente fria, aliada a uma maré de lua cheia, sacramentou o rompimento de um trecho de praia na Enseada da Baleia, no extremo sul do Parque Estadual da Ilha do Cardoso, que resultou na abertura de uma nova barra (passagem conectando o oceano e o estuário) e na morte de um grande trecho de manguezal bem à frente dela. “Foi um processo erosivo natural, mas ampliado por um evento extremo”, avalia Lignon.

“Com isso, o que acontece é que diminui a fartura, né? Diminui o peixe; o camarão que se reproduz ali deixa de se reproduzir”, explica Neves. “Não tendo esse berçário, vai diminuir (a pesca) no marzão lá fora também”, completa ele. Palavras da sabedoria caiçara, em perfeita sintonia com a ciência.  

“Os grandes defensores dos manguezais hoje, sem dúvida, são as comunidades tradicionais organizadas”, que entendem perfeitamente a importância desses ecossistemas, diz o professor Coelho Junior, da UPE. Por isso a preservação dos manguezais é uma das principais bandeiras de gestão da Área de Proteção Ambiental Costa dos Corais, a maior unidade de conservação marinha do Brasil, que se estende por 120 quilômetros entre o litoral Norte de Alagoas e Sul de Pernambuco, região onde Coelho Junior atua desde que concluiu a pós-graduação no IO, em 2004. Além de atuar como berçários, os manguezais funcionam como um filtro biológico, bloqueando a passagem de sedimentos e poluentes oriundos do continente que, se chegassem ao mar, poderiam comprometer a saúde dos ecossistemas recifais marinhos.

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https://jornal.usp.br/ciencias/recheados-de-carbono-azul-manguezais-ganham-destaque-no-combate-as-mudancas-climaticas/

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