O (esquecido) protagonismo de nossa Culinária

Quando Carolina de Jesus, proferiu a frase "A escravatura atual é a fome", em 1958, no livro Quarto de Despejo, ela sabia claramente o que era a invisibilidade e a humilhação.


Carolina escancarou o problema da fome e da desigualdade no Brasil, drama vivido ainda hoje, por milhões de brasileiros é conhecido hoje, como Insegurança Alimentar.

Essa característica de dar lustro linguístico à determinadas palavras, que aqui vamos chamar de Gourmetização, é um eufemismo que garante a invisibilidade dos mesmos grupos sociais de Carolina, e legitima a secular dominação.

Vamos entender o que há por trás do uso do termo Gastronomia, em detrimento de Culinária, ou Cultura Alimentar.

Não é de hoje que venho observando, e comentando a forma frivola como a academia, a midia, trata o tema, as nossas tradições alimentares, desconhecendo sua merecida relevância.

Quando falamos em Culinária e Gastronomia estamos falando de marcadores sócio/culturais distintivos, que disputam protagonismo e capital cultural,  o que nós faz entender como se posiciona cada grupo, em como esses grupos sociais entendem e articulam sua alimentação, abrindo caminho para a Apropriação Cultural, e os movimentos sociais que lutam nessa trincheira, devem estar atentos.

“até mesmo na mais simples manifestação de uma atividade intelectual qualquer, na ‘linguagem’, está contida uma determinada concepção de mundo” Antônio Gramsci

Cultura Alimentar pode ser definida como as atitudes, crenças e práticas que envolvem a produção e o consumo de alimentos, ela incorpora nossa etnia e herança cultural e fornece um mecanismo de comunicação com os outros, tanto externamente quanto dentro de nossas famílias e comunidades.

Fornece uma maior compreensão de amplos processos sociais, como política, economia e criação de valor e as construções sociais da memória coletiva. Simplificando, você não pode estudar um país e desenvolver uma etnografia dessa cultura sem entender o papel que os alimentos e a produção de alimentos têm em todos os níveis da comunidade?

Podemos considerar a Culinária, assim como a música, uma das manifestações simbólicas mais representativas do processo civilizatorio brasileiro, com valor estético, preservação de saberes e técnicas tradicionais, expressões da nossa diversidade e biodiversidade.

Cheguei mesmo a ouvir falar, em algum momento, em "Gastronomia Ancestral", talvez o termo mais obtuso e incompatível entre dois conceitos ideológicos distantes, pois vós digo, não existe nenhuma confluência possível.

[...Falamos em Culinária tradicional, é entender os Sistemas Alimentares locais e ancestrais. A comida é profundamente significativa e simboliza a relação de cuidado recíproco que os Povos tradicionais mantêm com o mundo natural; com a Terra é nossa mãe, que fornece tudo o que é necessário. Há uma riqueza de ensinamentos para traduzir a segurança alimentar e a soberania em práticas que auxiliam o conhecimento e a visão de mundo dos povos indígenas (Delormier & Marquis, 2019)...]

Enquanto a perspectiva generalista da gastronomia, que alguns teimam em defender, ela engolfa qualquer possibilidade de pensar singularidades, esta no patamar da industria cultural e do entretenimento, dificil estabelecer um paralelo no campo da cultura alimentar, e das lutas de classe.


Esse poder velado, escudado em teses de doutores, e eminentes pesquisadores, e claro, a mão do capital e do mercado, tem como lastro, manter um pensamento colonizador.

Existem correntes em todo o mundo, e eu sou dos que pensam que o termo Gastronomia deveria ser restrito às abordagens culinárias francesas.



O texto original da Lei Rouanet, de 2013, que fala em Cultura Alimentar, acredito eu o termo mais representativo quando falamos num país que construiu sua cultura alimentar, de forma hibridizada, e com um caráter de resistência aos padrões elitistas impostos, por grupos sociais hegemônicos na sociedade.

Pra finalizar, espero que tenhamos a responsabilidade de aprender com a Carolina de Jesus, quando diz: "O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome tambem é professora. Quem passa fome aprende a pensar no proximo, e nas crianças."

Comentários

  1. Gostei muito das reflexões. Sem romantizar e vinculado às referências locais, ao conhecimento ignorado.

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    1. Grato Tiago, romantizamos quando há algo de proveitoso na jornada, quando falamos em Culinária tradicional, a força do apagamento é abissal, merece todo nosso esforço em dar visibilidade e fazer as reflexões necessárias para que tenhamos pelo menos, um senso crítico mais apurado, abraço

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