Estudo pioneiro investiga genomas de plantas usadas na preparação do chá ayahuasca
Pesquisadores querem documentar biodiversidade brasileira em nível molecular. Sequenciamento genético é passo para compreender melhor características da espécie vegetal que ocasionam alteração de consciência.
Pesquisadores querem documentar biodiversidade brasileira em nível molecular. Sequenciamento genético é passo para compreender melhor características da espécie vegetal que ocasionam alteração de consciência.
Desde tempos imemoriais, grupos indígenas da região do Amazonas têm recorrido às espécies vegetais da floresta como matéria-prima para o preparo de substâncias alteradoras da consciência, que utilizam em seus rituais religiosos e de cura. Em fins do século 20, esse conhecimento tradicional passou a atrair cada vez mais o interesse da academia, e todo um novo campo de estudos começou a se estruturar a partir do Brasil. Hoje já há equipes e laboratórios especializados e bem estruturados também na Europa e nos EUA, com produção constante. Recentemente, um estudo conduzido por pesquisadores de diversas universidades do Brasil, que contou com a colaboração de docentes e pós-graduandos da Unesp, deu um importante passo à frente ao obter pela primeira vez o sequenciamento genético de uma das plantas utilizadas no preparo do chá ayahuasca, também conhecido como vegetal e santo daime, que é utilizado por mais de 70 povos amazônicos.
No Brasil, além dos povos indígenas, o chá alterador de consciência também é utilizado por grupos religiosos, e a grande diversidade de grupos usuários explica a pluralidade de nomes pelos quais a bebida é conhecida. Entre os cientistas, padronizou-se o uso do termo ayahuasca, que é uma palavra em língua quíchua, usada pelos grupos do Peru, que significa “cipó dos mortos”. Embora o chá ayahuasca possa ser preparado de diversas formas, uma das mais comuns, e que é a adotada pelos grupos religiosos, envolve o uso de duas espécies de plantas. Segundo esta prática, o cipó Banisteriopsis caapi, também conhecido como jagube ou mariri, e a arbustiva Psychotria viridis, que é chamada chacrona ou rainha, são macerados e submetidos a um cozimento prolongado, que resulta na preparação da bebida.
Professor da UFRJ e líder do projeto, Francisco Prosdocimi diz que tanto os grupos indígenas como as entidades religiosas costumam usar o chá em um contexto ritualístico. “A principal característica da ayahuasca é a capacidade de estimular o aguçamento dos sentidos e ampliar a cognição, provocando um efeito enteógeno”, diz. O termo enteógeno é usado para descrever efeitos de alteração de consciência que buscam a conexão com o divino, diferenciando-se, portanto, do termo alucinógeno, que não incorpora em si essa busca pela comunhão com o sagrado. Hoje em dia, o chá ayahuasca já é utilizado em dezenas de países, incluindo nações extremamente distantes do continente americano onde ele se originou, como a Austrália e o Japão. De uma perspectiva mais geral, os objetivos do projeto incluem a ampliação do conhecimento sobre a biodiversidade brasileira e a valorização do conhecimento tradicional indígena.
Os cientistas já sabem que as alterações na consciência do chá da ayahuasca são causadas pela ação bioquímica de duas substâncias principais: a dimetiltriptamina (DMT), encontrada nas folhas da chacrona, e alcaloides presentes no cipó mariri, que prolongam e potencializam o efeito da DMT. O objetivo do projeto é, pela primeira vez, obter um sequenciamento detalhado do genoma de ambas as espécies, o que, além de aumentar o conhecimento sobre suas propriedades, também pode abrir possibilidades para a produção de conhecimento aplicado a partir da flora brasileira. Uma vez estabelecido o perfil desse genoma, o grupo de pesquisadores quer identificar quais os genes da Psychotria viridis associados à produção de enzimas responsáveis pelas substâncias psicoativas que ocasionam o fenômeno de alteração de consciência em quem bebe o chá.
O primeiro produto deste trabalho foi publicado em outubro deste ano na revista PeerJ, na forma de um artigo em que os pesquisadores analisaram os genomas organelares da chacrona. Mais precisamente, os genomas da mitocôndria e do cloroplasto presentes na célula da planta. Além da informação obtida das organelas, também está em andamento a análise do genoma nuclear da chacrona, bem como dos genomas do mariri. Francisco Prosdocimi explica que, em trabalhos de genômica, os genes das organelas são os primeiros a serem montados. “Os nossos próximos passos envolvem a montagem do genoma nuclear, que é o mais importante da célula porque é onde estão os cromossomos e onde estão os genes que vão codificar as enzimas que produzem a DMT, na chacrona, e os alcaloides, no mariri. Esse trabalho já está em andamento”, afirma.
Francisco Prosdocimi comanda o Laboratório de Genômica, Bioinformática e Biodiversidade da UFRJ, instituição que tem como um de seus propósitos documentar a biodiversidade nacional em nível molecular. “Nossa proposta é sequenciar o genoma desses organismos que compõem a fauna e a flora brasileira para tentar entender melhor a relação do seu DNA com a forma como eles se apresentam no meio ambiente”, explica.
“No caso das plantas, uma das características que as torna tão incríveis é o fato de serem sésseis, ou seja, não conseguirem se movimentar. Por conta disso, a planta precisa desenvolver um arsenal bioquímico muito sofisticado em seu interior. Isso permite a ela lidar com situações tais como períodos de seca, mesmo que sem poder se deslocar até a água, ou desenvolver tolerância a um quadro de calor excessivo, ou encontrar uma forma de resistir à ação de predadores, entre outros cenários. E tudo isso está escrito no seu DNA”, explica.
O projeto envolvendo especificamente as espécies nativas usadas na preparação do chá ayahuasca surgiu a partir de uma experiência vivida pelo próprio pesquisador em 2016, durante um ritual de que participou na região de Machu Picchu, em Pisac, no Peru. Neste sentido, explica o pesquisador, “o projeto é marcado por um profundo respeito às culturas tradicionais e não tem como objetivo explicar as experiências espirituais ou a produção de novos fármacos, mas sim valorizar a cultura ayahuasqueira”, diz.
Prosdocimi diz que um dos objetivos da análise do sequenciamento é encontrar as vias bioquímicas que produzem o dimetiltriptamina (DMT), a substância psicoativa presente na chacrona. “Queremos entender quais são as enzimas dessa planta que efetivamente produzem o DMT”, diz. Atualmente, existe um campo emergente que estuda o uso de psicotrópicos em tratamentos de doenças mentais e o chá ayahuasca também tem sido objeto de investigação. “Entender quais genes estão funcionalmente associados à produção de DMT pode trazer contribuições para essa abordagem”, diz.
Nesse trabalho, o pesquisador da UFRJ conta com um grupo multidisciplinar de colaboradores que inclui neurocientistas, geneticistas, biólogos moleculares, botânicos e especialistas no sequenciamento genético. O trabalho compreende, em um primeiro momento, a interpretação e tratamento dos dados brutos do sequenciamento e, em um segundo momento, a análise e separação dos genes de interesse.
Entre os membros desse grupo está o pesquisador Alessandro Varani, do campus de Jaboticabal da Unesp, que tem experiência na análise genômica e bioinformática e recentemente colaborou no sequenciamento genético de uma espécie silvestre de maracujá. No projeto, o pesquisador ajudou a identificar, por exemplo, os genes que impedem a espécie de se autofecundar. Atualmente, também trabalha com o sequenciamento genético do cupuaçu, um fruto típico da Amazônia brasileira e próxima do cacaueiro, em projeto financiado pela Fapesp e pela FAPESPA.
“Trabalhar com genômica de plantas é sempre uma novidade porque elas são muito diversas e com frequência nos apresentam informações fora do padrão”, diz Varani. E os primeiros resultados do sequenciamento do genoma da chacrona já trouxeram algumas surpresas para pesquisadores. “Enquanto o cipó mariri tem um terço do tamanho do genoma humano, o genoma da chacrona possui uma vez e meia o número de genes existentes no genoma humano”, diz. Até então, as estimativas sobre o tamanho do genoma da chacrona que existiam na literatura científica giravam em torno de 2 gigabases (Gb), a unidade usada para estimar a dimensão de um DNA. Porém, o trabalho preliminar do grupo revelou um genoma com 4,48 Gb. “O que a literatura científica falava sobre o tamanho do genoma do grupo ao qual a chacrona pertence era uma coisa e o que nós constatamos no sequenciamento foi algo completamente diferente.”
Varani diz que, devido ao fato de o projeto adotar uma abordagem voltada para a ciência básica, nem sempre é simples apontar quais podem ser as aplicações para os resultados encontrados no sequenciamento do genoma. Ainda assim, a compreensão de como esses genes se relacionam com as estruturas e as características da planta pode proporcionar informações importantes para a conservação da espécie, ou para comparações com o material genético de espécies semelhantes. “São várias perguntas que a gente pode levantar fazendo um trabalho de genômica comparativa, por exemplo. Mas a grande questão envolve a ciência básica, uma vez que essas são informações que nunca ninguém acessou”, ressalta.
As amostras da chacrona e do cipó-mariri sequenciadas no estudo foram coletadas em um núcleo da União do Vegetal, uma das religiões brasileiras que usa o chá e que é parceira no projeto, que fica na floresta da Cantareira, na zona norte da cidade de São Paulo. O sequenciamento foi realizado em equipamentos de última geração localizados na Universidade do Arizona, nos Estados Unidos. Varani explica que equipamentos capazes de realizar o sequenciamento com alta qualidade são raros no país. “É uma tecnologia muito cara, de alto custo de manutenção e que avança com muita rapidez, fazendo com que os equipamentos logo fiquem obsoletos”, afirma o pesquisador.
Ele diz que os pesquisadores têm encontrado dificuldades em incorporar ao projeto profissionais de perfil técnico capacitados a usar as ferramentas de bioinformática e analisar os dados ainda brutos que são obtidos após o sequenciamento. “Analisar os dados é o que demanda mais tempo. Você recebe os dados ainda brutos do sequenciamento e precisa analisá-los para convertê-los em informação biológica relevante. Esse é o grande gargalo”, explica. Este processo envolve identificar onde estão os genes de interesse, entender como se deu a evolução genômica dessas plantas e compreender a biologia da planta observando seu genoma. Atualmente, o grupo tem submetido o projeto a editais e agências de fomento em busca de fontes de financiamento para a pesquisa. Com informações da Unesp
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