Eu escrevo na lingua brasileira, que é uma lingua em estado nascente


João Guimarães Rosa - Entrevistado por Günter Lorenz 'Diálogo com Guimarães Rosa' 

GUIMARÃES ROSA: Que nasci no ano de 1908, você já sabe. Você não deveria me pedir mais dados numéricos. Minha biografia, sobretudo minha biografia literária, não deveria ser crucificada em anos. As aventuras não têm tempo, não têm princípio nem fim. 

E meus livros são aventuras; para mim, são minha maior aventura. Es­crevendo, descubro sempre um novo pedaço de infinito. Vivo no in­finito; o momento não conta. Vou lhe revelar um segredo: creio já ter vivido uma vez. Nesta vida, também fui brasileiro e me chamava João Guimarães Rosa. 

Quando escrevo, repito o que vivi antes. 

E para estas duas vidas um léxico apenas não me é suficiente. Em outras palavras: gostaria de ser um crocodilo vivendo no rio São Francisco. O crocodilo vem ao mundo como um magister da metafísica, pois para ele cada rio é um oceano, um mar da sabedoria, mesmo que chegue a ter cem anos de idade. Gostaria de ser um crocodilo, porque amo os grandes rios, pois são profundos como a alma do homem. 

Na superfície são muito vivazes e claros, mas nas profundezas são tranqüilos e escuros como os sofrimentos dos homens. 

Amo ainda mais uma coisa de nossos grandes rios: sua eternidade. Sim, rio é uma palavra mágica para conjugar eternidade.

A estas alturas, você já deve estar me considerando um charlatão ou um louco.

Bem, sim, você tem razão. Temos de partir do fato de que nosso português-brasileiro é uma língua mais rica, inclusive metafisicamente, que o português falado na Europa. 


E além tudo, tem a vantagem de que seu desenvolvimento ainda não se deteve; ainda não está saturado. Ainda é uma língua jenseits Von Gut und Bösel, e apesar disso, já é incalculável o enriquecimento do português no Brasil, por razões etnológicas e antropológicas.

Pode ser, mas não creio que isso seja deci­do. Repito minha opinião: o trabalho é importantíssimo! Mas ainda mais importante para mim é o outro aspecto, o aspecto metafísico da língua, que faz com que minha linguagem antes de tudo seja minha. 


Também aqui pode-se determinar meu ponto de partida, que é muito simples. Meu lema é: a linguagem e a vida são uma coisa só. Quem não fizer do idioma o espelho de sua personalidade não vive; e como a vida é uma corrente contínua, a linguagem também deve evoluir constantemente. Isto significa que, como escritor, devo me prestar contas de cada palavra e considerar cada palavra o tempo ne­cessário até ela ser novamente vida. O idioma é a única porta para o infinito, mas infelizmente está oculto sob montanhas de cinzas. Daí resulta que tenha de limpá-lo, e como é a expressão da vida, sou eu o responsável por ele, pelo que devo constantemente umsorgen[17]. 


Soa a Heidegger, não? Ele construiu toda uma filosofia muito estranha, baseado em sua sensibilidade para com a língua, mas teria feito melhor contentando-se com a língua. Sim, com isto eu já disse todo o fundamental sobre minha relação com a língua. É um relacionamento familiar, amoroso. A língua e eu somos um casal de amantes que juntos procriam apaixonadamente, mas a quem até hoje foi negada a bênção eclesiástica e científica. Entretanto, como sertanejo, a falta de tais formalidades não me preocupa. Minha amante é mais importante para mim.


João Guimarães Rosa - Entrevistado por Günter Lorenz 'Diálogo com Guimarães Rosa' Templo Cultural Delfos

http://www.elfikurten.com.br/2011/01/dialogo-com-guimaraes-rosa-entrevista.html?m=1


https://youtu.be/CKR9GlH-zDg Zé Miguel Wisnic

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