REGISTROS DA CULINÁRIA BAIANA TRADICIONAL


O livro explora a presença do alfenim, um doce tradicional de origem árabe, na cultura nordestina brasileira. O alfenim é uma massa de açúcar muito alva, moldada em diversas formas, como animais, flores e objetos, e sua introdução na culinária brasileira reflete a influência árabe trazida pelos colonizadores ibéricos. 

Na Bahia colônia, os alfenins eram tradicionalmente distribuídos em festas religiosas, incluindo as celebrações de Santos Reis. Essas festas, realizadas no dia 6 de janeiro, marcam o encerramento do ciclo natalino e são dedicadas à visita dos Três Reis Magos ao Menino Jesus.

Trabalhou na Fundação Joaquim Nabuco, onde iniciou sua trajetória como folclorista, produzindo mais de 70 obras que abordam diversos aspectos do folclore regional, incluindo lendas, costumes, culinária e expressões populares. 

Sua dedicação à preservação e divulgação da cultura nordestina é amplamente reconhecida, e sua obra continua a ser referência para estudiosos e entusiastas do folclore brasileiro.

Desde a Antiguidade, era comum a presença de doces e esculturas feitas com açúcar — ingrediente ainda restrito às classes abastadas — na decoração das mesas dos banquetes reais, além do hábito de presentear pessoas distintas com iguarias dessa natureza. Essas criações, muitas vezes ricamente ornamentadas, simbolizavam luxo e sofisticação, refletindo a importância social e cultural atribuída ao açúcar.

Frei Gaspar Frutuoso, em sua obra Saudades da Terra, citado por Câmara Cascudo (1983), relata um episódio emblemático em que um donatário da Ilha da Madeira enviou ao Sumo Pontífice, em Roma, uma oferta impressionante: a reprodução do Sacro Palácio, com a figura de todos os cardeais, inteiramente construída em alfenim. 

A grandiosidade dessa obra destacava-se ainda mais pelo fato de os personagens serem representados em tamanho natural, com “a estatura de um homem”.


Cascudo (1983) observa que o alfenim era uma iguaria bastante popular em Portugal entre os séculos XV e XVI, período que coincide com a introdução e o desenvolvimento da cultura da cana-de-açúcar na Ilha da Madeira. Além de ser um deleite gastronômico, o alfenim ganhou relevância religiosa, sendo incorporado à liturgia cristã. Preparado em formatos simbólicos, como pombas, tornou-se parte de rituais e celebrações dedicadas ao Espírito Santo.

O termo "alfenim" tem origem no árabe al-fanīd, que significa "aquilo que é branco, alvo". Conforme Mário Souto Maior (1984), o conceito pode ser ampliado, referindo-se a algo delicado e frágil, tanto no sentido material quanto metafórico, chegando a designar pessoas de constituição física débil ou aparência delicada. Souto Maior também destaca que o processo de confecção do alfenim, que envolve o trabalho meticuloso de puxar a massa até obter seu brilho característico, era uma prática artesanal de refinamento técnico, preservando o simbolismo de pureza e habilidade.

O sociólogo Gilberto Freyre, em Açúcar (1939, p. 67), complementa essa perspectiva ao registrar, por meio de ilustrações, os diversos formatos atribuídos ao alfenim, como figuras humanas, flores, frutos, animais, além de objetos de vestuário e utensílios. Essa pluralidade de formas demonstra não apenas a versatilidade do doce, mas também seu papel artístico e cultural como veículo de expressão estética.

Dessa maneira, o alfenim não se limita a um doce; é um artefato histórico que revela aspectos econômicos, sociais, religiosos e artísticos do contexto em que foi produzido e consumido.

"0 alfenim, que o povo também chama alfeninho- do árabe al-fanid - é, na definição de Luís da Câmara Cascudo, uma massa de açúcar, seca, muito alva, vendida em forma de flores, animais, cachimbos, peixes, etc. e ainda de pombinhos, galinha chocando, cestinha com flores, homens, pilãozinho, sapatinho, chave, margarida, menina, jacaré, canário, etc., conforme desenho de M. Bandeira ilustrando um trabalho do sociólogo Gilberto Freyre sobre o açúcar, variando sempre de conformidade com a Imaginação do fazedor. 

De procedência árabe, foi o alfenim Introduzido em Portugal e na Espanha e, na literatura portuguesa do século XVI alguns autores já se referem à romântica guloseima que atualmente também significa pessoa delicada, franzina, de compleição débil, num romantismo que vai da forma (noivos, pombinhos, margaridas, meninas, etc.) à cor, do sabor ao sentido figurado da palavra. 

Tanto assim que Gil Vicente, no seu Velho do desembargador, contou: Minha ama he tudo alfeni!", registra Mário Souto Maior, que prossegue, mencionando uma receita de como se fazer alfenim, encontrada no Dicionário do doceiro brazileiro (3a ed.), Rio de Janeiro, J.G. Azevedo Editor, 1892: "Toma-se um kilograma de calda na qual se lança uma colher de born vinagre branco, ou meia colher de geléa de fructa azeda. Leva-se ao fogo e quando estiver no ponto de quebrar, deitam-se algumas gotas de óleo essencial de flor de laranjeira ou qualquer outro que se prefira. 

Tira-se, então, do fogo, derrama-se sobre urna mesa de mármore e deixa-se esfriar até se lhe poder pegar com as mãos. Toma-se então um bocado, e principia-se a estender como em fio, separando as mãos, tornando a puxar, estendendo, e repetindo isto até que a massa esteja branca prateada, e que, reunidas, as pontas do fio não se ajuntem em massa. Neste caso se desfia em fios delgados que se dobrarão, estendem-se, sobre o mármore, e cortam-se do tamanho que se quiser. 

Essa operação deve ser feita com rapidez e, portanto, por duas ou mais pessoas, para que a massa não arrefeça. Essas preparações podem ser coradas e, então, a matéria corante em pó se junta ao estender a massa, logo em princípio, porque pela repetição desta operação se mistura por toda a massa igualmente". Escrevendo a história pitoresca do Recife antigo, Mário Sette acrescenta outros detalhes à fabricação do alfenim. 

Diz o saudoso romancista de Senhora de engenho: "Confeito alvíssimo, sólido mas delicado e quebradiço, muito agradável ao paladar, preparado com melado, que se deixa ao fogo até atingir um ponto especial, quando, então, se retira a massa do fogo, estendendo-a sobre um mármore ou qualquer outra superfície fria. Depois de parcialmente esfriada, puxa-se a massa com as mãos polvilhadas de goma até alvejar, e solidificar, podendo-se, antes, dar-lhe as mais variadas formas".

João Jardelino Pereira: O Vitalino do Açúcar, Mário Souto Maior destaca a vida e a arte de João Jardelino Pereira, um artesão popular de Pernambuco que ganhou notoriedade por suas criações em açúcar. 

Assim como Mestre Vitalino é um ícone na arte do barro, João Jardelino tornou-se conhecido por sua habilidade e criatividade ao moldar figuras artísticas usando açúcar.

A obra aborda tanto o contexto cultural em que João Jardelino viveu quanto as suas contribuições para o artesanato brasileiro, destacando sua originalidade e importância na preservação da cultura nordestina.

O livro também reflete sobre o valor da arte popular no Brasil e a relação entre tradição e inovação na produção artística.




















Infelizmente restam poucos artífices do Alfenin na Bahia.

O texto acima faz uma reflexão crítica sobre o impacto da industrialização no consumo e na produção de doces tradicionais, contrastando elementos de modernidade com aspectos culturais e sociais de um passado mais artesanal.

Oposição entre tradição e modernidade: O autor expõe o desaparecimento do "alfenim" como resultado da industrialização de produtos como balas, pirulitos e doces. Há uma nítida dualidade entre o artesanal, representado por vendedores locais, e o industrial, simbolizado por produtos padronizados, feitos em larga escala por máquinas.

Contexto social e econômico: O texto destaca a importância econômica dos pirulitos artesanais, muitas vezes produzidos por mulheres (viúvas, solteironas), que buscavam complementar a renda familiar. Esses produtos carregavam uma forte ligação com a cultura local e o cotidiano das cidades do interior e subúrbios.

Crítica à padronização e ao consumo industrializado: A menção aos "refrescos feitos com frutas da região" (maracujá, abacaxi, etc.) é contrastada com os produtos industrializados, que possuem "mais colorido do que sabor" e quase nenhum valor nutricional. O texto sugere que os produtos industrializados simplificam o trabalho doméstico, mas ao custo de uma alimentação menos saudável e de uma cultura alimentar enraizada.

Dimensão cultural e simbólica: Além do valor econômico e nutricional, os doces artesanais carregam um simbolismo cultural que a industrialização tende a apagar. O autor apresenta o desaparecimento desses produtos como uma "batalha de vida e de morte", destacando a perda de uma identidade cultural em favor de produtos europeizados e massificados.

Para concluir uma crítica à industrialização e à globalização, que substituem a produção artesanal local por produtos padronizados e sem alma cultural. Ele lamenta a perda de um modo de vida mais comunitário e humano em favor do progresso, levantando questões sobre a preservação de tradições e o impacto cultural e social da modernidade.







Em 2020, Dona Menininha do Alfenim, Maria Belarmina, 93 anos, foi reconhecida como Patrimônio Vivo de Pernambuco, sendo a primeira representante da culinária a receber o título em 15 edições. Ela é a única do Agreste pernambucano a ser eleita nesta edição, destacando-se entre 99 candidatos. O reconhecimento valoriza sua contribuição à cultura do Estado por meio do doce Alfenim. A candidatura foi incentivada pela Secretaria de Cultura e Turismo Municipal e resultará em uma bolsa vitalícia para preservar esse saber tradicional. 📸Adriano Monteiro | Decom

○Nesta série, apresentarei títulos fundamentais que resgatam a riqueza da culinária baiana. Receitas que são registros históricos obtidos por meio de pesquisas em acervos, bibliotecas e antigos cadernos de receitas, que oferecem uma compreensão mais profunda da nossa cultura alimentar e explicam por que ela é considerada tão diversa e única.

Agradecimento especial à Mary Santana, e do acervo Valdeloir Rego da Biblioteca Central dos Barris.

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