O erotismo e os Frutos Poetizados de Luiz Bacellar
Frutas, a poesia, o erotismo e a sexualidade
Acredita-se que há erotismo na poesia e que ele se manifesta através do poema.
Monique Emanuelle Oliveira Queiroz analisa os poemas de
Frauta de Barro observando como a argumentação erótica se comporta em sua poesia, pois o
erotismo contido no livro é apresentado aqui como uma de suas faces escondidas por entre
símbolos distribuídos na natureza e transformados em poemas impressos nas páginas da
primeira obra deste autor; verificar como o erótico se comporta nos rondeis de frutas
quando metáforas para o corpo em Sol de feira, visto que para sua segunda obra o poeta
reservou-se ao direito de extrair elementos do pomulário amazônico para com eles produzir a
poesia composta nos poemas-frutos que exploram o corpo feminino e o masculino nas
páginas de seu segundo livro.
Em Sol de feira, os cinquenta rondeis que compõem a obra produzem, no livro, uma
‘feira’ de frutos amazônicos dispostos em um tablado poético e oferecidos ao leitor. Essa
semelhança com a feira pode ser observada quando lemos o poema “Anúncio” (2008, p. 13).
Sendo esse o primeiro dos poemas, é possível que funcione igualmente àquele garoto ou
pessoa que anuncia produtos a clientes nos mercados e frutarias, batendo palmas.
Bacellar
inicia seus poemas, pois, com uma espécie de ‘bater de palmas’, chamando seus freguesesleitores para apreciação de seu produto: a poesia e os frutos poetizados.
Luiz Bacellar (Manaus, 4 de setembro de 1928 - 9 de setembro de 2012) foi um poeta brasileiro. Considerado um dos poetas mais expressivos da literatura amazonense, ganhou com sua estreia literária Frauta de barro (publicado em 1963) o Prêmio Olavo Bilac da Prefeitura do Rio de Janeiro em 1959.
Ele ficou conhecido por popularizar o haicai, estilo de versos curtos de origem oriental, na literatura amazonense. Ele também participou do grupo que fundou o Clube da Madrugada, principal associação literária amazonense, em 1954, e era membro da Academia Amazonense de Letras.
O poeta faleceu em 2012.
“Rondel do Bacuri”
gemas da mata
de galas flácidas
pérolas ácidas
bagas de prata
tens bacuri
áspero e louro
pômulo de ouro
dentro de ti
tuas polpas belas
abrem-se e escorrem
54
seivas sutis
como as estrelas
sorrindo morrem
chorando ris
(BACELLAR, 2008, p. 17)
Podemos observar que, nesta estrofe, apenas o fruto é apresentado. Ela fala da parte externa do fruto e depois da interna.
Na parte externa, a casca é um “pômulo de ouro áspero e
louro”; já na parte interna, o fruto carnoso é dito como uma pérola que se reveste de flacidez e
acidez em suas “bagas de prata”.
Os elementos observados nesta primeira estrofe produzem a
ideia de que estamos observando um ser masculino em seus trajes galantes e flácidos a se
personificar na floresta.
No entanto, a segunda estrofe parece nos trazer uma outra presença,
retomada a partir do pronome possessivo “tuas”, em referência à palavra “polpas”, que se
abrem e se derramam em um líquido:
Agora, o sabor deixa de ser ácido para se tornar suave à boca. E não é possível deixar
de notar que ao fruto é atribuída também uma personificação, pois agora ele sorri e chora, ao
mesmo tempo em que “morre”. Se a segunda estrofe for associada ao feminino, por causa dos
termos “polpas belas” que se abrem, podemos dizer que, nesse caso, o sorriso e o choro ao
fruto atribuídos fazem referência ao prazer feminino. Podemos ver confirmada essa afirmação
quando, nos versos finais, temos a prosopopeia “como as estrelas/sorrindo morrem/chorando
ris”, visto que não há no fruto a capacidade de chorar ou de sorrir.
Percebemos que agora o eu-lírico se refere ao feminino em seus braços, que no
momento de maior manifestação da carga erótica presentifica ─ no poema ─ o que os
franceses chamariam de la petite mort, o orgasmo. Em outras palavras, mesmo ao morrer ou
ao chorar, a parte feminina sorri como um “enlouquecimento que existe na pequena morte”
(BATAILLE, 1984, p. 4).
A imagem que o eu-lírico compõe aos olhos do leitor é a
provocação erótica do rondel lido
“Rondel do araticum”
teu fruto sabe
a buliçosos
corpos
suando
tem vigorosos
sons
de atabaque
vivos, sambando
(BACELLAR, 2008, p. 36)
Os corpos suados de dançar ao som do samba do atabaque incorporam um ritmo
frenético de movimento, pois, na dança, é a vida que se forma a partir do ritmo. Em diversas
culturas, a dança é a manifestação do corpo, uma representação da capacidade de movimento
do corpo.
Quando se dança a dois, uma conjunção carnal é representada. Se é apenas um que
dança, temos, então, um meio de seduzir para quem se dança.
Um exemplo disso é a dança de
Salomé para Herodes, onde, após dançar para ele, a moça pede a cabeça de João Batista em uma bandeja, tal como foi orientada por sua mãe (Marcos 6: 14-29).
O que acontece é que a
moça havia seduzido o rei a ponto de ele prometer lhe dar o que ela desejasse diante de seus
convivas; e assim o profeta foi executado pelo pedido. A menina o seduziu com sua dança.
Logo, dançar é alcançar êxtase.
Esse êxtase está presente também nos “corpos” suados do “Rondel do araticum”, onde
o eu-poético se sente desejoso por essa vida que pulsa ao som do tambor, símbolo da
imortalidade e representante de diversas culturas.
“Rondel do tucumã”
do teu minúsculo coquinho
relatam lendas milenárias
brotaram sono,
amor, carinho,
a lua e outras luminárias;
onças e pássaros noturnos,
quanto em teu bojo se escondia
dele fugiu com ares soturnos
enquanto o breu se derretia;
tu foste a caixa de Pandora
das tribos bárbaras de outrora
e a cor das asas da graúna
saiu de ti como um trovão
para que a filha da boiúna
pudesse amar na escuridão.
taperebá
em gotas de oiro:
dos altos ramos
no dia loiro
Zeus, a hora amena,
no colo mana e
flui da serena,
silente Dánae:
e ela, provando
da chuva as bagas
de acre sabor,
se vai deixando
violar por vagas
chispas de amor
(BACELLAR, 2008, p. 28)
O poema se apropria do mito de Zeus e Dânae para construir o rondel. Nele ocorre
uma comparação entre Zeus, transformado em chuva de ouro fecundante, e a forma e a cor do
taperebá.
No rondel, o eu-lírico constrói uma intertextualidade com o mito do nascimento de
Perseu, personagem que, segundo o oráculo de Delfos, estava predestinado a matar o avô
Acrísio, pai de Dânae. A mãe do menino é trancada em uma prisão subterrânea de bronze.
Zeus se apaixona por Dânae e sorri ao vê-la trancada pelo pai nessa prisão
subterrânea de bronze. Sob a forma de uma chuva de ouro, ele desce e se
introduz ao seu lado; também é possível que, ao chegar à prisão, tenha
assumido sua personalidade divina sob aparência humana. Zeus une-se em
amor com Dânae, no maior sigilo. Dânae espera um filho, um menino que se
chamará Perseu (VERNANT, 2000, p. 182).
O mito recontado por Vernant nos dá uma informação sobre o modo como Zeus e
Dânae tiveram seu encontro amoroso, o primeiro da moça. Na segunda estrofe do poema, o
eu-lírico afirma que ela prova as “chuvas de bagas de acre sabor”, comparando o sabor do
fruto com a ação de desvirginamento de Dânae. Esta, no poema, “se vai deixando/violar por
vagas/chispas de amor”, de modo que, nas últimas estrofes, apreendemos a noção de violação
do corpo de Dânae, a moça se entrega num misto de prazer e dor para finalizarem seu
encontro amoroso, que é, no poema, “gotas de oiro” em forma de taperebá.
“Rondel da
manga”
manga olorosa
e aurirrosada
chamam-te rosa
chamam-te espada,
espada e rosa
tens com razão
forma amorosa
de coração;
com a fronde esparzes
sombra e raízes
pelas estradas
no tronco
trazes
mil cicatrizes
desesperadas
Na sexualidade a violência e a agressão são componentes necessariamente
ligados à copulação e, assim, à reprodução; no erotismo, as tendências
agressivas se emancipam, quero dizer, deixam de servir à procriação e se
tornam fins autônomos. Em resumo, a metáfora sexual, por meio de suas
infinitas variações, significa sempre reprodução; a metáfora erótica
indiferente à perpetuação da vida, interrompe a reprodução .
Assim sendo, as cicatrizes da mangueira revelam o teor agressivo ligado à atividade
erótica. Tal atividade se concentra na percepção de que o eu-lírico atribui aos tipos de manga:
a definição do papel ativo masculino representado pela espada, assim como do papel passivo
feminino representado pela rosa. Também percebemos que, de acordo com Paz, existe uma
“metáfora erótica” da qual a manga do poema faz parte.
“Rondel do Caju”
Como acrobata
Num salto alado
No seu trapézio
Dependurado,
Preso no ramo
Pelos artelhos
Vestindo trajes
Aurivermelhos;
Tal é o caju
De adstringente
Flava semente
Que abre estival
Travor e reúne:
Sol, praia, sal.
(BACELLAR, 2008, p. 32)
O caju dependurado no galho do
cajueiro é tido como um acrobata e observa o mundo de forma diferente dos demais.
O eulírico propõe, assim, que a castanha é a parte superior do pseudofruto.
Sendo esta a primeira a
nascer, a imagem que construímos a partir do poema é a de que, em relação a esse fruto, há
uma inversão do mundo ao seu redor.
A
segunda parte do rondel é ainda mais curiosa no que tange ao sabor do fruto do caju.
Ela revela que o fruto possui um sabor que produz ao paladar uma sensação de aspereza e,
logo após prová-lo, segue a sensação de entorpecimento.
Em outras palavras, o poema sugere
que come-se o caju, tal como na casa dos caboclos é apreciado, por vezes, com sal, sentindo a aspereza do sabor indo do doce ao adstringente, vindo depois a sensação de satisfação e
de alívio.
Noutros termos, no poema o sabor é um travamento seguido de alívio que
corresponde à “fórmula do orgasmo”, proposta por Wilhelm Reich
Esse ponto mostra uma comparação do sabor do caju ao orgasmo, revelada
na presença da tensão provocada no ato e seguida do relaxamento do corpo após o orgasmo
realizado, conforme o verso “abre estival travor”.
Há ainda aquelas três últimas palavras do último verso que nos confirmam o teor
erótico do poema. Em princípio podemos dizer que as palavras se referem às condições
temporais para a produção de caju, visto que a fruta é própria do verão. O sol é importante ao
fruto porque a luz emanada por ele determina a vida no planeta em que vivemos.
“Rondel do buriti”
e o buriti
vermelho?
peixe:
de miúda escama
roliço feixe,
polpa amarela,
caroço branco
fina aquarela
põe no barranco;
beira de rio
- um caule esguio
na tarde calma;
que leva o vento
à verde palma?
carícia e alma
De acordo com o glossário localizado no final do livro Sol de feira, o buriti “ocorre em
grandes populações naturais (buritizais) ao longo dos rios de água branca da Amazônia”
(BACELLAR, 2008, p. 46), decorrendo daí a afirmação de que o fruto é bastante irrigado
Essa água não se apresenta no corpo do poema, mas no que diz respeito
a outras duas coisas impressas no rondel: a primeira é o lugar de cultivo do buritizeiro; e a
segunda reside na afirmação de que o buriti é peixe de miúda escama.
Isto é, o buritizeiro
nasce, cresce e se reproduz às margens dos rios. Nesse caso, em particular, a água é força
fecundante da árvore.
Ela, a água, assume o papel do feminino, pois alimenta as raízes do buritizeiro nos
leitos do rio, tal qual uma mãe alimenta seu filho ao nascer. Sobre essa figura do rio, trazemos
aqui o que Bachelard (2002) diz a respeito da “água doce”.
Para o filósofo francês, existe uma
supremacia da água doce em relação à água do mar.
Ele a toma como elemento que dá vida e
mata a sede dos homens, comparando-a com uma mulher que gera a criança e a alimenta com
seu próprio corpo.
No caso do “Rondel do buriti”, a escolha por esse fruto e o conhecimento de que o rio
o alimenta, torna a água em figura feminina.
A água é símbolo do feminino e do materno, e o caule do buritizeiro ─ responsável pelo
transporte de nutrientes da raiz até as folhas da árvore ─ é a figura masculina em direção
vertical, do solo ao céu, buscando o sol que amadurece o fruto, e finalmente o fruto como
resultado dessa combinação.
Logo, esse fruto é filho da combinação água-raiz-caule-sol.
Sendo o buriti filho dos quatro, ativamos o que Bachelard chama de “primeiro
princípio ativo da projeção de imagens” no devaneio poético, e isto porque projetamos no
fruto o corpo dos homens e na posição que ocupa em nossa combinação.
Em suas próprias
palavras: “em suma, o amor filial é o primeiro princípio ativo da projeção de imagens, é a
força propulsora da imaginação, força inesgotável que se apossa de todas as imagens para
colocá-las na perspectiva humana mais segura: a perspectiva materna” (BACHELARD, 2002,
p. 120).
Dito de outra forma, nessa composição o buruti-corpo tem pela água-mulher uma
atração filial.
Dito isto, resta-nos abordar o segundo elemento que o eu-lírico explora no poema.
Chamando o buriti de “peixe de miúda escama”, nos versos dois e três, ele nos traz o
resultado da união da água com a árvore: o buriti.
E mesmo sendo o fruto um resultado dessa
natureza, ele próprio é exemplo de fecundação, pois o peixe é símbolo de fertilidade em algumas culturas.
Assim sendo, se o buriti é peixe, logo é membro aquático e parte
complementar do solo alagado do buritizal.
Ainda nessa reflexão, é válido afirmar que a água, esse símbolo vivo da sexualidade, é
elemento que ajuda a fertilizar o buritizeiro que, em resposta, produz um fruto vermelho
escamado. Nesse caso, o buriti poetizado no rondel bacellariano, e transformado em índice
para a recorrência do erotismo, é manifesto no corpo do poema através do fruto-peixe e do
caule da árvore inundado pelas águas do rio, que, como já dissemos, atua como principal
elemento metafórico no poema para o feminino.
"Rondel do Milho"
o sol seu pai
que o orvalho inflama
lhe serve a cor
e a terra-mãe
que amor derrama
lhe dá sabor
(BACELLAR, 2008, p. 27)
No rondel acima, o milho é resultado de uma terra fecundada pelo sol, cujas figuras
representam o feminino e o masculino, respectivamente. Albuquerque leva-nos, como
leitores, a pensar o poema antes de este surgir, ainda na figura do agricultor plantando o
milho, desviando o olhar do poema em si, para perceber como sua construção se fundamenta
ainda no trabalho de cultivar o milharal. Nas palavras do crítico, no poema, “contextualmente
as mãos surgem aí como propiciadoras das carícias por excelência” (ALBUQUERQUE, 1997,
p. 83); portanto, as mãos que sulcaram a terra para o plantio do milho revelam as carícias
realizadas pelo sol na fecundação da terra.
"Rondel do Abacaxi"
Com teu cocar
De verdes plumas
Feroz te aprumas
Para lutar:
Feres a mão
Que corta as cruas
Douradas puas
Do teu gibão;
Abacaxi,
Topázio agreste,
Cristal-farol:
Cada rodela
Da tua polpa
Revela o sol
(BACELLAR, 2008, p. 29)
Como é possível constatar, na primeira estrofe do rondel, o abacaxi é apresentado
como um guerreiro. Segundo Albuquerque (1997, p. 80), “como representação do guerreiro, o
abacaxi tem valores a demonstrar. Sua aparência agressiva e agreste origina uma figuração
masculina, mas ele é uma dádiva da terra, tal dádiva está associada às forças fecundantes”.
Para o crítico, há duas representações no “Rondel do abacaxi”: uma feminina, vista na figura
da fruta, e outra masculina.
Tais presenças são confirmadas no rondel a partir da segunda
estrofe, onde a presença do sol é confirmada nas rodelas de abacaxi.
Como já dissemos, o sol
é elemento representativo do masculino. Paz, por exemplo, define o sol como Eros.
Ora, no poema o sol é revelado ao leitor, o que significa dizer que, antes de sua
revelação, era o escuro.
As rodelas do fruto, revelando o sol, confirmam o trecho de Paz,
quando diz que “a lâmpada acesa na obscuridade da alcova” (PAZ, 1994, p. 27) é o sol a
invadir o que está no oculto, no íntimo do ser. Há, ainda, os termos topázio e cristal, presentes
no põem. Sabendo-se que a prata e a lua correspondente ao cristal designam o feminino, e o
topázio designa o masculino, na figura do homem, o “Rondel do abacaxi”, que comporta os
dois, confirma-os como elementos do erotismo.
O desejo erótico se concretiza no sol revelado
no poema, calor e desejo emanados do sol pelos amantes representados pela figura do topázio
e do cristal.
“Rondel do
Cupuaçu”
urna selvagem,
ubre silvestre
moreno seio,
tanta delícia
tua curva crosta
retém no meio
Na primeira estrofe do poema temos nada mais que uma apresentação do que é
um cupuaçu, acreditamos que é na segunda estrofe que o eu-lírico concentrou a carga erótica
do poema.
A imagem do “moreno seio” e da “curva crosta” do cupuaçu são o que leva o eupoético a uma espécie de delírio.
Observemos que o eu-lírico transpõe para o cupuaçu traços
do corpo feminino, detendo-se nos seios e nas curvas. Mas o que esse eu-poético deseja
mesmo alcançar é o meio do fruto, abrindo-o para encontrar onde está guardado o sabor do
cupuaçu: sua polpa. Ele também usa o termo “delícia”, no poema, para referir-se ainda ao
sabor do fruto, transportando ─ para o leitor ─ a conotação erótica e a ideia de satisfação do
elemento ativo diante da presença do elemento feminino.
“Rondel do Abiu”
Ei-lo transcrito abaixo:
teta amorosa
de adolescente:
poma doirada,
negra semente;
brando é teu leite
que, adstringente,
refresca as tardes
da nossa gente;
tua polpa cola
ao lábio urgente
que oscula o bico
duro e pungente
do airoso fruto
suaveardente
O abiu, como sabemos, é um fruto “às vezes depreciado pelo fato de as cascas
conterem um leite branco e viscoso que adere aos lábios de seus apreciadores” (Ibid., p. 43),
mas é deste leite viscoso que o eu-poético constrói o poema citado. Na primeira estrofe, o
fruto é comparado às tetas amorosas de “adolescente”, e com sua polpa macia refresca a tarde
daqueles que o comem.
Ainda na primeira estrofe, é possível perceber um ar de inocência no
gesto de comer um abiu, mesmo usando a palavra “teta” como primeira do poema.
No
entanto, a segunda estrofe revela um pouco mais do gesto de comer abiu.
A segunda estrofe reúne, ainda, um conjunto lexical curioso no que diz respeito à ação
de comer abiu. Em um primeiro plano, apenas temos uma visualização da realidade de quem o
come: os lábios grudam. É válido declarar que isso acontece porque o leite viscoso,
encontrado nas bordas do fruto aberto, quando em contato com os lábios, cola o lábio
mandibular ao lábio maxilar.
Mas a construção dos versos seguintes provoca o imaginário quanto à sugestiva
presença de um corpo feminino sendo explorado pelo eu-lírico, comprovado na construção
dos versos finais do poema, que diz: “oscula o bico duro e pungente do airoso fruto
suaveardente”. Ao refletirmos sobre a primeira informação dada no poema ─ “teta amorosa
de adolescente” ─ e a ligarmos à segunda estrofe, em que nos aparece a construção “bico duro
e pungente”, rapidamente podemos associar as duas informações, assim como notar que o
abiu poetizado no texto é, na verdade, uma metáfora para os seios de uma mulher jovem, que
provocam, no eu-lírico, a mesma ação que o fruto provoca: cola os lábios. Ainda mais
acertado é dizer que o desejo pelos seios jovens é comprovado no último verso do poema, que
elimina o espaço entre as palavras, mostrando-nos o gesto de aproximação.
Nessa ausência de
espaço, o eu-lírico se aproxima ainda mais de seu objeto de desejo, colando as últimas
palavras do rondel.
“Rondel da Jaca”
jaca: entre as frutas
és a matrona,
esparramada,
gorda sultana;
com frouxos bagos
flácido aroma
dá visgo aos lábios
de quem a coma
seu jeito lembra
as contorções
moles, lascivas
dos ventres nus
das odaliscas
no harém cativas
Neste rodel ao qual
nos apresenta uma mulher mais velha, uma mulher “matrona” com um corpo mais
esparramado de uma “gorda sultana”
Não podemos deixar de salientar que o eu-lírico compara a jaca a uma sultana; isto é,
se existe um harém das frutas de conotação feminina em Sol de feira, para ele, a jaca seria a
mãe de todas as outras, a fruta-mulher principal deste harém frutífero amazônico. Seu papel
seria demonstrar a autoridade de seu sultão, o dono do harém ao qual ela faz parte.
Essa comparação se encontra na segunda estrofe do poema, onde o rondel nos mostra
de forma mais clara a comparação entre jaca e a sultana de um harém, uma vez que, para o eulírico, o corpo da fruta (casca, carne, bagos) lembra o corpo das odaliscas dançando com os
ventres à mostra no harém.
Para Bataille (1987), dançar é um “exemplo de movimento
contagioso impulsionado pela natureza, semelhante à atividade sexual que também
impulsiona o homem”. Noutros termos, ao dançar, a mulher provoca em seu expectador o
desejo de também possuí-la; no poema, a jaca, sendo símbolo do feminino presentificado na
figura da odalisca, também provoca em seu expectador os mesmos desejos de domínio sobre
ela. A fruta apresenta-se atraente com seu harém, e o seu sabor é dito pelo eu-poético como
“bagos de flácido aroma”.
Ao trazer o sabor da fruta associada a uma mulher, a construção se torna ainda mais
curiosa, pois se o eu-lírico está saboreando as flácidas bagas da jaca, logo percebemos que ele
leva o fruto à boca, tendo diante de nós a metáfora perfeita para o cunnilingus.
Voltemos, agora, um pouco para a primeira estrofe, para vermos que ela finaliza com a
afirmação de que a jaca, “com frouxos bagos/flácido aroma/ dá visgo aos lábios/ de quem a
coma”. Nesse caso, em particular, o eu-lírico transfere a atividade de observação que realiza
quando poetiza um fruto para a experimentação do paladar.
Curiosamente, também, a estrofe
carrega a informação de que o aroma do fruto é responsável pela ativação do sabor, e isto
porque nosso cérebro possui uma eficaz memória sinestésica, em que o cheiro faz lembrar
sabores e dissabores.
Comentários
Postar um comentário