AS GUARDIÃS DO SABER CULINÁRIO DO GRUPO MBYÁ-GUARANI

Os ensinamentos sobre a culinária do grupo Mbyá-Guarani começam na infância por meio de brincadeiras, e seguem até a vida adulta através de observação e experimentação compartilhada. Toda influência que vem de fora da aldeia não foi suficiente para mudar radicalmente os elementos da tradição deste povo. 

Segunda temporada do Alimentação Ancestral fala sobre saberes tradicionais e outros aspectos que envolvem a culinária ancestral dos Mbyá-Guarani

O Portal Catarinas lança neste 9 de junho, a segunda temporada do podcast Alimentação Ancestral: Comida Mbyá-Guarani. Os três episódios se concentram na Terra Indígena Morro dos Cavalos, em Palhoça, Santa Catarina, e abordam as relações entre comida, modo de vida, território e outros aspectos que envolvem a culinária tradicional dessa população. 

O podcast faz parte do “Alimentação ancestral: identidade cultural e mitologia na comida Mbyá-Guarani”, projeto selecionado pelo Prêmio Elisabete Anderle de Estímulo à Cultura – Edição 2022, executado com recursos do estado de Santa Catarina, por meio da Fundação Catarinense de Cultura.

À frente dessa resistência estão as mulheres: guardiãs da língua, dos saberes sobre alimentos, plantas medicinais e modos de fazer. O documentário Orérembiú Eteí (nossa própria comida), retrata a rotina de preparo da alimentação pelas moradoras da aldeia vy’a, em Major Gercino, na Grande Florianópolis, e reflete sobre a importância desse ritual na preservação da identidade do grupo.

“O vínculo do grupo Mbyá-Guarani com a alimentação está diretamente relacionado ao território, à cosmologia, aos rituais e às práticas relacionadas à saúde. A continuidade da agricultura Guarani é essencial para a permanência da agrobiodiversidade e da segurança alimentar do grupo”, afirma a diretora Vandreza Amante.

Vandreza explica que as imagens foram captadas livremente de acordo com a narrativa proposta pelo grupo. Em entrevista, a jornalista e doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional da FURB contou sobre a experiência na aldeia e as dificuldades encontradas pelo grupo para assegurar sua continuidade. O curta foi exibido na mostra audiovisual do Seminário Fazendo Gênero e em escolas de ensino fundamental e médio de Brusque, Guabiruba e Blumenau.

O grupo Mbyá-Guarani habita desde tempos imemoriais as terras que se estendem entre o Uruguai, Argentina, Paraguai, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, Mato Grosso do Sul, São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo.

Catarinas: Como surgiu a ideia do projeto?

Vandreza: Surgiu da experiência de campo para a pesquisa de mestrado. O documentário pretendeu descrever e analisar como se dá a atual alimentação na reserva indígena Mbyá-Guarani tekoá vy’a. O foco é a alimentação e identidade do grupo, os conflitos que este vem vivendo em consequência dos impactos que o contato com a sociedade envolvente tem promovido, desde a perda dos seus territórios imemoriais com a colonização do sul do Brasil pelos portugueses. Sua resistência tem sido silenciada pelo governo e por grupos políticos interessados em seus territórios para fins puramente econômicos. O propósito foi identificar como esse grupo vem se organizando em torno das mudanças alimentares promovidas por conta dessa situação, permitindo entender como afetaram a sua subsistência e alimentação, os prejuízos advindos para a sua saúde e identidade, até a situação atual, onde o grupo, reencontrando uma terra favorável à produção da sua dieta está buscando se reorganizar na sua tradição. O objetivo é colaborar com reflexões sobre a importância do território para a continuidade da tradição alimentar dos grupos indígenas e da sua identidade, já que a comida faz parte da construção desta identidade.  Com as informações em mãos decidimos em conjunto produzir o vídeo sob orientação da Profª. Drª. Marilda Checcucci.

O audiovisual permite um questionamento sobre paradigmas e modelos de desenvolvimento aplicados indistintamente em todo o território local e nacional, desconsiderando as especificidades culturais de suas populações, incluindo as alimentares.

Como foi o acesso, a troca com as pessoas que habitam a comunidade?

Conheci parte do grupo em 2006 quando estava morando em Florianópolis. Mudei-me para Brusque em 2010 e novamente entrei em contato com os Mbyá-Guarani por conta de uma atividade em um projeto em que trabalhava. Marcelo Benite “karaí xondaro”, Cláudia Benite “pará mirim” e Augustinho Moreira “werá tukumbó” fizeram uma palestra para crianças e foi muito positivo porque elas fizeram muitas perguntas. Em seguida, conheci o responsável pela aldeia Artur Benite “werá mirim” por conta do início de uma pesquisa de mestrado intitulada “Mbyá-Guarani, alimentação e identidade no território: a aldeia vy’a – Major Gercino (SC)”.

A experiência está sendo transformadora. Os Mbyá-Guarani veem o mundo de uma maneira muito particular, com um profundo respeito pela natureza e pelas pessoas. Vejo que temos muito a aprender com eles.

Quais línguas as moradoras e moradores falam? Como foi a comunicação durante as gravações?Todos falam Guarani. Que dizer, eu não. Aprendi algumas palavras. Os moradores e moradoras da aldeia falam diversas línguas como o português e o espanhol, inclusive outras línguas de outros povos originários. Mas para a gravação do vídeo eles falaram em português. Algumas ideias são expressadas em Guarani, primeiro pelo sentido de pertencimento ao grupo e segundo pela não tradução literal para a Língua Portuguesa. Já concretizamos outras parcerias, algumas em Guarani, que estão disponíveis pelo youtube no canal orérembiú eteí.

Assista ao documentário completo

De alguma forma as questões relacionadas às mulheres e gênero foram abordadas no doc?
Percebi que as influências da sociedade envolvente não foram suficientes para mudar radicalmente todos os elementos da tradição do grupo Mbyá-Guarani, em especial das mulheres que permanecem em busca de soluções para dar continuidade ao seu modo de ser. Essas mulheres resguardam a língua, os saberes sobre alimentos e plantas medicinais, os modos de fazer as comidas, a responsabilidade sobre a gestação, o parto e a educação dos filhos. Elas são protagonistas em diversos cenários. São determinadas no dia a dia da aldeia e contribuem decisivamente para discussão sobre identidade e gênero no grupo. Dentro e fora da aldeia.

As mulheres falam pouco no vídeo. O que isso revela?
O silenciamento das mulheres no vídeo indica as posturas cotidianas na aldeia e as interferências nas relações entre os indígenas e a sociedade envolvente onde os homens (nesse primeiro vídeo gravado nessa aldeia) são os protagonistas da voz para fora da aldeia e as mulheres com suas vozes dentro da aldeia para a família extensa. Ela é protagonista na educação e na postura do ser e devir.

As mulheres atuam em busca de soluções para dar continuidade ao modo de ser do povo/Foto: Paula Sofia

O que a troca com essas pessoas te trouxe? Você mantêm contato com as mulheres e homens desta comunidade?
O contato é permanente e me trouxe muitas reflexões que contribuíram para minha formação. Sou jornalista e acredito na crescente democratização que a internet vem promovendo com os diferentes canais de acesso à informação e às diferentes verdades. Principalmente no contexto atual de incertezas e instabilidades. A experiência colaborou para que eu conseguisse encontrar estratégias de ação frente às batalhas frequentes que nos deparamos nas relações de opressão.

Quais as principais barreiras encontradas para o exercício do direito à saúde (e outros direitos) desses povos?
Pelo que vejo são inúmeras. O que o grupo tem acesso hoje ainda não é o suficiente. O governo está mais uma vez virando as costas. A discussão do que é mais adequado sempre deve partir do grupo em foco, mas acredito um caminho seria que programas de saúde fossem voltados às especificidades dos grupos populacionais com a utilização de medicamentos industrializados e naturais que respeitem a cosmologia de cada grupo. A adequação, por exemplo, de políticas alimentares que contribuam para a identidade da aldeia. A capacitação de agentes locais para o atendimento efetivo nas aldeias com médico, enfermeiro, dentista, uma equipe multidisciplinar. A demarcação de terras também é saúde. Há uma relação assimétrica entre as prioridades das comunidades e dos grupos de poder.

Que outras questões foram suscitadas com a vivência?
As terras da aldeia foram adquiridas por iniciativa do grupo em 2007 com recursos advindos do convênio entre o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes/DNIT e a Fundação Nacional do Índio/FUNAI pela duplicação da BR-101 trecho Palhoça – Osório. Nesse projeto governamental em média trinta aldeias de diferentes grupos foram impactadas. Atualmente os Mbyá-Guarani, assim como outros povos originários, lutam principalmente pela demarcação de terras para assegurar a continuidade do grupo, da tradição e do sistema alimentar, já que há um crescente número de nascimentos de crianças nas aldeias. O grupo estabelece diariamente o modo de ser Mbyá com pensamentos coletivos, ações e estratégias que assegurem a vida de suas famílias e a preservação do meio ambiente para as futuras gerações. Até os dias atuais o grupo Mbyá-Guarani habita um grande território demarcado em pequenas áreas. Visitam constantemente seus parentes em busca de sementes naturais para o fortalecimento de referências identitárias nas conversas com os xeramõi, os mais sábios. A demarcação de terras é fundamental. O grupo Mbyá-Guarani tem uma relação imemorial com o seu território. Sua cosmologia está diretamente relacionada com a língua, mitos, cantos, artesanato, dança, plantas medicinais, animais, alimentação entre outros elementos. Habitam o território entre o Uruguai, Argentina, Paraguai, Bolívia, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, Mato Grosso do Sul, São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo. Alimentavam-se antes do contato a partir da colonização com o que estava disponível principalmente na Mata Atlântica como tubérculos locais, animais como porcos do mato, patos selvagens, aves, peixes, frutas pertencentes à floresta. Atualmente na aldeia vy’a o grupo possui criação de animais como algumas espécies de galinhas, plantam milho, batata-doce, mandioca, cana-de-açúcar, melancia, abacaxi, amora, banana, mamão, amendoim, maracujá, plantas medicinais, além de uma horta com alimentos incorporados mais recentemente à sua tradição alimentar como alface, cebolinha e salsinha. Praticam a pesca no Rio Tijucas. Recorrem à compra de alimentos e eventuais doações.

Você tem projetos para dar continuidade a esse trabalho?
Continuamos a aprofundar a pesquisa com o enfoque nas relações que permeiam a alimentação da criança Mbyá-Guarani. Para que consigamos perceber essa realidade abordaremos a escola indígena e a merenda escolar como uma política pública já consolidada na aldeia. Trazemos essa reflexão sobre a alteração do sistema alimentar do grupo para que se possa perceber as referências identitárias que integram a cosmologia do modo de ser Mbyá-Guarani e a negligência do Estado que desconsidera essa realidade. As mulheres do grupo chamam atenção para o desafio que representa para mulheres e homens Guarani assegurar sua alimentação. Uma outra discussão é o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) que incluiu a comercialização da produção rural indígena para a merenda escolar adquirida pelo Selo da Identificação da Participação da Agricultura Familiar (Sipaf). O alimento principal da dieta Guarani é o milho dito por eles como avaxí que pode ser consumido na escola assado, cozido, como farinha ou transformado em pamonha, canjica, sucos e pães, com o grupo de crianças da mesma comunidade.  Esse é um passo inicial para o reconhecimento da diversidade alimentar e cultural do território, que precisa ser discutida e ancorada nos preceitos éticos do grupo. 

A proposta é refletir sobre a alimentação de diferentes organizações sociais e identificar processos que contribuam com o reconhecimento dos grupos, populações tradicionais e povos originários nas políticas públicas de desenvolvimento regional e territorial.

Orérembiú eteí foi financiado pelo Edital Elisabete Anderle de Incentivo à Cultura, de 2014.

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