O vinho na literatura oral

Foi Fernando Pessoa que disse que “A quadra é o vaso de flores que o Povo põe à janela da sua alma”.
 

Na Foto: FERNANDO PESSOA, bebendo um copo de vinho



Daí não admirar que o vinho esteja também registado no cancioneiro popular, já que Portugal como país europeu do sul sempre teve uma cultura báquica, que é o mesmo que dizer que Portugal desde sempre foi um país de amantes da pinga. 

De acordo com o cancioneiro popular, o vinho dá alívio, alegria e mesmo força:
“Aqui d’el-rei, peixe frito!
Caia-me aqui um pão mole,
Chovam garrafas de vinho
Tudo ao meu ò Redol.“
       (Tolosa, concelho de Nisa)
“Para cantar dói-me um dente,
Trabalhar. Dói-m’uma perna,
Quando tenho algum alívio
É à porta da taberna.“
                               (Nisa)
“Venha o copo, venha a pinga,
Venha mais meia canada,
Eu sem o copo não bebo
Sem a pinga não sou nada.“ 
(Vila Verde de Ficalho, concelho de Serpa)
“Dizem que um copo de vinho,
Quando é bom, dá força à gente,
É mentira certamente,
Tal não posso acreditar.
Eu já hoje bebi treze
E, senhores, não posso andar!“
                                         (Elvas)
Beber demais conduz naturalmente à bebedeira, imortalizada por mestre José Malhoa no quadro “Festejando o São Martinho”.
Reza a tradição algarvia que em 383, São Martinho de Tours, solicitou ao imperador Máximo ajuda material para a construção de um convento. Foi bem recebido pelo imperador e participou num banquete com os membros da corte. No banquete bebeu-se em demasia e foram tantas as bebedeiras que o banquete foi desde logo, classificado como martinhada. Segundo consta, esta terá sido a origem de São Martinho ser o patrono dos bêbados, embora nada permita afirmar que tenha sido daqueles que se excederam na bebida.
São Martinho é festejado a 11 de Novembro, dia em que por tradição se prova o vinho novo, pois São Martinho é pretexto para molhar a goela.
A língua portuguesa é rica em sinônimos:
- VINHO: briol, chá de parreira, murraça, pinga, pomada, vinhaça, etc.
- BÊBADO: alegre, avinhado, bêbedo, bebedolas, beberrão, borracho, casco, copofone, dorna, ébrio, embriagado, entrado, esponja, grosso, pipa, tocado, tonel, etc.
- BEBEDEIRA: açorda, bêbeda, borracheira, cardina, carraspana, carga, carapuça, dose, embriagês, fornada, grossura, gatosa, osga, piela, perua, pifão, tachada, torta, trabuzana, vinho, vinhaça, etc.
No Alentejo são conhecidas alcunhas atribuídas a visados conhecidos por serem bêbados: Barril, Bêbado da quarta, Bêbado, Bebe à perna, Bebedinhas, Camadas, Camadinhas, Vinhaça, Vinho tinto.
É rico o adagiário português relativo aos bêbados:
- “A bebedor não lhe falte vinho e à fiandeira linho.“
 “A bem comer ou mal comer, três vezes beber.“
- “A bom comer ou mau comer, três vezes beber.“
- “A bom ou mau comer, três vezes beber.“
- “Antes e depois da sopa molha-se a boca.“
- “Ao bêbado e ao tolo, dá-se o caminho todo.“
- “Ao bêbado não falta vinho, nem à fiandeira linho.“
 “Ao bom comer ou ao mau comer, três vezes beber.“
- “Ao menino e ao borracho põe-lhe Deus a mão por baixo.“
- “Atravessado é pior que bêbedo.“
- “Bebe por alegria, não por tristeza.“
- “Bebe vinho branco de manhã e tinto de tarde para teres sangue.“
- “Beber vinho não é beber siso.“
- “Bebes de mais? Tropeças e cais.“
- “Bebeu, jogou, furtou; beberá, jogará, furtará.“
- “Bebidas fartas, homens fracos.
- “Bom comer, três vezes beber.“
- “Comer e beber, deita a casa a perder.“
- “Comer sem beber não é comer.“
- “Depois de melão, de vinho um tostão.“
- “Diz o borrachão o que tem no coração.“
- “Entra o beber, sai o saber.“
- “Ir com muita sede ao pote.“
- “João cambão, borracha de vinho.“
- “Jogo e bebida, casa perdida.“
- “Ladra só, bêbeda só e puta só.“
- “Mais homens se afogam no copo que no mar.“
- “Mais homens se afogam no vinho do que no mar.“
- “Manta e cobertor, não para bom bebedor.“
- “Não bebe: embebe.“
- “Não há função nem brincadeira que não acabe em bebedeira.“
- “O bebedão diz tudo o que lhe vai no coração.“
- “O pródigo e o bebedor de vinho nunca têm casa nem moinho.“
- “O que havemos de fazer? Descansar e tornar a beber.“
- “O que o sábio guarda no coração, tem na boca o beberrão.“
- “O último calcinho é que deita o juízo abaixo.“
- “O último calcinho é que deita um homem abaixo.“
- “Onde entra o beber, sai o saber.“
- “Por um morto de sede, morrem mil, de beber.“
- “Por um que morre de sede, morrem cem mil por beber.“
- “Quem almoça vinho, janta água.“
- “Quem bebe antes do almoço, chora depois do sol-posto.“
- “Quem bebe de mais, representa três animais: macaco ou porco ou leão.“
- “Quem bebe tudo num dia, no outro assobia.“
- “Quem come na taberna, duas casa governa.“
- “Quem come salgado, bebe dobrado.“
- “Quem é amigo do vinho, de si mesmo é inimigo.“
- “Quem muito bebe, nunca paga o que deve.“
- “Quem muito bebe, tarde paga o que deve.“
- “Quem não sabe beber, não sabe viver.“
- “Quem passa o dia a beber, no dia seguinte tem de fazer.“
- “Sábado a chover e bêbados a beber, nunca ninguém os pode vencer.“
- “Se bêbado te vieres a sentir, foge à companhia e vai dormir.“
- “Se bêbado te vires sentir, foge à companhia e vai dormir.“
- “Se bebes de mais, tropeças e cais.“
- “Se bebes para esquecer, paga antes de beber.“
- “Se bebes vinho, não bebas o siso.“
- “Se chovesse vinho é que se conheciam os bêbados.“
À riqueza linguística do adagiário popular há que acrescentar a riqueza de múltiplas imagens metafóricas, usadas na gíria portuguesa: 
“Beber como um funil = Beber em larga escala“ 
Beber como uma esponja = Idem “ 
“Beber como um odre = Idem “ 
“Beber de caixão à cova = Beber até cair”
“Andar aos SS = Estar bêbado“ 
“Andar aos ziguezagues = Estar bêbado“ 
“Cor de vinho = Cor roxa“ 
“Encher uma rua = Estar bêbado“ 
“Estar a cair = Estar bêbado“ 
"Estar com ela = Estar bêbado“ 
“Estar com o vinho = Estar bêbado“ 
“Estar tocado da pinga = Estar bêbado“ 
“Ir a medir as estradas = Estar bêbado“ 
“Não ir só = Estar bêbado“ 
“Ter mau vinho = Fazer tropelias quando está bêbados“ 
“Ter o vinho alegre = Ficar alegre quando está bêbado“ 
“Ter o vinho triste = Ficar triste quando está bêbado“ 
“Ter os olhos pequenos = Estar bêbado“ 
“Ter um grãozinho na asa = Estar bêbado
“Ter uma pontinha de vinho = Começar a estar bêbado“ 
“Trocar o passo = Estar bêbado“ 
Os bêbados seguem à risca os dez mandamentos que lhe dizem respeito e que em Mogadouro são:
“1º - Beber com assesto (sossego).
  2º - Esgotar os copos até o fundo.
  3º - Fazer da garganta um ribeiro.
  4º - Beber até ficar farto.
  5º - Beber do branco e do tinto.
  6º - Beber a qualquer pretexto.
  7º - Beber do seu e de empréstimo.
  8º - Beber até ficar como um cravo.
  9º - Beber no Inverno, Primavera, Estio e Outono.
10º - Beber até ficar em créscimo.”
Estes dez mandamentos podem ser resumidos a dois:
“1º - Beber sempre.
  2º - Nunca deixar de beber.”
Os dez mandamentos podem, finalmente, ser resumidos num único que diz:
- “Pregar os beiços na torneira e nunca deixar de beber”.
Penso que este mandamento único, sintetiza duma forma magistral, o carácter báquico da cultura portuguesa.
Hernâni Matos
BIBLIOGRAFIA
[1] – BESSA, Alberto. A Gíria Portugueza. Livraria Central de Gomes de Carvalho. Lisboa, 1901.
[2] – FRAZÃO, A. C. Amaral. Novo Dicionário Corográfico de Portugal. Editorial domingos Barreira. Porto, 1981.
[3] – RAMOS, Francisco Martins & SILVA, Carlos Alberto da. Tratado das Alcunhas Alentejanas. 2ª edição. Edições Colibri. Lisboa, 2003.
[4] – SANTOS, Maria Alice dos. Dicionário de Provérbios. Porto Editora. Porto, 2000.
[5] - SILVEIRA, Joaquim da. Toponímia Portuguesa in Revista Luzitana, Vol. XXXY. Lisboa, 1937.
[6] – VÁRIOS. Grande Enciclopédia Luso-Brasileira.
[7] – VASCONCELLOS, J. Leite de. Cancioneiro Popular Português. Volume II. Acta Universitatis Conimbrigensis. Coimbra,1979.
[8] – VASCONCELLOS, J. Leite de. Etnografia Portuguesa. Vol. VI. Imprensa Nacional-Casa da Moeda. Lisboa, 1975.

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