O Martírio do Açúcar – os aspectos salvíficos da escravidão

Uma das passagens mais intrigantes da obra de “Cultura e Opulência do Brasil”, de João Antônio Andreoni (Antonil),
escrita em 1711 – um dos mais importantes textos sobre a economia e a sociedade do Brasil Colônia – é “Do que padece o açúcar desde o seu nascimento na cana, até sair do Brasil”. O açúcar é retratado como um verdadeiro mártir, as etapas para a transformação da cana são descritas como sofrimentos atrozes e provações penosíssimas.


Como o homem, os produtos da natureza devem passar por experiências “dolorosas” para se tornarem alimentos mais refinados e saborosos:

“É reparo singular dos que contemplam as cousas naturais ver que as que são de maior proveito ao gênero humano não se reduzem à sua perfeição sem passarem por notáveis apertos; e isto se vê bem na Europa no pano do linho, no pão, no azeite e no vinho, frutos da terra tão necessários, enterrados, arrastados, pisados, espremidos e moídos antes de chegarem a ser perfeitamente o que são.”

Andreoni escolhe o açúcar como figura a representar esta alegoria cristã da existência humana.

“Chegadas à moenda, com que força e aperto, postas entre os eixos são obrigadas a dar quanto têm de sustância? Com que desprezo lançam seus corpos esmagados e despedaçados ao mar? com que impiedade se queimam sem compaixão no bagaço? Arrasta-se pelas bicas quanto humor saiu de suas veias e quanta sustância tinham nos ossos; trateia-se e suspende-se na guinda, vai a ferver nas caldeiras, borrifado (para maior pena) dos negros com decoada; feito quase lama no cocho; passa a fartar às bestas e aos porcos, sai do papel escumado e se lhe imputa a bebedice dos borrachos.”

E mais adiante:

“Pregam-no finalmente e marcam com fogo ao sepulcro em que jaz; e assim pregado e sepultado, torna por muitas vezes a ser vendido, revendido, preso confiscado e arrastado, e se livra das tormentas do mar, nem do degredo, com imposições e tributos, tão seguro de ser comprado e vendido entre cristãos como arriscado a ser levado a Argel entre mouros.”

Ronaldo Vainfas vê neste capítulo uma alegoria  sutil da escravidão africana por não haver identidade entre a cana e o escravo; ao mesmo tempo, o autor acredita que a aproximação é óbvia porque as imagens se assemelham àquelas utilizadas por Vieira e Benci para descrever os horrores da escravidão.

Antonil estaria criticando a face mais cruel da escravidão, ou seja, os castigos excessivos, a falta de alimentação, remédios e roupas, e, principalmente, a ausência da doutrina cristã. Ao mesmo tempo dando legitimidade a ela quando associa os sofrimentos do escravo ao Martírio de Cristo. Ao falar sobre os maus tratos dispensados ao escravo estaria fazendo uma crítica, mas, ao retratá-los como forma de salvação e redenção, estaria legitimando a própria escravidão.

 Laura de Mello e Souza também analisa esta passagem como “uma grande metáfora do sofrimento escravo em terras coloniais.” E afirma que Andreoni não busca apenas mostrar o calvário dos negros, mas, “desumanizar o que é humano e dignificar, sacralizando, o que pertence ao mundo da produção dos valores econômicos.”

 Na sua purgação o açúcar sofre os piores martírios e humilhações, para se tornar “tão alvo como inocente.” Como um mártir, ou um herói na concepção do período, apesar de tudo:

(…) “sempre doce e vencedor de amarguras, vai a dar gosto ao paladar dos seus inimigos, nos banquetes, saúde nas mezinhas aos enfermos e grandes lucros aos senhores de engenho e aos lavradores que o perseguiram e aos mercadores que o compraram e o levaram degredado nos pontos e muitos maiores emolumentos à Fazenda Real das Alfândegas.”

Mais uma vez encontramos o caráter exemplar empregado nas narrações da vida dos santos e de nomes ilustres da Igreja: suportar os sofrimentos sem reclamar, tornar-se melhor após uma vida de martírios e manter sempre a “doçura”, mesmo com os inimigos e perseguidores, são ensinamentos da fé cristã para o homem se aproximar mais de Deus. No caso do escravo, o cativeiro seria a oportunidade de sair do pecado, a África, e conhecer a salvação na Colônia.

A aproximação entre o açúcar e o escravo, nesta passagem, é a mais direta. Não só pelas imagens típicas de relatos sobre a escravidão, mas, pela presença de verbos como: comprar, vender, prender, amarrar, lucrar. Todos estes verbos criam uma a associação entre o percurso da cana e o percurso do africano. Apesar de ser a mais imediata, esta interpretação não é a única.

Alfredo Bosi nos diz que “a passagem poderia chamar-se: nascimento, paixão e morte da cana-de-açúcar do Brasil a Portugal.” E que a cana, passando por transformações de natureza trabalhada a mercadoria vendida, torna-se o verdadeiro de sujeito do martírio. “E de sujeito sofredor, cujo calvário reitera o sacrifício por excelência, o paradigma da paixão de Cristo.”

Bosi lembra a imagem negativa com que Antonil mostra os negros neste capítulo:

“os escravos boubentos e os que têm corrimentos, obrigados a esta penosa existência para purgarem com suor violento os humores gálicos de que têm cheiros os seus corpos.”

As torturas e humilhações são impostas ao açúcar pelos escravos e se o açúcar tem inimigos, estes seriam os próprios escravos que desafogariam sobre ele os seus rancores. Afinal “até as escravas lhe botam, sobre o barro sujo, as lavagens.” E as mesmas escravas “armadas de toletes, folgam de lhe fazer os mesmos pés em migalhas.” Após todas estas humilhações o açúcar fica “exposto a quem o quiser maltratar, experimenta o que pode o furor de toda gente sentida e enfadada do muito que trabalhou andando atrás dele.”

Pode-se pensar também, se lembrarmos o caráter “heroico” do açúcar, numa aproximação com a figura do missionário. Arrancados da Europa por força da fé, submetidos aos perigos do mar, os missionários chegam à Colônia, onde encontram uma população rude e desconfiada. Embrenham-se nas matas para a catequização do gentio, passam por muitas dificuldades e muitas vezes são hostilizados pelos índios e pelos colonos. A sua “doçura”, porém, continua: pregam e tentam salvar as almas dos pecadores.

Em última instância, quem deu mais lucro à Coroa e à elite colonial do que a própria Igreja? A legitimação teológica da colonização e da escravidão foi um dos alicerces fundamentais para a construção da estrutura colonial. Tudo isto faz parte de uma realidade muito próxima a Andreoni e à Companhia de Jesus.

Um aspecto que causa estranheza ao leitor de Cultura e Opulência do Brasil é a diferença de estilo encontrada em “De que padece o açúcar desde o seu nascimento na cana até sair do Brasil”, em relação ao resto da obra. O próprio autor declara que usará “o mesmo estilo e modo de falar claro e chão que se usa nos engenhos.”

     Em “De que padece o açúcar…” notam-se algumas diferenças em relação à linguagem do restante da obra, com a presença de figuras de linguagem e imagens “poéticas”. Affonso d’E. Taunay acha que os “Mil e um padecimentos e torturas” do açúcar são narrados numa síntese “espirituosa” e  “vivaz”. E ainda que são páginas recheadas de um humorismo dificilmente encontrado em livros portugueses. Apesar de não parecer que haja “humorismo” nesta passagem, a ironia se faz presente.

Para compreendermos melhor esta aparente contradição de estilos existente na obra de Andreoni devemos recorrer aos ensinamentos da retórica. A retórica no século XVI e XVII possuía uma relação intrínseca com a teologia, sendo vista como um instrumento necessário para a propagação da doutrina. A retórica era, portanto, uma parte importante da formação dos religiosos, inclusive da ordem jesuítica.

A variedade discursiva, na época dita “barroca”, ligava-se à ideia de receptividade das verdades da fé: era preciso “persuadir deleitando”. Em meio a uma obra que visa informar e instruir, a colocação de um capítulo para deleite do leitor era bastante recomendável para se atingir um discurso harmonioso e agradável. Na formação de Andreoni, um jesuíta que viveu no século XVII e início do XVIII, a retórica teve um papel fundamental, por isso o seu estudo é imprescindível para um melhor entendimento da documentação.

Estas duas páginas com que nosso jesuíta termina a parte de Cultura e Opulência dedicada ao açúcar representam uma alegoria dos processos de produção do açúcar descritos nos capítulos anteriores. Escritas com brilhantismo e fina ironia, suscitaram, como já foi visto, várias interpretações. Sua leitura nos leva a inúmeras reflexões sobre a sociedade colonial, tanto nas relações econômicas, como nas sociais e religiosas. As intenções de Andreoni, talvez permaneçam sempre obscuras, mas, as interpretações continuarão a aparecer, aguçando cada vez mais a curiosidade dos leitores.

Texto de Márcia Pinna Raspanti

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