O Sistema Alimentar e a Culinaria Afro-brasileira

No caso da gastronomia e da alimentação, estão vinculadas ao livro dos saberes, enquanto que a UNESCO as entendem de forma mais ampla, vinculada a cozinhas. No caso da Cozinha Tradicional Mexicana, a mesma é entendida como parte de um modelo cultural completo, compreendendo atividades agrárias, práticas rituais, conhecimentos e técnicas culinárias, além de comportamentos comunitários ancestrais (UNESCO, 2012).

Entende-se por cozinha os sistemas alimentares vinculados a uma comunidade e a um povo, que possuem características próprias e singulares (MACIEL, 2005). 

As cozinhas também definem identidades, e assim, hábitos e práticas comunitárias, formando um panorama coerente e integrado a outros elementos da vida cotidiana.

Desta cozinha, muitas vezes, há algum prato que se destaca, seja pelas suas características próprias, seja pelo significado que tem para os grupos, sendo assim definidos como pratos típicos, com muitos destes passando a serem considerados bens culturais (GIMENES, 2006; MAGALHÃES, 2012). 

Este foi o caso do Acarajé que, em um primeiro momento, foi tido como bem cultural a partir do bolinho em sua materialidade, restrito ao seu modo de fazer. Em um segundo momento percebeu-se a importância de envolver outros elementos como a preparação do tabuleiro, a indumentária, o “fazer o ponto” e o sistema de crenças vinculado ao ofício das baianas, sendo inserido no livro dos saberes, que considera os conhecimentos e modos de fazer enraizados no cotidiano das comunidades (MARTINS, 2011; IPHAN, 2012).

A invisibilidade e o epstemicidio dos povos originários e de matriz africana, a negação ou apropriação cultural e dos saberes e conhecimentos dos povos formadores da nossa identidade, também é uma das causas da aculturação que sofremos.

A desumanização começa nos enunciados, não quero fazer parte de uma cultura de raiz, muito pelo contrário, nossa cultura deve ser lembrada como Tronco e Copa, de uma árvore que produz muitas frutas, flores, mas também Espinhos.

Tolerar a barbárie é legitimar a inferiorização, e somos um povo solar.

Amálgama de de muitos dialetos africanos, de uma generosa diversidade de línguas indígenas, que ao longo dos séculos foram silenciadas, está na hora de defender este legado de luta."


A relação da espécie humana com seu ambiente natural foi transformada a partir da descoberta do fogo.

O ato de cozinhar foi o primeiro fato que nos mostra a diferenciação entre a naturesa e a cultura, a primeira comunidade que se estabeleceu em torno do alimento pode ter sido a família.

A palavra “lar” vem de “lare”, que no latim significa, etimologicamente, “a parte da cozinha onde se acende o fogo”. Percebeu a profundidade? A idéia original da palavra “lar” é de um lugar íntimo, onde há aconchego. 

Da palavra “lar”, surgiu a palavra “lareira”. Era ao redor da lareira que a família se reunia, ao redor do fogo, nas noites e dias frios.

A comida envolve emoção, trabalha com a memória e com sentimentos. 

As expressões "comida da mãe", ou "comida caseira" ilustram bem este caso, evocando infância, aconchego, segurança, ausência de sofisticação ou de exotismo. Ambas remetem ao "familiar", ao próximo, ao frugal. Porém, se o "toque caseiro" é o toque mais íntimo em oposição ao "toque profissional", em série, não-pessoal. 

O toque "da mãe" é uma assinatura, que implica tanto no que é feito, como na forma pela qual é feito, que marca a comida com lembranças pessoais, intuitivas e cheias de afeto.

A comida pode marcar um território, um lugar, servindo como marcador de identidade ligado à uma rede de significados. Podemos assim falar em "cozinhas" de um ponto de vista "territorial", associadas a uma nação, território ou região, tal como a "cozinha chinesa", a "cozinha baiana", ou a "cozinha mediterrânea", indicando locais de ocorrência de sistemas alimentares delimitados.

A cozinha permite que cada país, região ou grupo assinale sua distinção através do que come, o que fez com que alguns autores retomassem o adágio de Brillat-Savarin, modificando-o para: "Diz-me o que comes e te direi de onde vens."

Depois desta definição sobre sistemas alimentares, seria no mínimo uma afronta a cultura culinária Afro-brasileira, dizer que existia uma Comida de Senzala.

"Comida de escravo” 

Por Mary Dal Priori

Em África, o escravo não escolhia o que comer: recebia ração. Grandes plantações de gêneros, destinadas aos capturados e recolhidos em barracões na costa, cresciam entre São Felipe de Banguela, Amabaca, Cacondo ou Cajango. Informa Luís da Câmara Cascudo que ali recebiam num saco, a sua provisão de milho fresco ou assado, aipim e farinha de mandioca. 

Nas longas marchas, acorrentados, não tinham tempo para usar o azeite de dendê ou ndende, em quimbundo ou o sal, substituídos pelo peixe seco. Raramente conseguiam preparar um angu com farinha de milho, o anfunge, ou uma sopa, a matete. 


O tráfico de Angola e Guiné se abastecia nos portos brasileiros com farinha de mandioca, macaxeira ou aipim, feijão, salpreso e a partir do século XVIII, aguardente. No XIX, Carl Seidler viu acrescentarem arroz à dieta da travessia. 

Os barcos que cruzavam o Atlântico introduziram o uso do milho e da mandioca no litoral do continente.

Nos primeiros séculos, os africanos estranharam a alimentação. Ao milho que lhes era dado “por fruta”, como indica Gabriel Soares de Souza, aos carás e às pacovas, banana nativa, preferiam o sorgo, os inhames e as bananas. No Recôncavo baiano, os senhores entenderam a lição e passaram a plantar inhames e bananas. Já a farinha de mandioca era obrigatória na casa grande ou na senzala. Que o diga Soares de Souza:

“Desta farinha de guerra usam os portugueses que não tem roças […] com que sustentam seus criados e escravos e nos engenhos se provêm dela para sustentarem a gente em tempo de necessidade”.

Ao desembarcar exaustos e sangrando pelo “mal de Luanda”, nome dado ao escorbuto, os escravos iam recuperar a saúde e, graças a ela, o preço. No Nordeste, os cajuais, ricos em vitamina C, eram remédio certo. No Rio de Janeiro, de onde eram distribuídos para as outras capitânias, faltavam os cajuais, mas a preocupação dos comerciantes do mercado do Valongo era a mesma: recuperar os viajantes. Eram, então, alimentados com farinha de mandioca, feijão e carne seca, e como observou o viajante Rugendas “não lhes faltam frutas refrescantes”.

Uma vez adquiridos, a comida de escravo variava com sua função ou atividade. E, segundo Cascudo, variava pouco. 

A base era idêntica, diz ele, e apenas a incidência de alguma carne ou pescado para dar gosto distinguia o regime. Para o Norte, a farinha de mandioca dava o tom do prato. Pelo interior da Bahia na direção Sudeste, predominava o milho, batizado pelo angolês de fubá, nome da farinha em quimbundo, além do mingau mais consistente de angu. Saint-Hilaire observou: “É fazendo cozer o fubá na água, sem acrescentar sal, que se faz essa espécie de polenta grosseira que se chama angu e constitui o principal alimento dos escravos”. No Rio, no tempo de Debret, os escravos das fazendas “alimentavam-se com dois punhados de farinha seca, umedecidos na boca pelo sumo de algumas bananas ou laranjas”. 

E completava: 

“A alimentação do negro numa propriedade abastada compõe-se de canjica, feijão-preto, toucinho, carne seca, laranjas, bananas e farrinha de mandioca […] É permitido, entretanto, ao negro mal alimentado aplicar o produto da venda de suas hortaliças na compra de toucinho e carne-seca. Finalmente, a caça e a pesca, praticadas em suas horas de lazer, dão-lhe a possibilidade de alimentação mais suculenta”.

Muitas plantas africanas foram, assim, transplantadas para cá, como a palmeira de dendê vinda de Angola ou o quiabo. Em tempo de seca, o escravo podia até comprar a liberdade pela venda de cereais guardados e produzidos no “roçadinho”. Caso de Feliciano José da Rocha que morreu livre e rico, senhor da fazenda Barrentas, no Acari, Rio Grande do Norte, pois vendeu farinha a seu senhor. Já se propriedade de senhores pobres, eles tinham que se contentar como foi dito, com farinha e laranjas. 

Porém, escravo “pedir de comer” noutra casa era desonra para o senhor.

Escravo faminto significava vergonha. 

Os escravos com filhos menores ou ainda amamentados tinham rações duplas e as mães, horários para atender as crias.

Nas cidades – é o mesmo autor quem o diz – os recursos se acresciam pela venda de comida preparada e oferecida pelas negras nas praças e cais: angu, mingau de carimã ou milho, peixe assado, milho cozido em grãos servidos no caldo, mungunzá e iguarias vindas da Bahia, possivelmente acaçá, caruru, moquecas com o peixe enrolado em folhas, farinhas de caju e milho torrado açucaradas, o tão elogiado por todos os viajantes, aluá de arroz. E as carnes: seca, afogueada nas brasas ou assada nos braseiros, escaldada em rápida fervura. Para adoçar a boca e a vida, caldo de cana, rapadura, manuês, bolo-preto, pé-de-moleque, arroz doce com canela, doce de coco ralado, “tantos engana-fomes inventados pela penúria aproveitadora do material mais próximo”, conforme Cascudo.

ra envolve amplos espectros da vida comunitária, social e econômica de milhões de brasileiros.  

Sempre ao mesmo horário, as levas de negros escravos, chegavam aos barrancos do "Chega-Nego", onde hoje podemos localizar o bairro do Jardim de Alá em Salvador

Semi-nus, e em péssimas condições físicas eram encaminhados para as Senzalas mais próximas.

Ao desembarcar exaustos e sangrando pelo “mal de Luanda”, nome dado ao escorbuto, os escravos iam recuperar a saúde e, graças a ela, o preço, no Nordeste, os cajuais, ricos em vitamina C, eram remédio certo.

Em África, o escravo não escolhia o que comer: recebia ração. Grandes plantações de gêneros, destinadas aos capturados e recolhidos em barracões na costa, cresciam entre São Felipe de Banguela, Amabaca, Cacondo ou Cajango. Informa Luís da Câmara Cascudo que ali recebiam num saco, a sua provisão de milho fresco ou assado, aipim e farinha de mandioca. Nas longas marchas, acorrentados, não tinham tempo para usar o azeite de dendê ou ndende, em quimbundo ou o sal, substituídos pelo peixe seco. Raramente conseguiam preparar um angu com farinha de milho, o anfunge, ou uma sopa, a matete. O tráfico de Angola e Guiné se abastecia nos portos brasileiros com farinha de mandioca, macaxeira ou aipim, feijão, salpreso e a partir do século XVIII, aguardente. 

No XIX, Carl Seidler viu acrescentarem arroz à dieta da travessia.

Os barcos que cruzavam o Atlântico introduziram o uso do milho e da mandioca no litoral do continente.

Nos primeiros séculos, os africanos estranharam a alimentação. Ao milho que lhes era dado “por fruta”, como indica Gabriel Soares de Souza, aos carás e às pacovas, banana nativa, preferiam o sorgo, os inhames e as bananas. No Recôncavo baiano, os senhores entenderam a lição e passaram a plantar inhames e bananas. Já a farinha de mandioca era obrigatória na casa grande ou na senzala. Que o diga Soares de Souza:

“Desta farinha de guerra usam os portugueses que não tem roças […] com que sustentam seus criados e escravos e nos engenhos se provêm dela para sustentarem a gente em tempo de necessidade”.

No Rio de Janeiro, de onde eram distribuídos para as outras capitânias, faltavam os cajuais, mas a preocupação dos comerciantes do mercado do Valongo era a mesma: recuperar os viajantes. Eram, então, alimentados com farinha de mandioca, feijão e carne seca, e como observou o viajante Rugendas “não lhes faltam frutas refrescantes”.

Uma vez adquiridos, a comida de escravo variava com sua função ou atividade. E, segundo Cascudo, variava pouco. A base era idêntica, diz ele, e apenas a incidência de alguma carne ou pescado para dar gosto distinguia o regime. Para o Norte, a farinha de mandioca dava o tom do prato. Pelo interior da Bahia na direção Sudeste, predominava o milho, batizado pelo angolês de fubá, nome da farinha em quimbundo, além do mingau mais consistente de angu. Saint-Hilaire observou: “É fazendo cozer o fubá na água, sem acrescentar sal, que se faz essa espécie de polenta grosseira que se chama angu e constitui o principal alimento dos escravos”. No Rio, no tempo de Debret, os escravos das fazendas “alimentavam-se com dois punhados de farinha seca, umedecidos na boca pelo sumo de algumas bananas ou laranjas”. E completava:

“A alimentação do negro numa propriedade abastada compõe-se de canjica, feijão-preto, toucinho, carne seca, laranjas, bananas e farrinha de mandioca […] É permitido, entretanto, ao negro mal alimentado aplicar o produto da venda de suas hortaliças na compra de toucinho e carne-seca. Finalmente, a caça e a pesca, praticadas em suas horas de lazer, dão-lhe a possibilidade de alimentação mais suculenta”.

Muitas plantas africanas foram, assim, transplantadas para cá, como a palmeira de dendê vinda de Angola ou o quiabo. Em tempo de seca, o escravo podia até comprar a liberdade pela venda de cereais guardados e produzidos no “roçadinho”. Caso de Feliciano José da Rocha que morreu livre e rico, senhor da fazenda Barrentas, no Acari, Rio Grande do Norte, pois vendeu farinha a seu senhor. Já se propriedade de senhores pobres, eles tinham que se contentar como foi dito, com farinha e laranjas. Porém, escravo “pedir de comer” noutra casa era desonra para o senhor. Escravo faminto significava vergonha. Os escravos com filhos menores ou ainda amamentados tinham rações duplas e as mães, horários para atender as crias.

Nas cidades – é o mesmo autor quem o diz – os recursos se acresciam pela venda de comida preparada e oferecida pelas negras nas praças e cais: angu, mingau de carimã ou milho, peixe assado, milho cozido em grãos servidos no caldo, mungunzá e iguarias vindas da Bahia, possivelmente acaçá, caruru, moquecas com o peixe enrolado em folhas, farinhas de caju e milho torrado açucaradas, o tão elogiado por todos os viajantes, aluá de arroz. E as carnes: seca, afogueada nas brasas ou assada nos braseiros, escaldada em rápida fervura. Para adoçar a boca e a vida, caldo de cana, rapadura, manuês, bolo-preto, pé-de-moleque, arroz doce com canela, doce de coco ralado, “tantos engana-fomes inventados pela penúria aproveitadora do material mais próximo”, conforme Cascudo.

Texto de Mary del Priore.


Texto de Mary del Priore. 

“Negras cozinheiras vendendo angu” e “Negra tatuada vendendo caju”, de Jean Baptiste Debret.


As fotos fazem parte do livro  Brasil pitoresco (1861) de Victor Frond e Charles Ribeyrolles a primeira publicação a utilizar a fotografia na América Latina. 

As fotografias aparecem indiretamente, no entanto, servindo de base para os desenhos que foram de fato impressos. Com dezenas de imagens, três volumes e texto em português e francês  a obra era bastante luxuosa e parte do seu financiamento veio do próprio governo do Brasil. 

Não por acaso e nem por puro apoio às artes, já que a finalidade principal do livro era criar uma imagem pitoresca e atraente do país para os olhos europeus, uma espécie de revisão de relatos de viagem anteriores que não se limitavam a apenas imagens positivas.

No contexto em que a abolição da escravidão se mostrava cada vez mais inevitável e o aumento da população branca se tornava política de Estado, estimular a imigração europeia tanto para esse fim, como para a industrialização e ocupação do território era urgente para o Império. Em uma matéria de jornal da época, lia-se: “Não faltará quem diga que há assuntos de mais importância para a atenção do governo. 

Não conhecemos outro mais grave nem mais importante do que a introdução de braços. Tudo quanto tender a fomentar a emigração europeia para as nossas praias, por mais remota que pareça a sua ação, é de interesse imediato para o país.” (Correio mercantil, 1859)

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