Nem tudo são delicias nos Tabuleiros das Baianas.
Numa sociedade complexa como a brasileira muitas questões são tratadas com superficialidade, frente ao fato da urgência de tantos outros problemas, o que não significa que sejam emergentes.
Mas muitas questões vem sendo tratadas de forma subliminar, e usando técnicas menos perceptíveis à olhares pouco atentos.
Venho observando ha algum tempo um recurso sofisticado de utilização da linguagem nos remete a um movimento que tem raízes históricas, a imposição cultural, a partir da invisibilidade.
O epstemicidio e genocidio dos povos originários e de matriz africana, a negação ou apropriação cultural e dos saberes e conhecimentos dos povos formadores da nossa identidade, também é uma das causas da aculturação que sofremos, fruto de uma história de violências.
A desumanização começa nos enunciados, na desconstrução de símbolos religiosos, na utilização da cultura sem o devido apoio e respeito às comunidades e grupos étnicos, que tanto contribuíram com nossos hábitos, costumes, nas artes, da memória e do nosso patrimônio.
O vergonhoso e aviltante processo de humilhação das pessoas mais humildes da sociedade como no caso da desastrosa comercialização de cervejas durante o carnaval, a apropriação cultural de elementos alimentares como o Acarajé e a Capoeira por parte dos pentecostais, o desleixo do poder público por espaços outrora cheios de significados para as comunidades negras baianas.
Sem falar no problema à pouco noticiado pelo Jornal Correio da Bahia, sobre o Azeite de Dendê, que vem causando a intoxicação de inúmeras baianas pela baixa qualidade do Azeite produzido no Pará, e trazido para a Bahia, ou como o caso da obra eternamente inacabada do Mercado de Água de Meninos, demonstram que as propostas de "embranquecimento" da cultura na cidade do Salvador, não parou com o governo Seabra.
A “remodelação urbana” da capital, promovida por Seabra, no final do século 19 destruiu casarões coloniais e igrejas barrocas, para traçar avenidas, como a 7 de Setembro, sob críticas a ação envolve, ainda, tentativa de “desafricanização” de Salvador, estimulada, inclusive, por jornais de oposição ao seabrismo.
Albenísio Fonseca no texto "A resistência das “ganhadeiras” na urbanização de Salvador, faz uma reflexão sobre o trabalho duro das Ganhadeiras na Bahia do final do século passado.
"Se, por um lado, é possível identificar o recurso a conceitos de higienização, modernização e civilidade a incidir contra tabuleiros, gamelas e tudo que remetesse ao passado escravagista; por outro, visava à presença da mulher desvinculada do ideal de família, então em voga, cujo lugar estava restrito ao domínio das prendas do lar. Isto é, contrária à autonomia proporcionada pelo trabalho na rua e em deliberada busca de deter processos de ascensão popular."
Discriminadas e relegadas à face obscura da história, as mulheres negras “ganhadeiras”, como se chamavam, circulavam a oferecer iguarias pelas ruas de vilas brasileiras no período colonial. Atravessaram freguesias durante o Império e mercadejaram variados tipos de comidas, doces, quitutes, carnes, frutas, louças, em tabuleiros, gamelas, cestos e quitandas nos movimentados centros urbanos da nascente República.
Exímias comerciantes, a maioria mercava de forma ambulante ou, ainda minoria, em pontos fixos na cidade. Os alimentos produzidos e comercializados por elas provinham da dieta e hábitos alimentares africanos, além dos temperados na senzala ou na Casa Grande.
Com palavreado e gestos típicos, elas compuseram importante mão de obra explorada por seus senhores, ou libertas, a consolidar o incipiente mercado urbano à época.
As escravas ganhadeiras eram obrigadas a dar a seus senhores uma quantia previamente estabelecida em acordo informal.
O excedente ao combinado era acumulado para gastar no seu dia a dia e, quiçá, comprar a liberdade. A partir da denominada Lei do Ventre Livre, de 1871, contudo, é facultado aos escravos o direito de acumular um pecúlio. Isso favorece aos escravos e escravas de ganho, que conseguem poupar, graças à ocupação e inseridos que estavam na economia do período.
Ainda sobre à gastronomia podemos identificar claramente a descaracterização, a utilização por parte de Delicatessens famosas de alimentos populares, o pouco ou quase nenhum espaço dedicado nas universidades de gastronomia à culinária afro indígena, sem falar claro na falta de apoio e recursos a culturas tradicionais como produção artesanal do Azeite de Dendê, que sobrevive quase que por milagre em regiões como o baixo Sul baiano.
Este episódio não é novo e já chamava a atenção do historiador Thiago Lima Macedo Souza, em seu trabalho
"Inevitável desafricanização? O ocaso das negras quituteiras na Salvador da década de 1930", onde o autor traça um relato mostrando que com o passar dos anos as tradições quando não esquecidas pelas novas gerações, são modificadas de acordo com a necessidade, determinados itens antes utilizados pelas camadas populares, se enobrecem e passam a caras iguarias, ou mesmo denominações de atividades são modificadas por conta de inovações tecnológicas
Tolerar essa barbárie é legitimar a inferiorização, não podemos calar essas vozes, que durante séculos foram silenciadas, está na hora de defender este legado de luta.
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