Os “cidadãos de bem” e a violência: breves considerações sobre o conto “Maldade”, de Nelson Rodrigues

Por Marco Rodrigues, escritor e filósofo


Na coletânea de contos intitulada O Marido Humilhado, publicada pela editora PocketOuro, encontra-se um conto atípico, embora conserve a natureza polêmica da ambivalência moral da maioria das histórias de Nelson Rodrigues. Trata-se do conto “Maldade”, escrito em 1958, o qual apresenta uma narrativa surpreendente em relação à expectativa do desfecho, embora o que aconteça acabe por revelar sutilezas inteiramente críveis.

Contudo, antes, preciso apresentar algumas impressões, acerca do autor. Particularmente, meu primeiro contato com as narrativas do nosso anjo pornográfico foi através da minissérie de TV “A vida como ela é...”, em meados de 1996, exibida pela rede globo, aos domingos, no programa do Fantástico. Lembro, como hoje, com 15 anos de idade na época, de um episódio em que um homem cometera suicídio por não mais suportar ter que jantar duas vezes. Sim, é exatamente o que estais a supor, caro leitor, era a rotina de uma vida dupla, num intermezzo que se pusera em liame entre a amante e a esposa. Por outro lado, não parecia ser ele um canalha, longe disso, estava mais para um coitado entre duas vampiras sedentas por atenção e sexo. Ali, de uma alcova a outra, suas forças desfaleciam numa espécie de bálsamo cujo efeito entorpecente facilmente induzia a uma violenta dependência. Que não se conclua com isso alguma inocência, ou ainda, ausência de responsabilidade em relação aos seus atos e aventuras, mas sim a nítida má-fé, a maneira de Sartre, quiçá, de alguém sem a coragem e a personalidade necessárias para assumir a renúncia que se consagra nas urgentes escolhas. É esse duplo, certamente, o que permite uma análise da estrutura moral daquilo que se convencionou chamar “cidadão de bem”. Há, na maior parte das vezes, um descompasso entre o discurso e o ato, bem como entre intensão e gesto, na constituição das personagens rodriguesianas. Todavia, retornemos ao conto em questão, “Maldade”.


A narrativa tem início com a chegada de um forasteiro numa pequena cidade onde, praticamente, nada acontece para além de sua rotina monótona, pacata, compartilhada entre habitantes cujas relações eram quase familiares, aspecto arquetípico às cidades do interior. “Às 8 horas da noite, estava todo mundo em casa, dormindo (...) Qualquer dia era igual a todos os outros”, expõe o narrador. Porém, a presença de um simples “desconhecido” foi o suficiente para causar imenso alvoroço. Em sua saga, logo foi seguido pela curiosidade de garotos e cães, e de um mendigo desdentado, o qual lhe fizera as honras. Ora, a sutil inserção da figura helenística do cínico, capaz de descortinar a hipocrisia contida nos costumes e que, por isso, não terá como não sucumbir. Três perguntas faz o forasteiro a Ezequiel, o velho mendigo: “Aqui tem pequenas?”; “Não há nenhum cabaré?”; “E onde é que se bebe?”

Em relação a tais perguntas, obteve resposta negativa às duas primeiras, para seu nítido desespero e decepção. Não havia “mulheres levianas”, conta o mendigo, e nem qualquer cabaré. Mas, como não pode existir civilização sem vícios, nem que sejam espirituais ou religiosos, ou ainda, da ordem dos costumes e da potencialidade moral, restava-lhe um alento: ainda se poderia beber cerveja. Entretanto, o único ambiente com essa oferta era, por incrível que pareça, uma leiteria. Nada mais genial que isso, apontar as incitações da condição humana disfarçadas de aparente pureza. Não por acaso, o nome da cidade era Pedra Branca.

A questão é que, em companhia do mendigo, iniciara os trabalhos com a cerveja. O mendigo, relutante, por conta de uma úlcera, pouco a pouco cede aos prazeres do álcool, libertando-se das amarras daquele éthosatravés do entoar de palavrões em falsete, como um tipo de ditirambo de um bacanal. “Vão beber agora a quinta garrafa!”, era o rumor que causara perplexidade às “casas de família”, ecoando assim um frenético disse me disse pela cidade inteira. Tomado pelo frêmito da embriaguez que se desenhava a cada copo, o estranho forasteiro encarnava, gradativamente, uma expressão violenta e agressiva. Cercados pela população completamente indignada e altamente ressentida, dotada de esmagador olhar de censura, a tragédia caminha à sua consumação. Apesar de não ter agredido qualquer pessoa, de não ter chegado às vias de fato, tomou quatro tiros à queima-roupa, disparados por um cabo da polícia local cujo histórico registrava boa índole e personalidade tranquila, mas que, pressionado pela maioria em tal circunstância, precipitou-se numa ação completamente inusitada. Mas o pior ainda estava por vir. Vendo-o caído e morto, as pessoas de bem, de família, num surto incomensurável, arrancaram-lhe braços e pernas, demais membros, esquartejando-o absolutamente feito abutres. Nesse inenarrável ódio absurdo, o que espanta é a violência mais perversa que emerge de onde se esperaria exatamente o oposto – justamente por razão de um discurso que consagra aquilo que se poderia esperar de um tal “cidadão de bem”. Quanto ao forasteiro, quem era ele? Vejamos de quem se tratava:

“Deixava mulher e cinco filhos: morreu ali mesmo, sem compreender nenhum dos quatro tiros. Era gordo e bom: em casa, punha-se de gatinhas, para que o caçula o cavalgasse”.

Dessa maneira, o forasteiro, desconhecido na verdade, assim permaneceria, inaugurando uma lacuna infinita, um tipo de limbo ou vácuo para aqueles que possivelmente o amavam, tendo com isso até mesmo a término de sua história roubado através desse fim malogro. “Mas um cadáver mutilado pode ficar nu sem escândalo”, comenta o narrador, ressaltando assim o que importa de fato e o que constitui a construção do imaginário daqueles que se dizem do bem.

Portanto, é por meio dessas ambivalências, e também por essas contradições, que a literatura produzida por Nelson Rodrigues permanece sendo uma fonte de investigação da condição humana que, diferente do que se possa pensar, é que deve ser a referência de leitura para a compreensão da moral, uma vez que não é a moral, enquanto abstração e diversidade sistemática dos valores, o que permite compreender a alma humana.

Com efeito, uma forma belíssima de fracassar analiticamente é conjecturar que possa ser possível elucidar um ser humano a partir dos seus valores, pois, tomando como referência o que consideram os antigos gregos, ninguém é bom ou justo sem que se aja com bondade ou justiça. É no plano da ação, e não através da retórica ou de hábitos que podem se cristalizar sem reflexão, que se poderia atingir o que há tempos se denomina virtude, sem falar das dificuldades e controversas que tal ideia fatalmente suscita.

Entrementes, eis aí não apenas uma dica de leitura enquanto simples consideração literária. Trata-se de uma proposta de experiência vivencial. Na verdade, ler Nelson Rodrigues significa ser lido por ele, na medida que suas questões nos tocam em nuances cujas implicações raramente temos a coragem de assumir e enfrentar existencialmente. Logo, na representação do bem oculta-se aquilo que o conto traz como título, a Maldade.


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