Camões e o poema dedicado à escrava Bárbara



Por Frederico Lourenço 

Apesar das suas muitas afinidades com os dois maiores poetas da Roma antiga, Camões foi mais longe do que Vergílio e Horácio. Mais longe na poesia e mais longe na vida. Vergílio nunca escreveu poesia lírica; Horácio nunca escreveu poesia épica: mas Camões triunfou nos dois géneros. 

Na vida, Vergílio e Horácio viajaram de Itália para a Grécia e voltaram depois a Itália. Mas Camões foi o primeiro génio da literatura ocidental a passar a linha do Equador: foi o primeiro a conhecer o hemisfério sul. Viu gentes e paisagens novas; sentiu climas diferentes; e experimentou costumes com que nenhum Grego ou Romano alguma vez sonhara. Além disso, Camões foi o primeiro autor europeu a escrever um poema de amor dedicado a uma mulher não-europeia. 

Mas vamos por partes. Ao contrário de «Os Lusíadas» (1572), a poesia lírica de Camões só foi publicada quinze anos depois da morte do poeta (Camões morreu, como sabemos, a 10 de junho de 1580). Quem comprasse a primeira edição das «Rimas» camonianas em 1595 (o livro tem o título helenizante «Rhythmas») teria encontrado, quase no fim do livro, um poema surpreendente.

A explicitação de que o poema se encontra quase no fim do livro (no fólio 159; os poemas acabam no fólio 166) é relevante. Porque todo o livro, nos seus géneros poéticos canónicos (sonetos, canções, etc.), enaltece uma figura feminina de classe aristocrática, elogiada pela sua brancura de neve e pelos seus cabelos louros. No fólio 159, porém, deparamos com uma figura feminina bem diferente. 

«Pretos os cabelos, / onde o povo vão / perde opinião / que os louros são belos».

O poeta que escreve estes versos tem consciência de que está a impugnar o estereótipo dos cabelos louros.

«Pretidão de amor, / tão doce a figura, / que a neve jura / que trocara a cor». 

Com estes versos, contraria-se o lugar-comum da pele branca. A mulher por quem o autor destes versos se declara apaixonado é negra.

O poema que estou a citar tem, na primeira edição de 1595, a epígrafe «Endechas a uma cativa com que andava de amores na Índia, chamada Bárbara». (Por «endechas» entenda-se uma estrofe de quatro versos.) O próprio poema salienta o estatuto de pessoa escravizada logo nos versos iniciais: «Aquela cativa, / que me tem cativo...» Foi o próprio Camões que escreveu «Transforma-se o amador na coisa amada». Neste poema, mercê do seu amor por uma escrava, ele incorpora a identidade da amada como pessoa escravizada e define-se a si mesmo como escravo.

Mas em Camões, nada é tão simples como parece à primeira vista. E quanto mais nos debruçamos sobre a análise da sua poesia, mais nos damos conta de que há camadas quase infinitas de sentido; e que descodificar Camões não é possível se não nos lembrarmos de que Luís era leitor obcecado de Vergílio, Horácio e Petrarca. Quanto aos dois romanos, têm o hábito curioso de serem o gato escondido com o rabo de fora - mesmo em poemas que, à partida, pensaríamos estarem muito longe das poéticas vergiliana e horaciana.

No poema dedicado à escrava Bárbara, o elegante poeta toscano Francesco Petrarca está bem presente: como afirmei, o poema assume-se como refutação do cânone de beleza feminina que Petrarca glorificou na figura de Laura, mulher branca e loura.

Vergílio e Horácio estão presentes de modo mais subtil. Qual é a tipologia de beleza que é superior? A beleza da pessoa branca ou a da pessoa negra? Vergílio colocou essa pergunta em dois passos das suas Bucólicas; e dá, em ambos, a mesma resposta: a beleza da pessoa negra está no mesmo plano de atractividade da beleza da pessoa branca.

Em Vergílio, o pastor apaixonado Córidon recorda os tempos em que teve um namorado negro, chamado Menalcas; e faz questão de explicitar que não vê diferença entre negro («niger») e branco («candidus»: Bucólica 2.16). No último poema da colectânea das Bucólicas, o aristocrata Cornélio Galo exprime o seu interesse amoroso num jovem negro chamado Amintas e comenta que «também negras são as violetas» (Bucólica 10.39).

Quanto a Horácio, escreveu uma ode célebre (2.4) em que diz a um amigo «Que o amor de uma escrava não te envergonhe». Toda a ode procura valorizar a mulher escravizada e apoiar o amor que um tal Xântias sente por ela. (Na minha edição de Horácio, chamei a esta ode «Aquela cativa que te tem cativo».)

Mas esta ode de Horácio apresenta uma diferença fundamental em relação ao poema de Camões. Pois o elogio que Horácio faz da escrava amada por Xântias assenta no facto de ela ser... branca e loura. 

Camões, como sempre, partilha com Vergílio uma sensibilidade especial. E o seu poema dedicado a Bárbara segue a defesa vergiliana da beleza negra.

Ora, esta declaração de amor por uma mulher negra mexeu com as ideias feitas e com os preconceitos dos estudiosos de Camões. O trabalho mais volumoso alguma vez dedicado a este poema é o livro de Xavier da Cunha: um livro com mais de 800 páginas, publicado em Lisboa, em 1893. Embora o título do livro seja «Pretidão de Amor», qual não é o nosso espanto quando nos apercebemos de que a intenção do autor é tentar provar que Bárbara não era negra!

Confundindo a imitação do estereótipo de Petrarca (da mulher branca e loura) nos outros poemas líricos de Camões com o gosto pessoal do homem verídico Luís de Camões, Xavier da Cunha perguntou: «E seria lícito então admitir que um admirador do loiro, como Camões se prezava de confessar-se a cada passo, viesse pôr em relevo o horroroso topete de uma horrorosíssima etíope?» (p. 152).

Na p. 156, Xavier da Cunha escreveu: «aquilo que em linguagem de povos civilizados se entende por amor não creio e não crê ninguém que seja sentimento atribuível a indivíduos que nascem, vivem, e se conservam numa situação de selvagens boçais; e nessas circunstâncias de animalidade está invariavelmente o preto de África.»

Era assim que, para nossa vergonha, se escrevia sobre Camões, em 1893, num livro publicado pela Imprensa Nacional. 

Voltemos às palavras do próprio poeta, para nos desintoxicarmos:

«Pretidão de amor, / tão doce a figura, / que a neve lhe jura / que trocara a cor. / Leda mansidão / que o siso acompanha; / bem parece estranha, / mas bárbara não.»

(na imagem: «Olympia» do genial pintor francês Édouard Manet

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