COMIDA BAIANA por Odorico Tavares

É comum dizer-se que as iguarias baianas muito se parecem umas com as outras.

Que o dendê dá a todas um gosto só.
"Comer uma é comer as demais, todas são comidas de azeite". 













A culpa desse equívoco não é da cozinha baiana; é, sobretudo, da ausência de apuramento de certos paladares acostumados com frios, com filés, com batatas fritas, com comidas de lata. 
Quase exigindo dos poderes públicos padronização das refeições, obrigatoriedade de indústrias de almoços e jantares enlatados. 
Nunca propugnando pela preservação de uma das mais importantes riquezas culturais que possuímos: a cozinha nacional. 
Gilberto Freyre, em seu livro Açúcar, salienta que estrangeiros são incapazes de distinguir na doçaria brasileira outro gosto que não o do açúcar. E cita Boas, que recolheu de populações africanas um volume inteiro de receitas de quitutes de peixe preparados no azeite: ao europeu tal diversidade não existia, tudo se resumia no gosto único de peixe no azeite e mais nada. Entre nós, entre baianos mesmo, há quem, ante uma mesa dos mais variados pratos, somente queira provar um: vatapá, ou caruru, ou moqueca. 
Nada dos três, porque todos eles não passam de "comidas de dendê".


Felizmente que há paladares suficientemente nobres para identificar o fino gosto de cada iguaria baiana. 
Para conhecer a grandeza da cozinha baiana "a mais opulenta das cozinhas brasileiras". 
Nem mesmo a paraense, nem mesmo a pernambucana podem comparar-se com a da Bahia. 
Como que as raízes se aprofundaram mais na terra, as marcas nacionais se acentuaram com mais força e o patrimônio comum se fundiu e nos deu fatores culturais dos mais ricos. Quanto à sua origem, não é segredo nem novidade que foi o negro quem nos trouxe os elementos mais fortemente integrantes da cozinha baiana. Artur Ramos ensina que "foi o negro sudanês, principalmente, quem introduziu no Brasil o azeite de coco de dendê (elais guineensis), o camarão seco, a pimenta malagueta, o inhame, as várias folhas para preparo de molhos, condimentos e pratos. 
E ainda modificou com seus processos a cozinha indígena ou portuguesa". 
E se houve certa resistência do elemento branco para incorporar à sua cultura tais elementos africanos, essas barreiras cederam "até que no século XIX o caruru, o vatapá, o acarajé já se podiam considerar pratos nacionais. 
Já várias comidas portuguesas ou indígenas foram no Brasil modificadas pela condimentação ou pela técnica culinária do negro; alguns dos pratos mais caracteristicamente brasileiros são de origem africana: a farofa, o quibebe, o vatapá", diz mestre Freyre. 
E assim, se muitos pratos vieram integrando práticas religiosas africanas, como ainda hoje constituem nos candomblés, passaram eles para todas as cozinhas; são orgulho de muita dona de casa, de muita mãe-de-santo, de muita senhora rica ciosa de suas tradições culinárias de sua terra.  
Para conhecer a comida baiana, sem contrafações e sem temperos que nada têm a ver com seus verdadeiros pratos, que não se procurem os hotéis, que não se procurem os deficientes restaurantes da terra. 
Nada encontrará nos seus cardápios que seja verdadeiramente baiano, ortodoxamente baiano, o que é uma pena. Aliás há muito que assim acontece: já antes de 1930, Manuel Bandeira passava pela Bahia, para registrar depois, em esplêndida crônica, que não foi nas petisqueiras e nos restaurantes que saboreou a nossa comida. 
Foi com a preta Eva, a quase mágica preta Eva, cuja lembrança ainda é forte nas rodas boêmias da Bahia. 


Uma grã-mestra da culinária, senhora toda poderosa, quase fazendo manjares do céu, embora de um céu negro, um céu quando muito afro-brasileiro. 
O grande poeta provou "as mais estupendas misturas de dendê e de pimentas", ao lado de outro poeta, Godofredo Filho, que a consagrou num dos seus mais belos poemas. 
Pois que alguém chegando à Bahia faça como Bandeira: nada de restaurantes granfinos nem de boites de mau gosto. Se não tem um amigo que o convide para refeição numa residência de cozinha afamada, que procure a modesta casa de pasto de Maria São Pedro, no alto do Mercado Modelo, na cidade baixa. 
Entra-se por uma pequena porta, em frente à Rampa e onde existe uma barbearia. 
Lá em cima está o restaurante de Maria São Pedro, herdeira das tradições da preta Eva. Preta como ela, boa e bonita como devia ter sido Eva. 
Já foi menos freqüentado o restaurante de Maria São Pedro. Antes dela também se saboreavam pratos baianos bem feitos e a casa tinha o poético nome de Estrela do Mar. 
Hoje tem o nome da dona, amiga de todos, quase não aparecendo aos fregueses, lá dentro, ela mesma fazendo os quitutes. A modéstia do ambiente vai bem com a perfeita limpeza, com a higiene da mesa, a simpatia das garçonetes, tudo envolvido por uma atmosfera de cordialidade muito baiana. Então o freguês escolherá sem susto. 
Qualquer prato é saboroso: o vatapá, o caruru, o efó, a frigideira de camarões, o siri mole, a moqueca. Se o cardápio menciona siri mole, que não se hesite: é uma maravilha. 
O siri perde a casca, está criando outra, quando é apanhado: então entra para a panela como moqueca e o azeite lhe aumenta o sabor, como nenhum outro prato. 
Coma-se à vontade o siri mole no restaurante de Maria São Pedro e não se tenha receio. 
Repito: é uma maravilha. 
 Nesta casa de pasto, já se fartou muita gente importante. Muito nome internacional. O romancista John dos Passos participou ali de um almoço em sua honra, espantando a todos. 
Não havia terrina de vatapá, de caruru, de moqueca de peixe, de galinha de xinxim, que parasse. 
O homem dava conta de tudo. 
Tudo regado a bom vinho, mas sobretudo a boa cachaça de Santo Amaro. 
Quando se pensava que o americano fosse torcer o nariz àquelas "viandas tediosas" de que fala Vilhena, a cada prato que surgia, o gringo como que caía em êxtase. 
Aquele semi-gigante, meio fechado, um tanto seco, abriu-se diante das artes e das mágicas da cozinha baiana. 
 Como ele, o poeta Pablo Neruda. Oito dias de Bahia, oito dias de muita comida baiana, muito azeite, muita pimenta malagueta. 
Também o professor Roger Bastide, que escreveu livro de tanta compreensão sobre o nosso povo. 
O escritor Aníbal Machado. O cronista Rubem Braga. O escritor João Condé. Os poetas Vinicius de Morais, Murilo Mendes, Augusto Frederico Schmidt, Maria da Saudade Cortezão. O poeta Vinicius de Morais chegou aqui acompanhado de Waldo Frank. Este não se deu bem com a comida da terra: tinha seus caldos, seus chás, sua dieta. 
O ponto fraco do restaurante é a falta de sobremesa baiana. Quando muito um mamão, uma pinha; bananas. 
De doces: goiabada de lata. A sobremesa deve ser saboreada a cinqüenta metros mais adiante, em frente à Alfândega. Ali fica o tabuleiro de Odília, que vende a melhor cocada preta da Bahia. 
Ninguém servirá cocada mais gostosa do que Odília, modelo de cordialidade e delicadeza. 
Certa feita o pintor Burle Marx foi levado a comer a cocada. Sentindo que o artista era visitante, recusou receber o dinheiro. "O moço é de fora, portanto não paga." Outra vez alguém perguntou quanto custava a terrina de cocada. Ela calculou uns quarenta cruzeiros. "Então levo tudo". 
Odília recusou: "E os outros? E os outros fregueses?" 
Que diriam os outros fregueses se não encontrassem a sua cocada de todos os dias? Mas não são somente Maria de São Pedro e Odília que oferecem deliciosos quitutes. 
Vitorina, na porta do bar Anjo Azul, no Cabeça, vende saborosos acarajés. No azeite fervendo, no líquido dourado, fritando a massa saborosa do feijão fradinho, e dentro em pouco, o acarajé está pronto. 
Por cinqüenta centavos, come-se esta maravilha, com seu molho de pimenta. 
Também em frente ao Elevador Lacerda, nas feiras populares, há quituteiras que fazem ótimos acarajés. 
Mas, o de Vitorina, é o que há de melhor. 
No Terreiro de Jesus, à tarde ou à noite, também se encontram baianas sentadas, às beiras dos passeios, com suas vestimentas próprias, sua higiene impecável, preparando seus quitutes, para transeuntes, para boêmios, altas horas da noite. São remanescentes das mamãe-bote do princípio deste século, de que nos fala o jornalista Antônio Viana, em seu recente livro Casos e coisas da Bahia. 
Da Esmeralda da Rua dos Capitães, da Miquelina do Saldanha. 
E se o viajante não é muito exigente e está entusiasmado pelo pitoresco, em muito pé de escada, nas Laranjeiras, no Pelourinho, encontrará quem faça uma moqueca bem feita. Num desses restaurantes, lembrando o Leão do Bosque dos tempos de mocidade de Antônio Viana, num deles, o cronista já comeu uma moqueca de chicharro que nunca mais esqueceu de tão saborosa. 
Mas não se pense que somente em restaurante pobre, em festas populares, nos candomblés, nas esquinas das ruas, é que se encontra comida baiana. 
Nada disso. Em muito solar nobre, em residência de muita família de quatrocentos anos, o dendê impera e majestosamente. 
É verdade que algumas vezes somente para agradar o visitante ilustre, o amigo que veio à Bahia com suas "extravagâncias" de querer provar "comida de azeite". 
Qual é a família ortodoxamente baiana que no dia de São Cosme e Damião, mesmo sem ter as obrigações não oferece magníficos almoços e jantares? Monteiro Lobato jamais pôde esquecer os almoços que lhe foram oferecidos pelo casal Maneka Pedreira. 
O esmero de dona Angélica Pedreira vai a requintes inusitados: sobre suas magníficas toalhas de linho bordadas, de seus pratos de porcelana, de suas pratarias, a beleza e o sabor de sua cozinha. O casal Clemente Mariani também oferece grandes almoços, somente de comidas rigorosamente baianas. Quando da visita do então presidente Dutra à Bahia e dos festejos do centenário de Rui, o ilustre homem público baiano abriu o seu solar a centenas de convidados. 
A mesa parecia um grande quadro: tanta forma belíssima, tantas cores soberbas. Raramente a Bahia apresentou suas riquezas culinárias com tanta fartura e tanto requinte. 
O seu vatapá, o seu caruru, sua galinha de xinxim, sua moqueca, seu arroz de hauçá, seu acarajé quentinho, feito na hora por majestosas baianas. 
Os seus doces, sua cocada preta, tudo com dignidade de mesa de príncipe. A hospitalidade assumindo aspectos de casa-grande dos velhos tempos. 
A senhora Clara Mariani comandando uma legião de pretas cozinheiras de mãos de fadas brancas. 
Fazendo endoidecer muito gaúcho de churrascos, paulistas de virados, mineiros de tutus, com dezenas de pratos para escolher. Para escolher e saborear. Mestre, supremo mestre, em assuntos da cozinha baiana é o poeta Godofredo Filho; como dissemos acima, foi ele quem iniciou Manuel Bandeira nos mistérios das iguarias baianas. 
É o que se chama um homem difícil para os que não são rigorosamente seus amigos. 
Mas quem priva de sua intimidade, sabe que temperamento fabuloso de artista é ele, o maior poeta baiano contemporâneo. 
Dos maiores conhecedores da nossa história, do Recôncavo, sobretudo de nossa cidade. 
Não há prato baiano que Godofredo Filho não conheça; nem casa de pasto baiana; nem cozinheira baiana, mas que sejam realmente grandes pratos, grandes casas de pasto, grandes cozinheiras. 
Um almoço com Godofredo Filho assume aspectos de solenidades de maçonarias; de iniciação em seitas secretas. Vez por outra, surge para levar um amigo para lugar onde este jamais foi; local jamais suspeitado; e ali se como almoço dos mais irreais. Em sua residência, a sua esposa dona Carmen, apresenta almoço e jantares fabulosos. Já fomos a um almoço de segunda-feira da Ribeira, em sua residência, para ver uma mesa apresentar de uma vez nove pratos ortodoxamente baianos! Gilberto Freyre salienta que o naturalista Hasting Charles Dent aqui "saboreou um lagarto assado e achou carne ótima: alva, tenra, um gostinho bom de carne de porco". 
Pois bem: em companhia do poeta Murilo Mendes, do crítico paulista Luís Martins e do pintor argentino Carybé, degustamos um lagarto, que tem o nome de teiú, e que a senhora Godofredo Filho preparou, depois de um vatapá, de uma fritada de siri e de um grande caruru. 
À chegada do prato, houve um certo mal estar. O poeta Murilo Mendes provou um pedacinho: uma delícia. 
Muito melhor do que aquele "gostinho bom de carne de porco" de que falava Dent. Como se não conhecesse a receita em nenhum livro da cozinha baiana, dona Carmen explicou que se compra o teiú moqueado ou assado, geralmente em Feira de Santana. 
Lava-se bem em água fervente para facilitar tirar a pele fina, cortando-se em pequenos pedaços. 
Quanto ao tempero é o mesmo do da moqueca de peixe: leite de coco, sal, coentro, cebola, alho, pimenta, limão, azeite de oliva e azeite de dendê. Não há repugnância ao lagarto que resista à beleza do prato. À beleza e ao gosto saborosíssimo. Mas não somente do vatapá, do caruru, do acarajé, do efó, da moqueca, vive a cozinha baiana. 
Estes são os pratos conhecidos, mas se pode citar muito mais: xinxim de galinha, siri mole, frigideira de camarão ou de siri, acaçá, abará, aberém, arroz de haussá, feijão de azeite, quibêbe, bobó de inhame, feijão de leite, escaldado de peru, efun-oguedê, sarapatel, mocotó, etc. 
Sem falar nos seus molhos, nos seus doces e bolos, estes, é verdade, mais portugueses do que africanos. Quanto às receitas, seria um nunca acabar em enumerá-las. 
Manuel Querino, em volume de edição esgotada, recolheu muitas delas. Também Sodré Viana, em seu Caderno de Xangô. Recentemente, a Livraria Universitária da Bahia editou um volume de receitas coligidas pelo repórter Darwin Brandão que pode ser encontrado em todas as livrarias locais. É um livro honesto. 
O certo é que sem o dendê, sem o camarão, sem a malagueta, não existiria a cozinha baiana. Sem a pedra de ralar, sem o pilão, a colher de pau, o alguidar, a panela de barro, todos da mais pura e autêntica origem africana. 
(TAVARES, Odorico. Bahia; imagens da terra e do povo. Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1951) Odorico Montenegro Tavares da Silva (Timbaúba, 1912 — Salvador, 1980) foi um jornalista, poeta e colecionado de arte brasileiro. Fixou-se em Salvador em 1942, onde foi diretor do Diário de Notícias e de O Estado da Bahia. Foi eleito para a Academia Baiana de Letras em 1971. Odorico Tavares (1912 - 1980) foi jornalista, escritor, poeta e colecionador de arte. Era pernambucano e em 1942 radicou-se na Bahia, onde a convite de Assis Chateaubriand veio dirigir as empresas do conglomerado Diários e Emissoras Associados que na Bahia possuía os jornais Diário de Notícias, Estado da Bahia e a Rádio Sociedade da Bahia e, mais tarde, a TV Itapoan. 
Em Salvador ele logo se integrou entre os escritores, artistas e intelectuais baianos. 
Em 1944, organiza, com o escritor Jorge Amado (1912 - 2001) e o gravador paulista Manoel Martins (1911 - 1979), a primeira exposição de arte moderna brasileira na Bahia, promovida pela seção da Bahia da Associação Brasileira de Escritores, na Biblioteca Pública de Salvador. Em 1947, faz diversas reportagens para a revista O Cruzeiro, depois reunidas no livro Bahia, Imagens da Terra e do Povo, de 1951. Ilustrado por Carybé (1911 - 1997), o livro é premiado com a medalha de ouro na 1ª Bienal Internacional do Livro e Artes Gráficas de São Paulo, em 1961. Para a reportagem, escrita por ocasião do cinqüentenário da Guerra de Canudos, Tavares viajou pela região percorrida pelo escritor Euclides da Cunha (1866 - 1909) na Bahia, acompanhado pelo fotógrafo francês Pierre Verger (1902 - 1996).

Comentários

  1. Tive a felicidade de conhecer Odorico, quando trabalhei por alguns anos na TV Itapoan. Excelente texto.

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