'O sistema alimentar está falindo', diz chef em livro sobre futuro da comida

Qual o limite do trabalho de um chef? Para Dan Barber, 46, dono dos restaurantes Blue Hill, em Nova York, ele vai (bem) além da cozinha.
Barber se tornou um dos mais importantes nomes da gastronomia americana atual por pensar além das panelas e por ser ativista-chave do movimento "do campo à mesa", que defende o uso de ingredientes sazonais, de forma integral, cultivados próximos ao local de preparo e de consumo.
Chef Dan Barber posa em Toronto, no Canadá
Chef Dan Barber posa em Toronto, no Canadá
O chef-pensador olha o cenário de hoje de modo angustiado. "O atual sistema alimentar está indo à falência", diz. E até a alternativa que ele defende tem seus limites.
Essa foi uma das conclusões de sua pesquisa para o livro "O Terceiro Prato" –publicado em 2014 nos EUA e lançado no final do mês passado no Brasil–, que envolveu visitas a diversos produtores ao redor do mundo.
A outra: há que se mudar a forma como comemos para manter o planeta sustentável, com "uma dieta mais conectada ao que a localidade pode prover". Em outras palavras, encontrar o "terceiro prato" (leia mais sobre o conceito abaixo), um novo paradigma de preparar alimentos.
Por ele, a cozinha no futuro terá que aumentar a conscientização sobre a procedência dos ingredientes, mas também ser um reflexo do que a paisagem fornece.
Uma criação integrada, que leve a sério o manejo do solo e que respeite o tempo e a sazonalidade dos produtos –de forma que restaurantes (e consumidores, donas de casa) sirvam ao agricultor, e não o contrário.
Leia abaixo a entrevista que ele concedeu à Folha, de Nova York.
*
Folha - Seu livro é dedicado aos rumos que o movimento "do campo à mesa" tomou. O que, afinal, deu errado?
Dan Barber - Eu falo muito do que deu errado, mas gosto de enfatizar o que deu certo também: é um movimento tocado por pessoas que querem estar mais bem informadas sobre o que comem, querem estar mais conectadas à natureza e às pessoas que cultivam sua comida. É claro que eu ainda me identifico com tudo isso.
Mas ao escrever o livro me convenci que esse pensamento não vai longe o suficiente. Isso porque ainda mantém a lógica da prateleira do supermercado, com chefs e consumidores selecionando criteriosamente ingredientes que cobiçam –por vezes difíceis e ecologicamente exigentes. O que precisamos é de uma relação muito mais participativa entre chefs, agricultores e comensais, na qual não haja privilégios a alguns ingredientes e descarte de outros, mas que crie um modelo de comer que reaja à saúde de todo o ambiente.
Essa ideia não é nova: as maiores cozinhas no mundo evoluíram em conjunto com seu ambiente.
O Slow Food fez, recentemente, um festival com ingredientes da Arca do Gosto em restaurantes caros de São Paulo. Um leitor do jornal comentou do risco de tornar esses produtos exóticos, como trufas, em vez de popularizá-los. Você vê esse risco?
É uma crítica que ouço com frequência, e acho que temos que ser sensíveis a ela. Mas há um argumento a ser feito –por mais elitista que ele soe–, de que chefs são como curadores. Todos já vimos o poder que chefs como Alex Atala têm de catalisar tendências de comida que vão reverberando em cada nível da cadeia. Elevar esses ingredientes é muitas vezes o primeiro passo para popularizá-los –o que, por sua vez, cria mais demanda.
Com qual ingrediente já ocorreu isso?
Se você olhar para a recente mania da couve-galega ("kale") nos Estados Unidos –que começou em restaurantes de Nova York e hoje tem até um feriado–, verá evidências da influência dos chefs.
E há exemplos que servem de aviso: eu comecei a cozinhar na era de Paul Prudhomme, cuja receita de vermelho se tornou tão onipresente no país que quase exauriu uma espécie de peixe.
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Prato do chef Dan Barber, com ovo de galinha alimentada com pimenta
Prato do chef Dan Barber, com ovo de galinha alimentada com pimenta
Tendências como o "do campo à mesa" ainda estão restritas à alta gastronomia. Como torná-las mais populares?
Há uma boa notícia, de que mais pessoas têm demandado mudanças. Na última década, vimos os enormes custos do sistema de comida industrializada –para o meio ambiente e nossa saúde, e que pesam mais em comunidades menos privilegiadas. Dito de maneira simples, nosso sistema alimentar está falindo. Para tornar a boa comida uma realidade para todos, precisamos repensar todo o sistema, do campo ao distribuidor, ao mercado e ao prato.
O que isso significa, na prática? É possível repensar um sistema do zero e alimentar 7 bilhões de pessoas?
Mais e mais estudos têm mostrado que a agricultura diversa e holística –com a integração da produção agrícola e de animais e o manejo correto do solo– é a única maneira possível de alimentar o planeta. Essa agricultura é essencial não só de um ponto de vista ecológico, como também supera, muitas vezes, a produtividade de monoculturas que usam químicos.
Mas não podemos ter um debate sobre o futuro da comida sem falar sobre como comemos. Esse tipo de agricultura não pode ser sustentada se nossas dietas não apoiarem toda a sua diversidade. Ou se mantivermos tendências atuais, de comer mais carne (e só os cortes centrais), usar grãos para produzir ração... Precisamos encorajar as dietas que sejam um reflexo do que nosso ambiente pode prover prontamente. É isso que quero dizer quando descrevo o "terceiro prato".
Orgânicos são caros e difíceis de encontrar; os produtos da agricultura extensiva, cada vez mais baratos e acessíveis. Esses mundos não poderiam unir forças?
Certamente sou a favor de adotar as tecnologias mais inovadoras e modernas. No livro falo de um fazendeiro que, sem itens geneticamente modificados, cria variedades de trigo com mais sabor e funcionalidade –e mais produtividade, também. Esse é um ponto importante, porque comumente nossos ingredientes-fetiche trazem consigo grandes riscos agronômicos, pelos quais acabamos pagando no mercado.
Se quisermos melhorar o custo e a disponibilidade da comida orgânica, precisamos focar variedades que se dão bem no campo. Mas, em certo ponto, quando você começa a falar da economia de escala que faz da agricultura de massa um sucesso, acaba minando os princípios básicos da boa produção e cozinha.
Não levaria muito tempo para recriar todo o sistema? Temos esse tempo hábil?
Na maioria das vezes, isso não vai requerer reinventar a roda. No lugar disso, podemos olhar para as culturas agrícolas tradicionais: todas foram concebidas com um conceito de boa produção. Elas celebravam a diversidade, com grãos, legumes, vegetais, especiarias e pequenas criações de vários animais –uma espécie de abundância com raízes na resiliência ecológica.
*A série "Chef's Table" mostra uma história em que você pede ao produtor uma abóbora menor, para que ela tivesse mais sabor. Você também cita com frequência uma refeição memorável em uma fazenda sustentável de peixes na Espanha. Esses casos têm o sabor como protagonista. No fim das contas, esse é o cerne do trabalho de um chef?*
O papel de um chef deve ser sempre o de perseguir os ingredientes de melhor sabor para seu cardápio. Mas o que eu aprendi é que, se você está perseguindo o melhor sabor possível, está, por definição, procurando a produção manejada da forma correta, na comunidade correta, com a nutrição correta. O trabalho de um chef é mais interdisciplinar do que pensamos.
A relação entre produção sustentável e sabor é um pouco como a do ovo e da galinha, então?
Você não pode olhar para um ótimo ingrediente sem entender a ecologia por trás dele, de onde ele veio. Uma cenoura deliciosa e nutritiva não pode ter vindo de um solo degradado. Como poderia?
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O chef Dan Barber trabalhando na cozinha do Blue Hill, em cena de 'Chef's Table'
O chef Dan Barber trabalhando na cozinha do Blue Hill, em cena de 'Chef's Table'
Chefs sempre dizem que precisam ensinar e impactar os consumidores. No Blue Hill vocês mostram vídeos, trazem o cozinheiro à mesa para falar com os comensais. Um prato tem sempre que contar uma história? Isso não aumenta o risco de tornar esses movimentos chatos, distantes da realidade cotidiana?
É um equilíbrio complicado, e com o qual tomamos muito cuidado. Não queremos que a comida seja didática, mas acho que as pessoas vêm ao meu restaurante com fome não apenas de comida, mas também da história por trás dela.
Minha esperança é que, pela refeição, os comensais sejam capazes de explorar essas conexões –a relação entre um prato de comida e a terra que o produziu.
O que é e como será a nova gastronomia para você?
Nos últimos anos, a ideia de uma refeição gourmet virou de ponta-cabeça. Muitos dos melhores chefs do mundo não estão mais glorificando ingredientes como caviar e foie gras em seus cardápios –em parte porque essas coisas não são tão interessantes de cozinhar.
Em vez disso, os vemos celebrando vegetais e grãos, criando menus muito específicos da região em que estão. É um jeito mais excitante, mais gostoso, de cozinhar.
E para onde estamos (cozinheiros, a indústria, agricultores e consumidores) indo, em termos de comida?
Acho que os caminhos estão convergindo. Os limites entre chef, agricultor e comensal vão continuar a se confundir conforme nos tornarmos mais envolvidos com a ideia de que a receita da nossa comida começa longe da cozinha. Todos teremos que cooperar para maximizar o sabor, a ecologia e a economia.
Qual o papel de um chef hoje? Seu trabalho é mesmo um pouco quixotesco, como já foi definido?
Eu falo muito sobre o papel do chef hoje –não só porque uso um dólmã, mas porque acho que podemos usar nossa plataforma de influência para agitar a mudança, ajudar a inspirar um novo paradigma na comida.
Mas, é claro, esse movimento tem que ser mais amplo. Vai requerer o envolvimento de fazendeiros, agricultores, cozinheiros, consumidores e formadores de opinião.
Michael Pollan fala da importância de cozinhar e ter refeições em família. Isso pode ajudar nessa transformação?
Cozinhar com frequência e celebrar os prazeres de cozinhar e comer com sua família são, provavelmente, as maneiras mais simples que você tem para ajudar a construir um sistema alimentar melhor.
Há, no mundo, dezenas de programas e reality shows gastronômicos. Eles podem ajudar de alguma maneira?
Qualquer coisa que encoraje as pessoas a cozinhar é um passo adiante. Mas não acho que seja possível ensinar uma pessoa a verdadeiramente cozinhar sem ensiná-la sobre a proveniência dos ingredientes, a história do que está no prato. Precisamos de mais gente (chefs, escritores, pensadores) para dizer esse tipo de história sobre nossa comida.
Você acredita que as donas de casa pelo mundo poderão, um dia, preparar esse "terceiro prato" que você imagina?
Pelo rumo da agricultura, isso vai ter que acontecer nos próximos 50 anos. Conforme recursos naturais como água fresca e combustíveis baratos desaparecerem, vamos ter que mudar a estrutura de como cultivamos e consumimos comida.
Isso significa mais diversidade e menos adição de químicos às nossas fazendas. Significa dietas mais conectadas ao que a localidade pode prover. Chefs podem ter o papel de fazer essa transição mais gostosa.
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O TERCEIRO PRATO
AUTOR Dan Barber (tradução de Ana Deiró)
EDITORA Bicicleta Amarela
QUANTO R$ 59,50 (480 págs.)
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SOBRE O TERCEIRO PRATO
O título do livro tem origem em um desafio que o chef recebeu, de uma revista especializada: imaginar qual seria o prato do americano médio daqui a 35 anos.
Ele respondeu à pergunta com uma linha do tempo da história alimentar dos Estados Unidos: no passado, o "primeiro prato" tinha um bife de um boi criado confinado e alimentado com ração, acompanhado de cenouras no vapor.
Hoje, com a influência de movimentos como o "do campo à mesa", poderíamos esperar algo mais consciente: que nos servissem um bife de boi criado solto no pasto com minicenouras cultivadas em solo orgânico por um produtor de uma região próxima.
O "terceiro prato" seria constituído de um "bife" de cenoura com um molho de lascas de carne. Não porque estivéssemos condenados a um futuro de carne em extinção ou a uma ditadura dos vegetais, mas por uma inversão de paradigmas.

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