Solidariedade e negociação são recursos de mulheres da periferia no combate à fome

Experiências de integrantes de projeto social em Paraisópolis, em São Paulo, são descritas em estudo desenvolvido na USP; pesquisa identificou as contradições entre a cozinha comunitária do bairro e as cozinhas “das patroas” durante a pandemia.

Por Tabita Said

Pense nas celebrações de fim de ano. O Natal, por exemplo. Com quantas receitas você se deparou detalhando o preparo de um pernil, um peru ou de uma boa bacalhoada? Certamente, antes de colocar a mão na massa, é preciso pensar nos ingredientes necessários. Para algumas mulheres, porém, a falta de recursos para alimentação e gás, e a falta de acesso a eletrodomésticos essenciais, como fogão e panelas, são determinantes em sua nutrição. Mesmo as formas de preparo são influenciadas por sua história, renda, moradia e condições de trabalho.

É o que discute a tese Entre becos e vielas: práticas culinárias de mulheres participantes de um projeto social e moradoras no Complexo Paraisópolis. Em seu doutorado pela Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP, Nathália César Nunes observou as estratégias utilizadas por mulheres em uma cozinha comunitária no Complexo Paraisópolis, considerada a segunda maior comunidade de São Paulo. Paraisópolis é um bairro favelizado na região da Vila Andrade, zona oeste da capital paulista. Composto pela comunidade Paraisópolis, a maior delas, o complexo engloba ainda os bairros do Jardim Colombo e Porto Seguro.

As dez mulheres acompanhadas pelo estudo participavam do projeto Fazendeiras, durante a pandemia de covid-19, enquanto enfrentavam a insegurança alimentar. Organizado pelo Instituto Fazendinhando, na favela do Jardim Colombo, o projeto oferece cursos de culinária e promove ações sociais no local.

“A maioria das mulheres de dentro do Jardim Colombo trabalhava como empregadas domésticas no bairro do Morumbi, ao lado, e os homens, em sua maioria, na construção civil ou como porteiros, no mesmo bairro. Tanto homens quanto mulheres trabalhavam informalmente e ficaram sem emprego na pandemia”, conta a pesquisadora, que se integrou à comunidade entre janeiro de 2021 e julho de 2022.

No estudo, a pesquisadora realizou a coleta de dados baseada em uma relação com essas mulheres – uma autodeclarada branca e as outras nove, negras. Nutricionista de formação, Nathália se preocupou em apresentar autores e acadêmicos negros, além de questões históricas envolvendo interseccionalidades como raça, classe e gênero. Para a pesquisadora, só será possível criar políticas públicas condizentes com a realidade social de determinados territórios quando a produção de conhecimento sobre alimentação e nutrição levar em conta condições estruturais.

“Entendo que as políticas públicas precisam ser voltadas de forma diferente para a população branca e para a população negra e periférica, porque as práticas culinárias têm significados diferentes para elas”, afirma a pesquisadora, e destaca que a maioria das mulheres negras do Jardim Colombo era doméstica e/ou cozinheira em casas de família do bairro vizinho, o Morumbi. A nutricionista aponta que as práticas culinárias podem significar carinho, sobrevivência, obrigação, oportunidade e opressão ao mesmo tempo. “Todos esses significados se relacionaram com as trajetórias de vida dessas mulheres”, diz.  

Diante da condição de insegurança alimentar dos moradores, o Instituto Fazendinhando passou a oferecer cursos de capacitação profissional à comunidade. O instituto fazia parte da União Educacional e Esportiva do Jardim Colombo, movimento que ganhou força em 2017 com um projeto de revitalização de uma grande área utilizada para descarte de lixo. “Mas começaram a surgir questões mais urgentes. Você não pode se dedicar a isso quando a comunidade, que inclusive ajudava nos mutirões, estava passando fome”, afirma Nathália. De acordo com a pesquisadora, a questão principal se tornou a falta de comida dentro da favela e a crítica situação de insegurança alimentar e nutricional, acentuada pela pandemia.

Arrecadando alimentos e realizando a distribuição de cestas básicas e itens de higiene, de porta em porta, o grupo iniciou um cadastramento de 28 famílias, com números que só aumentavam à medida que a pandemia se agravava. “Nesse cadastramento, eles perceberam que a maioria dos voluntários era mulher; e a maior parte da população do Jardim Colombo era composta por mães solo, que ficaram desempregadas”, afirma. De acordo com publicação no blog do projeto, o bairro não teve nenhuma morte por covid-19.

Junto das ações emergenciais, o instituto criou o projeto Fazendeiras, ofertando um curso profissionalizante de culinária. As mulheres que não queriam cozinhar podiam optar por outros cursos, como construção civil. Posteriormente também ofereceram o curso de artesanato e por último o de tranças.

Invertendo a ordem

A presença de uma nutricionista durante as aulas inevitavelmente transformava o momento em um diário alimentar e atrapalhava iniciativas espontâneas das mulheres em suas práticas culinárias. “Você é alemoa?”, perguntou uma das mulheres à nutricionista, curiosa para saber se a visitante era de origem alemã. A incômoda pergunta revelava o distanciamento entre ela e suas interlocutoras. “Uma mulher branca, doutoranda pela USP… quando eu chegava, elas queriam conversar sobre a salada que elas comeram ontem, sobre a gordura que elas podiam usar para fazer um bife ou um legume”, conta a pesquisadora, que buscava inverter a ordem estabelecida: ela estava ali para receber ensinamentos daquelas mulheres, e não para orientá-las.

“Parei as entrevistas e comecei a participar das aulas de culinária com elas. Enquanto a gente cozinhava ali, pegava um ingrediente aqui, elas iam falando alguma coisa sobre o preparo, os utensílios”, diz a pesquisadora, que confessa, logo nas primeiras páginas de sua tese, ter demorado para reconhecer-se como branca e os privilégios que advêm dessa condição. “Para falar a verdade, eu só comecei a refletir de forma crítica sobre o racismo em especial, suas raízes estruturais e questões sociais, depois que conheci as interlocutoras deste estudo, suas trajetórias, suas lutas diárias e o trabalho que fazem como voluntárias no Instituto Fazendinhando. Elas têm a necessidade de ser guerreiras para (sobre)viver.”

Ao participar das aulas de culinária em condição de igualdade com aquelas mulheres, Nathália conseguiu conversar com elas sobre quais estratégias usavam para contornar a escassez de alimentos e a falta de recursos. Também foi possível traçar um perfil socioeconômico delas: baixa escolaridade, responsáveis por suas famílias ou pela alimentação delas, a maioria negra e nordestina.

A pesquisadora concluiu que a falta de comida fortaleceu a rede de apoio e de solidariedade, fazendo com que muitas delas cuidassem dos filhos daquelas que continuavam trabalhando, dividissem a compra em atacadistas, negociassem o pagamento de compras feitas em supermercados localizados dentro da comunidade e compartilhassem o gás e a panela de pressão.

Ao participar das aulas de culinária em condição de igualdade com aquelas mulheres, Nathália conseguiu conversar com elas sobre quais estratégias usavam para contornar a escassez de alimentos e a falta de recursos. Também foi possível traçar um perfil socioeconômico delas: baixa escolaridade, responsáveis por suas famílias ou pela alimentação delas, a maioria negra e nordestina.

A pesquisadora concluiu que a falta de comida fortaleceu a rede de apoio e de solidariedade, fazendo com que muitas delas cuidassem dos filhos daquelas que continuavam trabalhando, dividissem a compra em atacadistas, negociassem o pagamento de compras feitas em supermercados localizados dentro da comunidade e compartilhassem o gás e a panela de pressão.

A gente não quer só comida

O curso agregava ainda um valor emocional, já que a cozinha comunitária também servia como espaço de diálogo, troca de experiências e desabafo. “Algumas relataram estar felizes em acordar e saber que tinham o curso, que tinham alguém para contar. Relataram que a comadre, a vizinha, passaram a ser a pessoa mais próxima”, explica Nathália ao Jornal da USP.

A cozinha comunitária foi construída pelos próprios moradores e pela Igreja Adventista localizada no Jardim Colombo, que cedeu uma parte de seu terreno para a construção. “Essa cozinha era muito importante. Ali, eles faziam lanches, eventos da própria igreja, além das marmitas que eram doadas aos moradores”, diz.

No local, os moradores passaram a produzir pães franceses e os organizadores do projeto conseguiram, ainda, articular doações de alimentos frescos, como legumes, verduras e frutas. Também na cozinha, o coração do projeto, eram organizados mutirões de limpeza, pintura e até um festival de artes e comida. Em sua terceira edição, o Festival do Jardim Colombo recebeu apoio financeiro da Universidade de York, na Inglaterra, com trabalhos de pintura, música e fotografia dos moradores.

De acordo com a pesquisa, limitadas estratégias alimentares e culinárias precisaram ser colocadas em prática pelas mulheres, em que o ato de cozinhar estava relacionado a: carinho e cuidado com a família; obrigação e responsabilidade – já que, além de terem que cozinhar desde muito novas, durante a pandemia eram as principais responsáveis por “correr atrás de cesta básica”; e sobrevivência, vista a possibilidade de fazerem comida para vender, mesmo antes da pandemia.

“Muitas já cozinhavam obrigatoriamente desde pequenas, porque a mãe precisava sair para trabalhar. Então, elas tinham a responsabilidade, desde crianças, de produzirem a comida das suas famílias e também limpar a casa”, afirma Nathália. Durante a pandemia e em meio ao contexto do curso, Flor de Maio* contou como era sua estratégia: “Faço assim, na hora que tô voltando do trabalho, penso no que vou fazer para o almoço ou janta e já compro um pouco de carne moída ou filé de frango ou linguiça. Porque a gente não sabe do dia de amanhã, se vai tá empregada ou não”. Margarida* relatou que o certo mesmo era o arroz com feijão, e a mistura muitas vezes acabava sendo ovo, pois é o que dá para comprar. Hortênsia* ainda complementou dizendo que, para ela, até o ovo está sendo difícil de entrar na lista de compras do mês.

Nem um cafezinho

Fazendo uma retrospectiva histórica e mencionando a escravidão, a pesquisa afirma que as mulheres negras trazem consigo saberes culinários muito antigos mas que são executados mais para fora de suas comunidades do que para dentro. “Hoje em dia, muito se fala que as pessoas precisam aumentar as suas habilidades culinárias, mas quando a gente pensa em aprimorar nossas práticas, muitas mulheres, e principalmente mulheres brancas, terceirizam essa ação”, acredita a pesquisadora. 

Privilegiando os relatos das mulheres, Nathália também pôde notar as contradições que elas viviam no ato de cozinhar. Durante suas jornadas de trabalho, muitas cozinhavam para outras famílias, com todo o aparato necessário como energia elétrica, gás e dispondo de uma série de aparelhos eletrodomésticos. E mesmo assim, eram obrigadas a levar marmita ao serviço, pois não podiam se servir do prato que preparavam. Mesmo a cozinha sendo o ambiente limitado a sua circulação, muitas mulheres relataram sequer poder fazer um simples “cafezinho”, pois eram impedidas de utilizar a cafeteira para si mesmas. Além de ficarem restritas à cozinha sob o pretexto de não infectar a família para a qual trabalhavam, muitas relataram a necessidade de mentirem sobre seu local de moradia por preconceito. “Sou mulher e nordestina. Sofri muito quando vim pra São Paulo atrás de trabalho. Nosso sotaque de nordestino, não tenho estudo…então falo errado e ainda com esse sotaque e morando na favela. No início eu tinha vergonha, me escondia das pessoas”, relatou Violeta*.

Em meio à situação de vulnerabilidade social, a pesquisadora buscou pelo simbolismo das práticas culinárias das mulheres de Paraisópolis. E encontrou a força de vontade para seguir e ajudar, mesmo sem ter nada em suas próprias casas. “E a comida permeava tudo isso. Porque havia a necessidade de sobrevivência e, ao mesmo tempo, obrigação, amor e carinho”, conta Nathália.

A pesquisadora justifica a falta de disposição para cozinhar de algumas das mulheres. “Elas trabalham o dia inteiro limpando a casa de outras pessoas, cuidando da família de outras pessoas, cozinhando para outras pessoas, e ainda têm que chegar em casa sem luz, água, equipamentos ou o gás, tarde da noite”. Ela aponta as incongruências até mesmo nas doações que viu durante o fim do ano. “Essa é a realidade: elas cozinhavam a ceia de Natal da família do bairro nobre e depois corriam para suas casas, se é que conseguiam um Chester doado ou um peru”, acrescenta. De acordo com Nathália, da Prefeitura de São Paulo, os moradores receberam doações de 2 mil cestas básicas em 2020 e outras 2 mil em 2021, apenas. A população do Jardim Colombo abriga mais de 5.200 famílias, com aproximadamente 15 mil moradores. A doação representou cerca de 14% da população total. “Então, como a gente vai incentivar as práticas culinárias se não damos o mínimo subsídio?”, analisa a pesquisadora.

Em parceria com Nilton Stanguini, mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Ambiente, Saúde e Sustentabilidade da FSP, e Kamilla Baes, fotógrafa, integrante do Fazendinhando e moradora do Jardim Colombo, Nathália participou da criação de um documentário, com depoimentos de mulheres participantes do projeto Fazendeiras. Assista no player 


Nathália César Nunes é nutricionista e colaboradora do Grupo de Pesquisa em Alimentação e Cultura da USP - Foto: arquivo pessoal

Entre becos e vielas: práticas culinárias de mulheres participantes de um projeto social e moradoras no Complexo Paraisópolis foi orientada por Fernanda Baeza Scagliusi e teve financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). 


* Os nomes apresentados na pesquisa foram trocados para preservar a identidade das entrevistadas.

Fonte Jornal da USP 

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