SEGREDOS DA AMAZÔNIA: AGROFLORESTA ABRE CAMINHO PARA SEGURANÇA ALIMENTAR


No norte do Brasil, o povo Apurinã retomou uma antiga tradição de cultivo de alimentos no Sistema Agroflorestal, técnica aprimorada pela ciência moderna para proporcionar diversos cultivos entre as florestas. 
Dez anos depois, ostentam uma alimentação saudável e espalham a palavra entre outras comunidades.

Maria dos Anjos, ou simplesmente Dona Maria, é uma indígena de 66 anos que vive na Amazônia brasileira, próximo ao município de Lábrea.

Apesar de ter nascido em outro lugar, ela vive atualmente com o povo Apurinã na terra Caititu onde participa de um bem sucedido Sistema Agroflorestal (SAF) cultivando diferentes tipos de alimentos e reflorestando degradados por atividades econômicas de grande porte.

Segundo os pesquisadores , as técnicas de agricultura familiar da região foram ofuscadas ao longo dos anos pelo agronegócio, que muitas vezes se baseia na monocultura: a prática de plantar ou criar repetidamente apenas uma espécie vegetal ou pecuária. Isso, afirma a ciência moderna , normalmente leva à degradação ambiental na forma de poluição do solo, perda de biodiversidade e erosão da terra.

Em entrevista à FairPlanet, Dona Maria disse que sempre procurou cultivar o maior número possível de frutas e legumes, onde quer que viva. No entanto, o  projeto Raízes do Purus  (em alusão ao nome de um rio) – uma iniciativa da Operação Amazônia Nativa (OPAN) lançada em 2013 – já oferece um sistema padronizado de plantio.

Seu Marcelino dos Anjos, marido de Dona Maria, que se juntou a nós na conversa, explicou que, embora o projeto não tenha adicionado muitos novos tipos de alimentos, introduziu uma maneira adequada de planejar seu trabalho.

"Sempre sonhamos em reflorestar, mas com a chegada da OPAN, dentro desse projeto, passamos a ter controle [sobre os resultados]."

Hoje em dia, em suas terras crescem todos os tipos de produtos, desde manga, melancia, abacaxi, laranja, milho, mandioca e batata até nozes e palmeiras. A comunidade cultiva seus produtos agrícolas juntos, no tempo certo, respeitando a natureza e evitando os agrotóxicos.

O resultado, disse Dona Maria, é uma alimentação rica, nutritiva e diversificada para suas famílias. “Nossa mesa é farta, natural, tem comida natural, sem impureza, sem química para condenar esse alimento. O SAF é como uma renda para nós, uma fonte de alimento”.

O que a aldeia não consome, ela vende. No entanto, apenas recentemente eles experimentaram excesso de produção, razão pela qual não há uma prestação de contas adequada das receitas até agora.

O indigenista da OPAN, Magno Silva, afirmou que a escrituração organizada do lucro seria o próximo passo do projeto. Ele destacou, porém, que aquilo em que se pode deixar de gastar recursos é tão significativo quanto o que se vende. "Se você tem melancia, banana, abacaxi, chiclete, por exemplo, você não está comprando pão, sabe?"

UM REGRESSO ÀS ORIGENS

Magno dos Santos relata que a ideia inicial do projeto era reaproximar pessoas feridas pela exploração perversa de suas terras e trabalhar até as raízes de sua cultura.

“Dissemos a eles: se vocês quiserem, podemos tentar fazer uma experiência focada em sistemas agroecológicos, em sintropia, em produtos orgânicos, mas muito focada no que, de fato, é a sua própria cultura de produção, o resgate do seu próprio modelo antigo das plantações", lembrou.

Começando com quatro aldeias, o projeto agora abrange 21 comunidades dentro do território Caititu - cerca de 23 hectares de terra - que estão em algum estágio de desenvolvimento do SAF. “Usamos essa ferramenta para poder contribuir com eles nesse processo de ver o território como um só”, explicou dos Santos.

Atualmente, é amplamente aceito que o conhecimento indígena pode servir de base para um sistema alimentar mais sustentável globalmente. No entanto, durante anos esse conhecimento foi roubado e privado das comunidades indígenas.

Seu Marcelino lembra de uma época em que os indígenas eram convocados para trabalhar na produção de borracha, indústria em que muitos eram mortos ou trabalhavam até a morte.

"Apenas [...] cerca de 20 anos atrás nós acordamos, queríamos voltar ao conhecimento que era nosso direito", disse ele ao FairPlanet. "E hoje estamos aí. Sou o primeiro articulador aqui no Rio Purus a buscar saúde, educação e sustentabilidade."

CONHECIMENTO PARA AS GERAÇÕES PRESENTES E FUTURAS

Além de cuidar de sua comunidade, Dona Maria também está levando seu conhecimento para outras comunidades e para as futuras gerações. Os indígenas, ela fez questão de entender, são os guardiões da natureza: se for preciso derrubar uma árvore para construir uma casa, disse ela, outras dez a substituirão. "Nosso conhecimento é para enriquecer a natureza, não para destruí-la."

A missão de sua vida, disse ela, é cuidar da natureza para que ela nunca acabe.

"A família aumenta, e aumenta também nosso conhecimento, nossa floresta, nosso SAF, nossa riqueza. Porque trabalhar no SAF é uma renda, é uma fonte de riqueza para nós."

Dona Maria e Seu Marcelino viajaram e conheceram culturas diferentes. Cada grupo indígena é diferente, destacou ela, e o Brasil tem quase 300 etnias diferentes vivendo em uma ampla gama de culturas.

Visitando comunidades das aldeias Guarani-Kaiowa no Mato Grosso do Sul - um estado devastado pela monocultura de soja em grande escala , Dona Maria ficou impressionada com a beleza de seus costumes em relação ao plantio e consumo de alimentos. “Achei muito bonito que na hora da refeição eles se reúnem e fazem suas orações antes de comer”, disse ela. “Se é uma semente para eles plantarem, eles também se reúnem da mesma forma e abençoam essa semente”.

Ela acrescentou, porém, que há uma evidente falta de apoio e mobilização para a implantação de técnicas agroflorestais em suas comunidades.

“A terra deles lá é boa, mas acho que eles não têm o conhecimento que nós temos aqui [devido ao projeto SAF]”, disse ela. "Eles quase não têm plantas, quase não têm coisas plantadas. Eles poderiam, com a riqueza [natural] que têm, viver muito melhor."

"[Há] muita riqueza", continuou ela, "muitos vegetais. Só desses vegetais, só de lá eles conseguiriam algo para sobreviver, para ter uma mesa cheia, sem ter que gastar dinheiro."

Dona Maria e Seu Marcelino carregam boas lembranças dessas experiências transfronteiriças, e agora veem crescer abundantemente as sementes trazidas para seus territórios - uma troca mútua de milho, feijão, amendoim, frutas e verduras, entre outras. E embora infelizmente seja comum a pressão de fazendeiros que querem invadir seus territórios, eles não desistem do sonho de reflorestar toda a área e proporcionar educação, saúde e uma vida digna ao seu povo.

"Essas três coisas [sustentabilidade, educação e saúde] têm que ser [consideradas] juntas", disse Seu Marcelino. "Porque se você não se alimentar bem, não vai ter saúde. Se não tiver educação, também não vai ter saúde perfeita."

Fonte: FairPlanet

Imagem de Adriano Gambarini.

ARTIGO ESCRITO POR:

Ellen Nemitz-Autora

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