A humanidade começa na cozinha
Por Suzana herculano-houzel
Viver em um mundo civilizado tem algumas vantagens tão básicas que nem nos damos conta.
Uma delas é não ter que passar nove horas por dia ou mais procurando o que comer: graças à cozinha, talvez a mais básica das tecnologias, temos até mais calorias do que precisamos ao alcance das mãos. Foi o primatólogo Richard Wrangham, trabalhando em Harvard, quem propôs que a "invenção" do uso do fogo para cozinhar alimentos, muito mais do que o consumo de carne, teria sido o grande fator transformador da nossa história evolutiva.
Cozidos, raízes e carne se tornam mais fácil e rapidamente mastigáveis, permitindo a absorção de mais calorias em menos tempo.
Anos depois, nosso trabalho na UFRJ mostrou que sem uma tal transformação na velocidade com que se ingerem calorias, nossos antepassados teriam tido que passar improváveis nove horas e meia procurando o que comer todos os dias para sustentar corpo e cérebro. Nem gorilas, que não frequentam escolas ou trabalho, conseguem tal feito.
Se comêssemos como outros primatas, não estaríamos aqui com nossos 86 bilhões de neurônios.
Curiosamente, um dos principais críticos da proposta de Wrangham é seu amigo pessoal Daniel Lieberman, antropólogo no mesmo corredor em Harvard. Wrangham argumenta que há evidência fóssil de uso de fogo para cozinhar já 1.5 milhões de anos atrás, bem quando o cérebro humano começa a aumentar de tamanho ao longo dos milênios; Lieberman, ao contrário, diz que essa evidência só é concreta de 400 mil anos para cá – quando o cérebro humano já tinha o tamanho moderno.
Lieberman e sua colaboradora Katherine Zink resolveram então medir o efeito que simplesmente cortar carne e amassar batatas e cenouras cruas (o que ferramentas simples de pedra, pré-fogo, já permitiam) têm sobre a alimentação de humanos modernos. O veredito, publicado na "Nature"? Cortar e amassar esses alimentos crus já bastam para reduzir de 13 a 26% o tempo e a força de mastigação, certamente suficientes para sustentar a tese de que a humanidade começou com a cozinha.
O impasse entre os amigos então se resolve usando a palavra "cozinha" (ou "cooking", na literatura em inglês) no sentido mais amplo da palavra –como aliás venho propondo. Cozinhar, para mim, é preparar os alimentos de qualquer maneira antes de ingeri-los: fatiar, picar, amassar, marinar, ou de fato assar e cozer.
Acho que, assim, Wrangham e Lieberman concordam: devemos nossa humanidade à cozinha.
Suzana herculano-houzel, é carioca, é neurocientista treinada nos Estados Unidos, França e Alemanha.
Viver em um mundo civilizado tem algumas vantagens tão básicas que nem nos damos conta.
Uma delas é não ter que passar nove horas por dia ou mais procurando o que comer: graças à cozinha, talvez a mais básica das tecnologias, temos até mais calorias do que precisamos ao alcance das mãos. Foi o primatólogo Richard Wrangham, trabalhando em Harvard, quem propôs que a "invenção" do uso do fogo para cozinhar alimentos, muito mais do que o consumo de carne, teria sido o grande fator transformador da nossa história evolutiva.
Cozidos, raízes e carne se tornam mais fácil e rapidamente mastigáveis, permitindo a absorção de mais calorias em menos tempo.
Anos depois, nosso trabalho na UFRJ mostrou que sem uma tal transformação na velocidade com que se ingerem calorias, nossos antepassados teriam tido que passar improváveis nove horas e meia procurando o que comer todos os dias para sustentar corpo e cérebro. Nem gorilas, que não frequentam escolas ou trabalho, conseguem tal feito.
Se comêssemos como outros primatas, não estaríamos aqui com nossos 86 bilhões de neurônios.
Curiosamente, um dos principais críticos da proposta de Wrangham é seu amigo pessoal Daniel Lieberman, antropólogo no mesmo corredor em Harvard. Wrangham argumenta que há evidência fóssil de uso de fogo para cozinhar já 1.5 milhões de anos atrás, bem quando o cérebro humano começa a aumentar de tamanho ao longo dos milênios; Lieberman, ao contrário, diz que essa evidência só é concreta de 400 mil anos para cá – quando o cérebro humano já tinha o tamanho moderno.
Lieberman e sua colaboradora Katherine Zink resolveram então medir o efeito que simplesmente cortar carne e amassar batatas e cenouras cruas (o que ferramentas simples de pedra, pré-fogo, já permitiam) têm sobre a alimentação de humanos modernos. O veredito, publicado na "Nature"? Cortar e amassar esses alimentos crus já bastam para reduzir de 13 a 26% o tempo e a força de mastigação, certamente suficientes para sustentar a tese de que a humanidade começou com a cozinha.
O impasse entre os amigos então se resolve usando a palavra "cozinha" (ou "cooking", na literatura em inglês) no sentido mais amplo da palavra –como aliás venho propondo. Cozinhar, para mim, é preparar os alimentos de qualquer maneira antes de ingeri-los: fatiar, picar, amassar, marinar, ou de fato assar e cozer.
Acho que, assim, Wrangham e Lieberman concordam: devemos nossa humanidade à cozinha.
Suzana herculano-houzel, é carioca, é neurocientista treinada nos Estados Unidos, França e Alemanha.
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