AS FESTAS NATALINAS BRASILEIRAS


Por Lélia Gonzalez 

O Natal é comemorado em todo o Brasil durante um período convencionalmente denominado as doze noites, por corresponder às janeiras da tradição ibérica, e que se estende da véspera do Natal até o Dia de Reis (Epifania), passando pelos festejos do Ano-Novo. Vale notar que até meados do século IV, o nascimento de Cristo era comemorado em 6 de janeiro; só passou para 25 de dezembro, por determinação papal, em 337.

Aqui, mais uma vez, constatamos a recuperação, por parte da Igreja, de festejos pagãos impossíveis de serem suprimidos. Na verdade, o dia 25 de dezembro comemorava um duplo nascimento: de um lado, o de Osíris, deus egípcio dos mortos e da vegetação que também morreu e ressuscitou; de outro, o de Mitra (Sol Invictus), o deus solar dos persas. Sabemos quanto esses deuses eram popularmente cultuados na Roma do início da era cristã, dadas as suas vinculações com o solstício de inverno. Desse modo, tornou-se toda uma tradição europeia cristã que, via Portugal, chegou a nós. 

E aqui, ao contrário do hemisfério Norte, os festejos natalinos coincidem com o solstício de verão. No Brasil, onde pastoris, reisados, folias e cheganças vão constituir as principais manifestações dos folguedos natalinos, constatam-se diferenças regionais: no Norte e no Nordeste, as comemorações se revestem de um caráter mais profano, suntuário, alegre e malicioso; no Centro-Sul, predomina o aspecto religioso explicitado nas folias de reis.

De qualquer maneira, as manifestações folclóricas do ciclo possuem caráter de fato popular em apresentações que, repetimos, muitas vezes não são necessariamente cristãs. Nesse sentido, a especificidade assumida por certos folguedos fez com que alguns deles, no todo ou em parte, se deslocassem para o Carnaval. 

Um exemplo: os pastoris, em alguns locais, tomaram o nome de ternos (aristocráticos) e ranchos (populares). Estes últimos foram se tornando cada vez mais profanos e autônomos, acabando por se deslocar para o Carnaval. No Rio de Janeiro, eles ocuparam grande espaço nos desfiles carnavalescos da cidade, até o momento em que, retomando e reestruturando seu modelo, as escolas de samba se impuseram.

Outro exemplo: o bumba meu boi, geralmente associado aos reisados, em vários lugares estendeu suas apresentações até o Carnaval (Pernambuco, Espírito Santo, Rio de Janeiro, Santa Catarina). Aliás, o próprio reisado, pelo menos no Recife, apresenta-se no tríduo momesco.

Desnecessário dizer que a presença de elementos novos, pertencentes às culturas indígenas e africanas, determinou as recriações dos folguedos natalinos em terras brasileiras, ocasionando sérias recriminações da Igreja que aqui os introduzira.

A diversificação desses folguedos é característica do Nordeste, onde podem apresentar diferentes autos ao mesmo tempo.

Pastoris

Compreendendo as populares pastorinhas e os aristocráticos bailes pastoris (praticamente desaparecidos), os pastoris perfazem os autos natalinos em honra do Menino Jesus. Consistem num conjunto de pastores (meninas e meninos) que abre o espetáculo chamando outros personagens para os acompanhar em sua jornada a Belém. Dançando e entoando loas simples, visitam presépios e se apresentam em coretos e tablados. No Nordeste, foram divididos em dois cordões, o azul e o encarnado, que disputam a preferência do público. Como personagem moderadora, Diana veste-se metade de azul, metade de encarnado. O encerramento dos festejos ocorre no Dia de Reis.

Reisados

A área de incidência dos reisados abrange o Nordeste, onde cada grupo apresenta feições próprias. Podem ser um ou vários autos amalgamados, em que os episódios de sustentação são conhecidos como: entremeios (partes representadas), peças (partes cantadas) e embaixadas (partes declamadas). Os personagens destacam-se pela indumentária confeccionada com vidrilhos, lantejoulas, espelhinhos – estes últimos detêm o poder mágico de fazer retornar os maus desejos a quem os enviou. Rei, rainha, secretário, guias e contraguias, mestre e contramestre, mateus, palhaço, lira, embaixadores etc. demonstram a diversidade de personagens.

É muito forte a vinculação dessa festa com o auto dos congos e o bumba meu boi (inclusive com a morte e a ressurreição do boi). A coreografia é simples e depende da imaginação dos participantes, que dançam em casas, mercados, praças etc. Em Alagoas, o auto do quilombo apresentava-se como entremeio. A partir dos anos 1930, nesse mesmo estado, surgiu uma versão mais rica e desenvolvida dos reisados, que acabaram superados: trata-se dos guerreiros, reisado moderno com maior número de figurantes e episódios. 

Segundo Arthur Ramos, seus elementos formadores procedem dos congos e caboclinhos, autos europeus peninsulares (cristãos versus mouros), pastoris e festas totêmicas de origem africana e ameríndia, com o bumba meu boi como elemento temático dominante. Influências recentes dos terreiros de Xangô e do folguedo das baianas.

Folia de reis

Especialmente inspirada em textos bíblicos, a folia de reis predomina no Sudeste, no Centro e no Sul do país. Baseada no Novo Testamento, narra o advento do Messias. Sua peregrinação noturna, pedindo óbolos, reproduz idealmente a viagem dos magos a Belém. São doze ou mais participantes, músicos e cantores, conduzidos pelo mestre (responsável e financiador da folia). Ao conjunto, acrescentam-se os palhaços (de um a três), sempre mascarados e que, para uns, são os soldados de Herodes e, para outros, representantes de satanás. A eles é proibido entrar nas casas onde estão os presépios a ser visitados; permanecem do lado de fora, recitando chulas, disputando moedas, com atividade e marcação muito precisas. Nunca podem dançar diante da bandeira, símbolo da folia.

Os participantes, à exceção dos palhaços, trajam uma espécie de uniforme militar e se fazem acompanhar por violão, cavaquinho, sanfona, pandeiro, bumbo e caixa. As toadas (em que se sobressai a voz de falsete) lembram cantos primitivos do catolicismo popular ibérico.

A folia vai de casa em casa cumprimentando os amigos, cantando e tocando, e recebendo hospitalidade. Feita em geral para pagar promessa, ela exige de seus componentes o compromisso solene de seguir o grupo durante sete anos. Após esse período, cada folião é considerado mestre ou, então, se vê dispensado da obrigação. Mulheres e crianças participam ocasionalmente.

Fandangos e cheganças

Por fim, fandangos e cheganças são autos de tema náutico que, no entanto, apresentam diferenças. Ambos possuem componentes que trajam fardas de marujo e que dançam em tablados em forma de navio; ou, ainda, conduzem miniaturas de veleiros, quando se apresentam em palanques. Ambos incluem versões da nau Catarineta. O fandango é essencialmente rapsódico e popular (procedendo dos vilancicos peninsulares, como os pastoris), com suas cantigas tematizando o ciclo das navegações.

Após mais de três décadas de sua produção original, o livro Festas populares no Brasil, de Lélia Gonzalez, chega às livrarias de todo o país pela editora Boitempo. Trata-se do único livro que a pensadora, acadêmica e militante do movimento negro brasileiro, publicou em vida exclusivamente como autora. Escrita em 1987, a obra apresenta registros fotográficos de festas populares do Brasil de norte a sul com textos informativos que apresentam as marcas da herança africana na cultura brasileira, a integração entre o profano e o sagrado e a reinvenção das tradições religiosas na formação do imaginário cultural brasileiro.

Premiada internacionalmente na época de sua publicação, a obra continua pouco citada e pouco conhecida no Brasil, inclusive por nunca ter ido ao mercado livreiro. Como argumenta Raquel Barreto, no prefácio à nova edição da obra, esse esquecimento não é fortuito, mas sim um capítulo do violento apagamento da sua produção intelectual. Como forma de se contrapor a esse processo, a nova edição da Boitempo, em formato capa dura e brochura, apresenta o texto integral de Lélia e novas imagens, textos e documentos. São mais de cem imagens dos fotógrafos Walter Firmo, Januário Garcia, Maureen Bisilliat e Marcel Gautherot, entre outros, com posfácio de Leda Maria Martins, prefácio de Raquel Barreto, prólogo de Leci Brandão, texto de orelha de Sueli Carneiro, quarta capa de Angela Davis, Leci Brandão e Zezé Motta, e projeto gráfico de Casa Rex. A publicação de Festas populares no Brasil tem apoio do Instituto Memorial Lélia Gonzalez, do Instituto Ibirapitanga e do Instituto Moreira Salles (IMS).


Lélia Gonzalez

Fonte Boitempo


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