NO RIO NEGRO, TRADIÇÃO CULINÁRIA INDÍGENA ALIMENTA ESTUDANTES E EXPORTA CULTURA
Modelos de negócio fundamentados pela cultura tradicional revitaliza hábitos alimentares ancestrais e norteiam a economia das aldeias do rio Negro.
Por Luiz Felipe Silva, Fellipe Abreu
Mais de 800 quilômetros distanciam Manaus, a capital do Amazonas, de São Gabriel da Cachoeira, o maior município da região do médio e alto Rio Negro. Para chegar a São Gabriel, os povos das comunidades das margens dos rios Içana, Tiquié e Uaupés encaram uma jornada de dias para vencer o curso sinuoso das águas do noroeste amazônico – o tempo varia de acordo com o modelo de barco, a potência do motor, o nível das águas e o peso da carga, por exemplo. Este desafio logístico é evidente no transporte de alimentos, sobretudo de perecíveis, mas não impediu que o consumo de comida industrializada na região crescesse década após década.
A rica cultura alimentar da floresta perdeu prestígio diante da pressão cultural, midiática e mercadológica para uma dita integração com um suposto mundo civilizado. Esta lógica se impõe desde cedo inclusive nas instituições da rede pública de ensino. O cardápio da merenda escolar dos amazônidas é composto por produtos ultraprocessados, como feijoada enlatada e salsicha congelada. Além da baixa qualidade nutricional e dos altos teores de gordura e sódio, esses alimentos não raro chegam às bases fora das condições adequadas de consumo, vencidos ou estragados.
A inundação de alimentos processados influencia a cultura alimentar e também a cadeia produtiva da Amazônia. Políticas públicas apresentaram aos agricultores da floresta novas tecnologias importadas do agronegócio, a exemplo da forte introdução da mecanização da lavoura e do modelo de plantio em monocultura. O resultado foi a vulnerabilização do sistema agrícola tradicional. Instalou-se um estado de “adoecimento da comunidade”, teoriza Mauro Menezes, antropólogo do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
Lideranças comunitárias dos 23 povos que residem na bacia do Rio Negro identificaram os sintomas dessa crescente ameaça há mais de uma década. “Passando à monocultura, acabam as espécies de plantas cultivadas tradicionalmente”, resume Carlos Nery, do povo Pira-tapuya, coordenador regional da Coordenadoria das Associações Indígenas do Médio e Baixo Rio Negro (Caimbr). A diversidade genética das espécies de mandioca caiu aproximadamente 50% de 2000 a 2010, conforme um dossiê do processo de patrimonialização do sistema agrícola tradicional no Iphan.
Após o reconhecimento como patrimônio cultural do Brasil, em 2010, os povos indígenas buscaram acesso a novas políticas públicas para salvaguardar os costumes e a biodiversidade que caracteriza o Sistema Agrícola Tradicional. Reunidas na Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), criada em 1987, lideranças de diversas etnias tomaram à frente na formulação de práticas e parcerias que colaborassem para a manutenção das práticas agrícolas culturais.
Nesse processo, a defesa do território é a pedra fundamental. “Índio sem terra é índio sem história e sem perspectiva de futuro”, observa Carlos Nery. Os indígenas criaram, então, os Planos de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA) para as nove terras indígenas que compõem o sistema do Rio Negro. Foi um marco, pois estabeleceu diretrizes de política indígena no diálogo com a sociedade civil e o poder público. “A manutenção do território nos deixa muito mais protegidos, e é o nosso modelo interno de organização que garante isso”, afirma Marivelton Rodrigues, do povo Baré, diretor-presidente da Foirn. Para viabilizar este sistema foi necessário estabelecer uma lógica econômica que integrasse os modos de produção dos 23 povos da região, a fim de convertê-los em modelo de negócio sustentável.
O antropólogo Aloísio Cabalzar, coordenador-adjunto do Programa Rio Negro (PRN), trabalha com os povos da região desde os anos 1990. Ele integra a equipe do Instituto Socioambiental (ISA), que colabora com a construção de políticas e modelos de negócio aplicados nas últimas três décadas. “Existe uma economia indígena que já circulava entre eles e pela cidade. Mas a monetização é um fenômeno recente, de 20 anos. Quando começamos ninguém pensava em dinheiro”, recorda Cabalzar. Líderes indígenas e colaboradores das organizações parceiras, então, procuraram caminhos que integrassem a construção de cadeias de valor à lógica do “manejo do mundo”, na qual há uma simbiose entre existência humana, elementos da natureza e entidades que vivem na floresta.
PNAE: MERENDA DE PAI PARA FILHO
Em 2009, o Governo Federal sancionou uma lei que obriga estados e municípios a usarem, pelo menos, 30% do orçamento do Plano Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) para a compra de alimentos produzidos por agricultura familiar, com prioridade para assentamentos da reforma agrária, comunidades indígenas e quilombolas. Nos municípios da bacia do Rio Negro, isso abriu uma oportunidade para estimular a demanda pelos produtos do sistema agrícola tradicional – o que viria acontecer apenas dez anos depois.
Em 2016, a Comissão de Alimentos Tradicionais dos Povos no Amazonas (Catrapoa) foi criada com o objetivo de construir institucionalmente o caminho entre a roça da floresta e as escolas. A partir daí, mecanismos como notas técnicas, editais e mutirões de cadastramento de produtores indígenas encorparam a aplicação da lei.
A chamada pública de 2019 para produtores indígenas reduziu entraves burocráticos para o acesso ao PNAE. A adesão é crescente. Se no primeiro ano foram inscritos 17 projetos, 99 foram aprovados para os municípios de São Gabriel da Cachoeira e Santa Isabel do Rio Negro em 2021, com a inscrição de 125 agricultores. “Os próprios indígenas, hoje, veem isso como uma alternativa”, explica Carlos Nery.
Na primeira fase do processo de convencimento, as lideranças percorreram de barco diversas comunidades, inclusive as mais afastadas, mas encontravam resistência. Para atrair o maior número possível de produtores, houve um esforço de absorção da alta oferta de mandioca e seus derivados, principalmente a farinha – a maniva é a planta central da roça. Uma vez integrados ao sistema econômico, os produtores são gradativamente estimulados a diversificar a variedade de alimentos oferecidos ao PNAE.
A nutricionista indígena Márbia Ferreiras, do povo Baré, é a responsável técnica pelo PNAE em Santa Isabel do Rio Negro, com a mediação entre escolas e produtores das comunidades e sítios do município. Ela estabelece o calendário com o cardápio que será servido às crianças, respeitando a sazonalidade e a tradição dos modelos produtivos, ao mesmo tempo que garante aos estudantes uma dieta equilibrada do ponto de vista nutricional. “As crianças já não comem o que seus pais comiam. A gente recupera isso com uma alimentação de qualidade”, considera Márbia.
Ao substituir alimentos industrializados e ultraprocessados por frutas e legumes cultivados nas roças das famílias indígenas, nutre-se também a relação afetiva com a comida. “As crianças ficam ansiosas esperando o dia que irão comer, por exemplo, um beiju feito com a farinha da mandioca produzida pelos seus pais, tios ou avós”, complementa a nutricionista.
Neste formato, os agricultores têm canal direto com os professores. Pelas manhãs, levam, até as escolas de suas comunidades, a colheita de suas roças ou mesmo o peixe fresco que fora pescado ao nascer do sol do mesmo dia. E recebem um valor justo pelas mercadorias, além da garantia de compra. Mantém-se, assim, a estabilidade da função econômica do PNAE ao produtor, que se beneficia também na perspectiva da logística, uma vez que economiza tempo e dinheiro para transportar os alimentos.
“Os indígenas se orgulham de que têm um mercado para seus produtos sem saírem de suas comunidades”, afirma Carlos Nery. Desse modo, o município de Santa Isabel atualmente registra o caso mais bem-sucedido. Entre 2019 e 2020, a capacidade produtiva das roças do sistema agrícola tradicional saltou de zero para os 30% obrigatórios do PNAE em apenas um ano. Em 2021, a produção chegou a 200% da demanda na alimentação escolar. Com isso, o excedente é alocado para outros projetos de beneficiamento.
FOTO DE FELLIPE ABREU
CASA DE FRUTAS: INOVAÇÃO AO TRADICIONAL
Uma ampla pesquisa com as comunidades do Rio Negro, realizada no processo de patrimonialização do Sistema Agrícola Tradicional, identificou alto potencial econômico na diversidade de frutas cultivadas nas roças. No entanto, era preciso superar o problema central de toda a logística comercial da região: transportar os produtos por longos períodos sem que estragassem. “Aí surgiu a ideia: por que a gente não desidrata as frutas para vender?”, recorda Ilma Fernandes Nery, do povo Pira-tapuya.
Este trabalho, que se transformaria na Casa de Frutas (ou Iwaita Ruka, na língua nheengatu), nasceu em paralelo à implementação do PNAE, de modo a absorver a produção excedente dos agricultores. Então, somou-se tecnologia à inovação. Esse beneficiamento das frutas, com o uso de técnicas para desidratar, secar, salgar e congelar os alimentos, permite conservá-las por mais tempo e agrega valor ao produto final. “Assim, podem acessar novos mercados e promover o retorno econômico adequado”, explica João Gabriel Raphaelli, assessor técnico do ISA.
A primeira leva de produtos prevê a comercialização de frutas e frutos desidratados – abacaxi, banana-pacovã, tucumã, cucura, cubiu, castanha-do-brasil –, farinha de banana verde, farinha de tapioca e barrinha de frutas – açaí com banana, banana com abacaxi –, além de polpas para suco, sempre respeitando as lógicas da tradicionalidade e da sazonalidade das roças. O beneficiamento atende as exigências da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). As frutas são encaminhadas das roças até a unidade de aproximadamente 100 metros quadrados no município de Santa Isabel do Rio Negro, onde são processadas, padronizadas e rotuladas. O projeto Casa de Frutas ganhou o Prêmio SAT 2020, iniciativa do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social voltada para sistemas agrícolas tradicionais.
Criada pela Associação das Comunidades Indígenas do Médio Rio Negro (ACIMRN), a Casa de Frutas será inaugurada ao público em geral em novembro deste ano e, em seguida, os produtos poderão ser comercializados. O foco prioritário será atender o mercado regional e, assim, colaborar com o fomento das iniciativas de turismo de base comunitária. Na próxima fase, o plano é exportar os alimentos para os grandes centros urbanos brasileiros, como São Paulo. “É uma etapa para dar visibilidade ao nosso trabalho, aos produtos novos que nós estamos querendo colocar para vocês experimentarem”, conclui Ilma.
PIMENTA BANIWA: “O SABOR DA NOSSA COMIDA”
Estima-se que a cultura alimentar dos povos do Rio Negro tenha cerca de 4 mil anos. Ou seja, são quatro milênios de introdução de novas plantas, peixes e caças, e desenvolvimento de diferentes técnicas de cultivo e preparo dos alimentos. Essa gastronomia só foi apresentada aos sabores do açúcar e do sal após o contato com os invasores europeus. Desde sempre, a multiplicidade e a complexidade das pimentas representam o tempero fundamental nas refeições indígenas. “A gente não consegue comer sem a pimenta”, afirma Elizângela da Silva Costa, do povo Baré. Atualmente, 78 espécies de pimentas estão catalogadas na bacia do Rio Negro. As centenas de combinações possíveis servem como tempero para praticamente todos os alimentos, como o tucupi, os peixes, as carnes de caça e até para salada de frutas. “Ela é essencial, aquilo que dá o sabor da nossa comida”, completa Irineu Rodrigues, do povo Baniwa.
A importância da pimenta transcende o aspecto culinário. Ela também tem finalidade cosmética, medicinal e espiritual. Cada tipo de pimenta tem seu papel nos ritos de benzimentos, mas são especialmente importantes no processo de transição de meninas a mulheres adultas. Elizângela recorda um ditado que diz que “mulher que não tem pimenta não é mulher”. Uma espécie específica, inclusive, é usada para celebrar e benzer a jovem quando ela passa pela primeira menstruação. “É o segredo da mulher, o que mostra que estamos preparadas para enfrentar a vida”, continua Elizângela. Além de seu valor cultural, o conhecimento tradicional feminino no cultivo, trato e preparo das pimentas tem alto potencial econômico. A partir da demanda das indígenas, estruturou-se um dos modelos de negócio mais prósperos da Amazônia.
As donas da roça cultivam as pimentas ainda de modo tradicional, inclusive em relação às trocas de sementes, atividade muito importante para a manutenção das variedades existentes e para o surgimento de novas espécies. Foi acrescentada a etapa de beneficiamento, onde as pimentas são secadas, torradas e submetidas a diferentes receitas que misturam espécies e acrescentam sal – tudo isso dentro das normas sanitárias da Anvisa. Na etapa final, seu rótulo indica a rastreabilidade do produto: via código QR, o consumidor pode ver a procedência da pimenta, com informações sobre a comunidade, a roça e até o nome da mulher indígena responsável. Esse processo ocorre nas cinco unidades da Casa de Pimenta no Rio Negro.
O produto beneficiado foi integrado à rede Origens Brasil e ao Programa Caras do Brasil, através dos quais é distribuído para grande parte do país pelo Grupo Pão de Açúcar. Chegou também a outras seis nações: Estados Unidos, França, Áustria, Singapura, Japão e Irlanda. A maior parte das vendas (75%) é realizada para fora do Amazonas e rendeu, nos primeiros oito meses de 2022, um faturamento médio mensal de R$ 9,5 mil.
A formiga saúva é outro produto da região do Rio Negro que ganhou status de alta gastronomia. Ocupa os menus dos mais relevantes restaurantes de cozinha contemporânea no Sudeste do país. Por enquanto, sua comercialização é de escala local, ofertada como iguaria em feiras ou exportada fora da Amazônia sob encomenda. Na culinária regional, ela costuma acompanhar a quinhapira, receita que leva peixe, pimenta e tucupi.
CERÂMICA: ARTE COM AS PRÓPRIAS MÃOS
No costume dos povos da região do Rio Negro, quando ocorre um casamento, a mulher se muda para a comunidade onde vive o homem. Na nova terra, ela terá uma roça para cuidar e trará consigo sementes e técnicas utilizadas por seus antepassados. É bastante comum que tragam, também, utensílios e ferramentas de uso doméstico. A coordenadora do Departamento de Mulheres da Foirn, Larissa Duarte, do povo Tukano, recorda a história de sua avó. Ela se mudou para uma comunidade onde a tradição do uso da cerâmica estava perto de ser apagada, resultado de décadas de aculturamento promovido por religiosos e pela indústria de extração seringueira. Sua avó foi à margem do rio para coletar barro e começou sua produção própria de panelas de cerâmica. “Antes de morrer, ela disse que seria importante eu aprender, que iria nos ajudar na renda”, lembra-se.
A cerâmica permeia muitas etapas do sistema agrícola tradicional do Rio Negro. Representa também uma potente expressão cultural dos povos indígenas, a começar pela própria extração da argila, realizada apenas após um ritual de solicitação. “Tudo que vem da terra, precisamos pedir permissão”, reforça Larissa. A relação com o sagrado da terra se reflete no uso sustentável da argila, que nunca deve ser extraída mais do que o acertado com a entidade. Na produção final, a tinta é composta de uma mistura de limão e maniquera (resíduo da mandioca brava) e é aplicada sobre o objeto com pincéis feitos de cabelo de meninas. “A pintura e o grafismo contam histórias de vida, histórias de nossas grandes mestras do passado”, explica Maria do Rosário “Dadá” Martins, do povo Baniwa, também coordenadora do Departamento de Mulheres da Foirn.
Duas associações de base lideradas por mulheres articulam a produção das cerâmicas oriundas de diversas comunidades e abastecem a Casa Wariró, em São Gabriel da Cachoeira. Em 2021, a loja comercializou 5.225 peças, com uma arrecadação de aproximadamente R$ 220 mil. Para manter a roda girando, parte dos recursos financeiros são reinvestidos para a capacitação de artesãs e artesãos, que irão produzir, além de cerâmicas, cestarias, remos, biojoias e mais peças confeccionadas a partir dos conhecimentos tradicionais. A Casa Wariró, que também integra a rede Origens Brasil, recebe encomendas para o envio de peças para todas as regiões do Brasil e até para outros países.
“Está tudo conectado”, resume Larissa Tukano. A produção na roça que gera frutas e mandioca; a pesca que oferece peixes frescos na escola; a tecnologia como aliada ao tradicional para expandir as condições de trabalho e a oferta daquilo que há de mais valioso e saboroso dentro do sistema agrícola.
Esta série de reportagens e documentários contou com apoio do Instituto Socioambiental e Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro, pesquisa e roteiro de viagem de Ana Amélia Hamdan, Juliana Radler e Marina Terra e produção local de Ana Amélia Hamdan e Moisés Baniwa.
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