À Ilha de Maré Manuel Botelho de Oliveira-Iconografia Tropical

             


À ILHA DE MARÉ 

Jaz oblíqua forma e prolongada

a terra de Maré toda cercada

de Netuno, que tendo o amor constante,

lhe dá muitos abraços por amante,

e botando-lhe os braços dentro dela

a pretende gozar, por ser mui bela.

Nesta assistência tanto a senhoreia,

e tanto a galanteia,

que, do mar, de Maré tem o apelido,

como quem preza o amor de seu querido:

e por gosto das prendas amorosas

fica maré de rosas,

e vivendo nas ânsias sucessivas,

são do amor marés vivas;

e se nas mortas menos a conhece,

maré de saudades lhe parece.

Vista por fora é pouco apetecida,

porque aos olhos por feia é parecida;

porém dentro habitada

é muito bela, muito desejada,

é como a concha tosca e deslustrosa,

que dentro cria a pérola fermosa.


Erguem-se nela outeiros

com soberbas de montes altaneiros,

que os vales por humildes desprezando,

as presunções do Mundo estão mostrando,

e querendo ser príncipes subidos,

ficam os vales a seus pés rendidos.

Por um e outro lado

vários lenhos se vêem no mar salgado;

uns vão buscando da Cidade a via,

outros dela se vão com alegria;

e na desigual ordem

consiste a fermosura na desordem.


Os pobres pescadores em saveiros,

em canoas ligeiros,

fazem com tanto abalo

do trabalho marítimo regalo;

uns as redes estendem,

e vários peixes por pequenos prendem;

que até nos peixes com verdade pura

ser pequeno no Mundo é desventura:

outros no anzol fiados têm

aos míseros peixes enganados,

que sempre da vil isca cobiçosos

perdem a própria vida por gulosos.

Aqui se cria o peixe regalado

com tal sustância, e gosto preparado,

que sem tempero algum para apetite

faz gostoso convite,

e se pode dizer em graça rara

que a mesma natureza os temperara.


Não falta aqui marisco saboroso,

para tirar fastio ao melindroso;

os polvos radiantes,

os lagostins flamantes,

camarões excelentes,

que são dos lagostins pobres parentes;

retrógrados cranguejos,

que formam pés das bocas com festejos,

ostras, que alimentadas

estão nas pedras, onde são geradas;

enfim tanto marisco, em que não falo,

que é vário perrexil para o regalo.

As plantas sempre nela reverdecem,

e nas folhas parecem,

desterrando do Inverno os desfavores,

esmeraldas de Abril em seus verdores,

e delas por adorno apetecido

faz a divina Flora seu vestido.


As fruitas se produzem copiosas,

e são tão deleitosas,

que como junto ao mar o sítio é posto,

lhes dá salgado o mar o sal do gosto.

As canas fertilmente se produzem,

e a tão breve discurso se reduzem,

que, porque crescem muito,

em doze meses lhe sazona o fruito,

e não quer, quando o fruto se deseja,

que sendo velha a cana, fértil seja.

As laranjas da terra

poucas azedas são, antes se encerra

tal doce nestes pomos,

que o tem clarificado nos seus gomos;

mas as de Portugal entre alamedas

são primas dos limões, todas azedas.


Nas que chamam da China

grande sabor se afina,

mais que as da Europa doces, e melhores,

e têm sempre a ventagem de maiores,

e nesta maioria,

como maiores são, têm mais valia.

Os limões não se prezam,

antes por serem muitos se desprezam.

Ah se Holanda os gozara!

Por nenhuma província se trocara.

As cidras amarelas

caindo estão de belas,

e como são inchadas, presumidas,

é bem que estejam pelo chão caídas.

As uvas moscatéis são tão gostosas,

tão raras, tão mimosas;

que se Lisboa as vira, imaginara

que alguém dos seus pomares as furtara;

delas a produção por copiosa

parece milagrosa,

porque dando em um ano duas vezes,

geram dous partos, sempre, 

em doze meses.


Os melões celebrados

aqui tão docemente são gerados,

que cada qual tanto sabor alenta,

que são feitos de açúcar, e pimenta,

e como sabem bem com mil agrados,

bem se pode dizer que são letrados;

não falo em Valariça, nem Chamusca:

porque todos ofusca

o gosto destes, que esta terra abona

como próprias delícias de Pomona.


As melancias com igual bondade

são de tal qualidade,

que quando docemente nos recreia,

é cada melancia uma colmeia,

e às que tem Portugal lhe dão de rosto

por insulsas abóboras no gosto.

Aqui não faltam figos,

e os solicitam pássaros amigos,

apetitosos de sua doce usura,

porque cria apetites a doçura;

e quando acaso os matam

porque os figos maltratam,

parecem mariposas, que embebidas

na chama alegre, vão perdendo as vidas.

As romãs rubicundas quando abertas

à vista agrados são, à língua ofertas,

são tesouro das fruitas entre afagos,

pois são rubis suaves os seus bagos.


As fruitas quase todas nomeadas

são ao Brasil de Europa trasladadas,

por que tenha o Brasil por mais façanhas

além das próprias fruitas, as estranhas.

E tratando das próprias, os coqueiros,

galhardos e frondosos

criam cocos gostosos;

e andou tão liberal a natureza

que lhes deu por grandeza,

não só para bebida, mas sustento,

o néctar doce, o cândido alimento.

De várias cores são os cajus belos,

uns são vermelhos, outros amarelos,

e como vários são nas várias cores,

também se mostram vários nos sabores;

e criam a castanha,

que é melhor que a de França, Itália, Espanha.

As pitangas fecundas

são na cor rubicundas

e no gosto picante comparadas

são de América ginjas disfarçadas.


As pitombas douradas, se as desejas,

são no gosto melhor do que as cerejas,

e para terem o primor inteiro,

a ventagem lhes levam pelo cheiro.

Os araçazes grandes, ou pequenos,

que na terra se criam mais ou menos

como as pêras de Europa engrandecidas,

com elas variamente parecidas,

de várias castas marmeladas belas.

As bananas no Mundo conhecidas

por fruto e mantimento apetecidas,

que o céu para regalo e passatempo

liberal as concede em todo o tempo,

competem com maçãs, ou baonesas

com peros verdeais ou camoesas.


Também servem de pão aos moradores,

se da farinha faltam os favores;

é conduto também que dá sustento,

como se fosse próprio mantimento;

de sorte que por graça, ou por tributo,

é fruto, é como pão, serve em conduto.

A pimenta elegante

é tanta, tão diversa, e tão picante,

para todo o tempero acomodada,

que é muito aventajada

por fresca e por sadia

à que na Asia se gera, Europa cria.


O mamão por freqüente

se cria vulgarmente,

e não o preza o Mundo,

porque é muito vulgar em ser fecundo.


O marcujá também gostoso e frio

entre as fruitas merece nome e brio;

tem nas pevides mais gostoso agrado,

do que açúcar rosado;

é belo, cordial, e como é mole,

qual suave manjar todo se engole.

Vereis os ananases,

que para rei das fruitas são capazes;

vestem-se de escarlata

com majestade grata,

que para ter do Império a gravidade

logram da croa verde a majestade;

mas quando têm a croa levantada

de picantes espinhos adornada,

nos mostram que entre Reis, entre Rainhas

não há croa no Mundo sem espinhas.

Este pomo celebra toda a gente,

é muito mais que o pêssego excelente,

pois lhe leva aventagem gracioso

por maior, por mais doce, e mais cheiroso.

Além das fruitas, que esta terra cria,

também não faltam outras na Bahia;

a mangava mimosa

salpicada de tintas por fermosa,

tem o cheiro famoso,

como se fora almíscar oloroso;

produze-se no mato

sem querer da cultura o duro trato,

que como em si toda a bondade apura,

não quer dever aos homens a cultura.


Oh que galharda fruita, e soberana

sem ter indústria humana,

e se Jove as tirara dos pomares,

por ambrósia as pusera entre os manjares!

Com a mangava bela a semelhança

do macujé se alcança;

que também se produz no mato inculto

por soberano indulto:

e sem fazer ao mel injusto agravo,

na boca se desfaz qual doce favo.

Outras fruitas dissera, porém, basta

das que tenho descrito a vária casta;

e vamos aos legumes, que plantados

são do Brasil sustentos duplicados:

os mangarás que brancos, ou vermelhos,

são da abundância espelhos;

os cândidos inhames, se não minto,

podem tirar a fome ao mais faminto.

As batatas, que assadas, ou cozidas

são muito apetecidas;

delas se faz a rica batatada

das Bélgicas nações solicitada.


Os carás, que de roxo estão vestidos,

são lóios dos legumes parecidos,

dentro são alvos, cuja cor honesta

se quis cobrir de roxo por modesta.

A mandioca, que Tomé sagrado

deu ao gentio amado,

tem nas raízes a farinha oculta:

que sempre o que é feliz, se dificulta.

E parece que a terra de amorosa

se abraça com seu fruto deleitosa;

dela se faz com tanta atividade

a farinha, que em fácil brevidade

no mesmo dia sem trabalho muito

se arranca, se desfaz, se coze o fruito;

dela se faz também com mais cuidado

o beiju regalado,

que feito tenro por curioso amigo

grande ventagem leva ao pão de trigo.

Os aipins se aparentam

coa mandioca, e tal favor alentam,

que tem qualquer, cozido, ou seja assado,

das castanhas da Europa o mesmo agrado.

O milho, que se planta sem fadigas,

todo o ano nos dá fáceis espigas,

e é tão fecundo em um e em outro filho,

que são mãos liberais as mãos de milho.


O arroz semeado

fertilmente se vê multiplicado;

cale-se de Valença, por estranha

o que tributa a Espanha,

cale-se do Oriente

o que come o gentio, e a lísia gente;

que o do Brasil quando se vê cozido

como tem mais substância, é mais crescido.

Tenho explicado as fruitas e legumes,

que dão a Portugal muitos ciúmes;

tenho recopilado

o que o Brasil contém para invejado,

e para preferir a toda a terra,

em si perfeitos quatro AA encerra.

Tem o primeiro A, nos arvoredos

sempre verdes aos olhos, sempre ledos;

tem o segundo A, nos ares puros

na tempérie agradáveis e seguros;

tem o terceiro A, nas águas frias,

que refrescam o peito, e são sadias;

o quatro A, no açúcar deleitoso,

que é do Mundo o regalo mais mimoso.

São pois os quatro AA por singulares

Arvoredos, Açúcar, Águas, Ares.


Nesta ilha está mui ledo, e mui vistoso

um Engenho famoso,

que quando quis o fado antigamente

era Rei dos engenhos preminente,

e quando Holanda pérfida e nociva

o queimou, renasceu qual Fênix viva.

Aqui se fabricaram três capelas

ditosamente belas,

uma se esmera em fortaleza tanta,

que de abóbada forte se levanta;

da Senhora das Neves se apelida,

renovando a piedade esclarecida,

quando em devoto sonho se viu posto

o nevado candor no mês de agosto.

Outra capela vemos fabricada,

A Xavier ilustre dedicada,

que o Maldonado Pároco entendido

este edifício fez agradecido

a Xavier, que foi em sacro alento

glória da Igreja, do Japão portento.


Outra capela aqui se reconhece,

cujo nome a engrandece,

pois se dedica à Conceição sagrada

da Virgem pura sempre imaculada,

que foi por singular e mais fermosa

sem manchas lua, sem espinhos rosa.

Esta Ilha de Maré, ou de alegria,

que é termo da Bahia,

tem quase tudo quanto o Brasil todo,

que de todo o Brasil é breve apodo;

e se algum-tempo Citeréia a achara,

por esta sua Chipre desprezara,

porém tem com Maria verdadeira

outra Vênus melhor por padroeira


"A Ilha da Maré" é um poema escrito por Manuel Botelho de Oliveira, onde destaca-se o vocabulário típico dos barrocos, exaltando a variedade de frutas e legumes brasileiros, lembrando sempre a inveja que fariam às metrópoles europeias.

Ilha de Maré na Baia-de-Todos-os-Santos é um território quilombola.

Mais de 90% dos moradores se autodeclaram negros na região explorada pelos engenhos de açúcar

Manuel Botelho de Oliveira nasceu em Salvador, em 1636. Foi advogado, político e poeta barroco. Foi o primeiro autor nascido no Brasil a ter um livro publicado. Cursou Direito na Universidade de Coimbra, em Portugal. Faleceu também em Salvador, em 1711.

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