"ELE ME RAPTOU NO NAVIO!", texto de Rachel de Queiroz

Falar do Cascudo é sempre muito agradável. Não vou fazer aqui retrospectiva de sua obra literária, não é fácil. Ele impressionava pelo saber. Sabia demais sem sair da outrora Natal provinciana. Outros que viviam nos centros mais adiantados, como eu, nem de longe podíamos nos comparar a Luis da Câmara Cascudo.

Coisa de gênio, uma raridade neste país, de quem não conhecemos as grandes personalidades culturais.

Uma vez eu vinha de navio para o Rio. Quando o vapor atracou em Natal, aparece-me ele a bordo, dizendo que vinha me raptar. Gritou bem alto: 'Vou lhe seqüestrar!!! Você agora é minha, não sairá mais de Natal! 

Temos de pisar este chão de minha cidade. Vamos embora, menina!'. Imagine, eu, uma menina! 'Você ficará encantada com isto aqui, verá o pôr-do-sol mais lindo do mundo. Quero lhe mostrar o Potengi, juntando crepúsculos a seu lado, é muito bonito!'. 

O pessoal de bordo viu aquele homem de cabelo esvoaçante, belos olhos, elegantemente vestido, de paletó e gravata. Identificaram logo que era o escritor maior do Estado, Câmara Cascudo. Aí nos abraçamos e saímos escada abaixo, de mãos dadas.

Não parava de gargalhar porque havia me 'seqüestrado'. 

Levou-me para a casa dele direto, e só me trouxe na hora de o navio partir. Passei o dia na casa dele, com a família dele; almoçamos juntos.

Foi um encontro muito cordial. Não sei precisar exatamente o dia e o mês, mas sem dúvida a década era de 60. Eu não o conhecia antes. Depois do 'rapto', ficamos amigos até morrer. Morrer não, até ele 'viajar', como preferia.

Tinha horror à palavra morte. Cascudo era o retrato do bom humor, da alegria de viver, descontração, inteligência, grande sensibilidade poética.

Por isso ele continua cada vez mais vivo, suas lembranças são saudáveis e carinhosas. Encantava a todos nós. Não esqueço da ternura dele, do tratamento carinhoso de sua família. 

Aliás, devo ressaltar que nunca almocei tão bem quanto no sobrado da Ribeira, pratos regionais deliciosos.

Um doce de coco divino, depois queijo com mel de engenho. Ah! Meu Deus, como o Cascudo nos faz falta neste momento brasileiro. Não é que ele gostasse de política, mas sabia, na hora certa, alfinetar com fina ironia. E o que dizia tinha muita projeção." 


Fonte: Câmara Cascudo - Um homem chamado Brasil, Gildson Oliveira (1999)

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