Precisamos nos alimentar do que é produzido perto da gente

A Organização das Nações Unidos (ONU) estabeleceu a Década da Agricultura Familiar (2019-2028) com objetivo de fortalecer esse modelo alternativo à produção industrial. 

Comumente associada aos alimentos orgânicos, porém, a agricultura familiar tem vertentes que vão além da forma de cultivo e dizem respeito a uma relação mais harmônica com a natureza.

Na agrossilvicultura ou agrofloresta, por exemplo, mescla-se a produção de árvores variadas com a plantação da agricultura, recriando um ambiente autossustentável. É o que faz o antropólogo Eduardo Guimarães, 61, sua esposa Arlene e as filhas Maria Eduarda, Natácia e Veridiana, na fazenda São Cosme e Damião, de 20 hectares, no sul da Bahia.

Eduardo escolheu o local, em 1992, como refúgio para escrever sua dissertação, quando se dedicava ao estudo de religiões. Hoje, suas pesquisas e projetos da universidade são voltados para a agroecologia.

O antropólogo conversou com o A TARDE, por telefone, sobre o tema e sua experiência como agricultor familiar.

Como teve início sua ligação com a agrossilvicultura?

Tem uns 30 anos, mais ou menos, que me casei e a gente foi para Ubaitaba [a 255 km de Salvador]. Eu estava fazendo mestrado e a gente foi passar um ano lá para que eu escrevesse minha dissertação afastado da universidade.

Chegamos em um momento importante, que foi a crise da vassoura-de-bruxa [praga que chegou à região cacaueira, no sul da Bahia, em 1989, e se espalhou na década de 1990, fazendo cair a produção da fruta pela metade]. Já tínhamos o sonho de fazer agricultura orgânica, de plantar sem agrotóxico.

Aí a gente foi ficando até hoje.

Na realidade, é aquela coisa da mata atlântica, né? A mata atlântica é fantástica. Fomos seduzidos por ela, vamos dizer assim.

Nesses 30 anos lidando com produção agrícola e venda, percebeu um aumento na procura por produtos orgânicos e agroecológicos?

Há uns 25 anos não se falava isso. Mas a cada dia vem aumentando a produção pela agricultura orgânica. Nesse tempo, a gente participou da discussão que criou a Comissão Nacional da Produção Orgânica (CNPOrg).

Fizemos parte da criação de feiras de produtos orgânicos, como a que acontece no Parque da Cidade, que é uma feira orgânica certificada. Mas agora a gente saiu dessa pegada de se preocupar com certificação, se é orgânico ou não.

Temos outra relação com a natureza, navegamos mais na onda da agroecologia. Existe uma diferença sutil, mas importante, entre os alimentos orgânicos e os agroecológicos.

Para ser orgânico, basta que não haja fertilizantes artificiais e pesticidas na produção do alimento, o que pode ser feito até por grandes indústrias, certo? E na agroecologia?

Isso. Na agroecologia, está ligada à solidariedade, à identidade harmônica com a natureza.

O conhecimento agroecológico se baseia nos conhecimentos ancestrais, no saber dos camponeses. Isso gera, por exemplo, uma grande dificuldade para as instituições de ensino criarem cursos de agroecologia porque ela lida com a valorização do saber tradicional e ancestral. É um desafio para a universidade.

Cuba tem a agroecologia mais desenvolvida do mundo.

A alimentação em Cuba é toda agroecológica por causa do bloqueio americano. Lá tem o Ministério da Agricultura, como temos aqui, tem universidades, mas quem manda na agricultura não é nem as universidades nem o ministério. É um movimento de camponês para camponês. São eles quem definem as prioridades.

Como isso acontece na sua prática na Agrossilvicultura São Cosme e Damião? Sei que estão implementado um sistema agroflorestal no assentamento da reforma agrária Floresta do Sul, próximo a Ubaitaba.

Assentamento é um grande desafio porque o que é um assentamento da reforma agrária? É você tirar pessoas excluídas, pessoas que não tinham norte, muitas vezes, que moravam nas periferias e nas invasões das cidades, e dar dignidade a elas.

O desafio é que essas pessoas, muitas vezes, não têm tradição na agricultura. Quando tem, é a tradição do trabalhador rural, que está acostumado a obedecer ordens. Mas no assentamento, eles é que têm que decidir o próprio caminho.

Em um projeto como esse que estamos fazendo na Floresta do Sul, nossa grande preocupação é o resgate de saberes. Lá tem pessoas que se identificam como indígenas, índios tupinambás. Os índios tupinambás têm uma gestão do tipo agrofloresta. Tem quilombolas, vindos ali da região de Itacaré. Então, vamos resgatar esses conhecimentos, a ancestralidade. Isso se faz o tempo todo, em outros lugares. A Floresta Amazônica é uma agrofloresta.

Regiões florestais sem ação humana também são consideradas agroflorestas? Qual o papel do humano nisso?

O humano é como se fosse o arquiteto. Ele planeja. Essa capacidade de planejar é humana. Tem um papel superimportante. No sul da Bahia, o pessoal costuma dizer assim ‘ah, porque foram os macacos que plantaram os pés de cacau’. Minha gente, os animais são presentes, claro. Eles podem plantar também, mas o cultivo, a plantação, a intencionalidade é humana. Na verdade, é uma grande comunidade.

As plantas, os seres humanos e os animais.

Sob essa ótica de unidade ambiental, como enxerga esse momento de pandemia?

Acho que estamos vivendo um alerta. Tem um biólogo francês, Francis Chaboussou, que escreveu o livro Teoria da Trofobiose. ‘Trofo’ é alimento, e ‘biose’, vida. Só tem alimento onde há vida. O parasita morre de fome em um ambiente equilibrado. Na agroecologia, a gente não pensa no veneno, não usa calda de fumo [inseticida caseiro, feito com água, sabão, folhas e talos de fumo], como na agricultura orgânica se usa. Não precisa. A planta é como a gente, como você, como eu, que precisa estar com a imunidade equilibrada, como está se falando tanto agora. A mesma coisa com o planeta. 

A gente não tem tido equilíbrio. E, outra coisa, agrofloresta é extremamente produtiva sem precisar mecanizar nada. Nunca entramos em uma loja de produtos agrícolas, a não ser para pegar facão e enxada.

A mecanização não é boa, em algum grau? Não há nada de de bom que tenhamos produzido ou aprendido com a industrialização da agricultura?

Aprendemos a como não fazer. Se a gente pensar em uma coisa que todo mundo come. Tomate, por exemplo. Ele não dá em todo lugar. Mas posso pegar e plantar aqui. Faço uma estufa, refrigero. Quando eu faço isso, estou forçando a natureza, criando um problema. Por que tem tanta praga no tomate de Juazeiro, se aquilo ali é só veneno que a gente come? Porque não é uma região que se adapte ao tomate. A variedade de alimentos que a gente come não chega a 13, 14 coisas, no máximo. Precisamos nos alimentar do que é produzido perto da gente. Vamos fazer um cálculo imaginando que você come uma cenoura que vem de São Paulo. Se você fizer a conta da quantidade de energia que se gasta para produzir, embalar e transportar essa cenoura e subtrair as calorias, ou seja, a energia que ela tem, e o saldo der negativo, então a sociedade não se sustenta. Não vamos ter petróleo sempre, energia sempre. Esse é o equilíbrio. Na agrofloresta, se produz quase tudo. Esse quase é superimportante.

Nesse momento, como tem feito para escoar a produção?

Está sendo muito difícil. As feirinhas de orgânicos de que a gente participa foram suspensas. A gente está entregando alguma coisa aqui em casa e em algumas lojinhas de produtos naturais. Mas temos segurado um pouco no freio. Todo mundo vai perder nesta época. Não adianta ficar estressado. Na roça, não tem problema de confinamento. O pessoal está lá fazendo outras coisas, plantando. Na roça, o que não falta é trabalho. Estão é se fartando, dando uma parte da produção para um, para outro. Estou de castigo em Salvador porque lá não tem internet e seguimos trabalhando, em home office.

Aqui, o Pomar Club continua fazendo entrega de horta delivery. Vocês também estão com esse serviço?

Sim, temos parceria com eles, que estão fazendo o maior esforço. A logística é difícil. Essa semana eles foram lá na roça, mas foi vapt-vupt. Encheram o carro e saíram.

Em um contexto pré e pós-pandemia, acha que essas feirinhas de orgânicos dão conta da demanda de Salvador? São necessárias outras redes de distribuição?

Salvador carece de uma rede de distribuição maior, que atenda não só à agroecologia, mas à agricultura familiar como um todo. Nas feirinhas, vendemos uma quantidade boa. Mas se a gente quiser, hoje, triplicamos a produção. Em outros países, os agricultores vão até a cidade, nas redes de mercado, vender os alimentos diretamente para você. É uma coisa incrível. Eles são respeitados. O que um agricultor quer é que a estrada vá até a entrada da roça dele, é escola e universidade para os filhos, ter luz elétrica. Isso que é importante. Temos que começar a valorizar quem está no campo.

Você consegue enxergar, em um futuro próximo, uma reforma agrária sendo feita no Brasil?

A gente tem que fazer. A reforma agrária é fundamental. Não tem como excluir ainda mais as pessoas. Por que Salvador está cheia de favela? Um dos fatores é esse.

A maioria das terras do Brasil são leiloadas e o governo ainda quer tirar terras já demarcadas dos indígenas. Isso não existe em outro lugar do mundo. Para que está invadindo tanto? Não precisa. O Brasil tem tanta terra degradada, que vai plantando, abandonando, plantando, abandonando. Cadê as águas? Estão secando, sendo contaminadas. O agricultor que alimenta a gente, que é o familiar, tem perdido suas propriedades , que são mais produtivas que as grandes. Então, não tem como continuar assim. É um desrespeito com as pessoas. Quem conhece a realidade das comunidades quilombolas sabe que elas estão entregues à própria sorte.

Fonte: Revista Muito








Comentários

Postagens mais visitadas