Conceito etimológico de cultura

Extraído do livro: Identidade Cultural no Brasil
Julieta de Andrade / Luiz Fernando de
Andrade Soares / Roberto Huck
Com muita frequência o vocábulo Cultura é usado com imprecisão tanto de contorno quanto de conteúdo. Por causa da expressão Cultura Geral, que significa uma somatória de conhecimentos diversificados, para além da formação específica do usuário; também por causa de grande confusão tradicional em torno dos limites exatos da Cultura; ou ainda mesmo em razão de polissemia (significados diferentes para o mesmo vocábulo); pelo motivo que for, Cultura parece estar servindo para nomear tudo que não seja Física, Química, Matemática, Biologia...
Etimologicamente, cultura vem do latim cultura-ae, cognato do verbo colo-colui-cultum-colére que, por ser usado com diversos significados, formou uma grande família de palavras. Alguns sentidos de colére são: encontrar-se habitualmente cultivar, morar em, cuidar de, adornar, preparar, proteger, ocupar-se de, realizar, cumprir, praticar, honrar, venerar, respeitar.
Ainda no Latim, alguns derivados de colére são: colonus/i, o lavrador, rendeiro, feitor, agricultor; cultio/onis, cultura, amanho, adoração, veneração; cultor/oris, aquele que cultiva, que habita em, que adora os deuses. Cultus/us, também forma verbal de colére, significa igualmente, como substantivo, cultura da terra, educação, civilização, gênero de vida, costume, adoração, reverência, respeito, maneira de viver, culto.
Cultura e culto (sessão religiosa) são termos procedentes da mesma raíz. São cognatos.
Acervo de conhecimentos advindos da experiência de vida, do cotidiano, a cultura caracteriza os integrantes da mesma Nação quanto à maneira de viver quanto ao modo de formar de conceituar o corpo de valores e de costumes que lhes são próprios.
Para Herskovits (Antropologia Cultural. São Paulo: Mestre Jou, 1963) "cultura é a parte do ambiente feita pelo homem".
Segundo ele, o modo comum de garantir a sobrevivência de cada grupo humano, a formulação das estruturas de parentesco, as maneiras de formar associações, de dar um sentido à vida constituem a cultura. Esta mostra, além dos traços universais (comuns aos homens das diversas nações) as peculiaridades do estilo de vida de cada nação (cada grupo humano apresenta traços originais, que levam a soluções características, diferenciadas daquelas a que chegam dos demais grupos).
Quando um grupo de homens cria laços comuns de identidade entre si, é porque tais pessoas têm o mesmo modo de cultivar a terra e as amizades, de compreender a vida e os valores de fazer e entender o culto. E este, seja endereçado ao sobrenatural ou mesmo aos heróis (pessoas que se diferenciam por ações nobres ou extraordinárias) fundamenta e firma os laços, a compreensão, o entendimento entre os participantes do grupo.
De certa forma, o culto daquela crença original e básica de cada nação dá os limites – e, consequentemente, a direção- das ações dos integrantes da coletividade, ainda que a religião formal modifique a abordagem da fé.
Parafraseando Herskovits, cada homem faz a sua parte, no ambiente, à maneira da sua cultura, desde que esta seja entendida no sentido estritamente etimológico: particípio futuro do verbo colére: aquilo que deve ser cultivado, cultuado, vivenciado, respeitado, vivido enfim. E assim conceituado, a Cultura é direcionada pelo contorno que lhe confere a crença básica que uniu homens em uma nação.
Não há conotação com país, de pagus, Latim, terra limitada pelos marcos das fronteiras geográficas - mas com Nação, de natio/onis, do Latim, e que significa o grupo de pessoas que herdam de seus maiores (isto é os ancestrais) os que habitaram a Pátria (do Latim pátria/ae, os ancestrais, os antepassados, terra onde viveram os antepassados, terra habitada por homens da mesma Cultura). Herdam o quê? O modo de viver, os costumes, os valores, o etos.
Espontâneo/a vem do Latim spontâneus-a-um, adjetivo triforme derivado do substantivo sponte, ablativo de spons/tis e que significa vontade, livre vontade (sponte sua=por sua livre vontade, voluntariamente). Espontânea quer dizer voluntária sem coação, sem dirigismo. Não significa nascida do nada, como muitos pensam, por não conhecerem Latim.
Ser espontânea é traço essencial da Cultura. Os homens de cada nação escolhem sponte sua, livremente, como querem viver. Por isso mesmo, colonizar significa tentar impor parâmetros diferentes daqueles do povo submetido.
Nação livre tem implícita a noção de felicidade. Povo oprimido é gente infeliz, sem vontade livre, sem diretriz própria. Sem espontaneidade.
A Etimologia é uma auxiliar de valor inestimável, em qualquer trabalho porque a raiz de cada palavra sempre conserva algo do seu sentido primeiro. Para este estudo, o socorro da etimologia foi básico, por definir o sentido e limites de cultura.
O campo de ação desta pesquisa é Cultura Brasileira, entendido o vocábulo Cultura no sentido original etimológico; e Brasileira no sentido de Nacional.
Procura os traços que caracterizam o homem de nossa Pátria (e a Pátria é sempre nossa, nunca minha, pois Pátria inclui um sentido de coletividade, etimologicamente lembra um plural) enquanto co-participante da herança cultural comum à gente da Nação Brasil: quem nasceu, vive ou está aqui.
O termo Cultura, neste trabalho significa conhecimento adquirido no ambiente não-formal do aprendiz, por imitação, condicionamento inconsciente ou por reinterpretação pessoa de um dado anterior.

Universidades, Comunicação de Massas, Cultura
Hoje o homem vive em sociedades complexas, onde o saber circula por diversas vias.
As Universidades, cuja História remonta ao século X na Itália, criadas originalmente para a difusão da Cultura, a pouco e pouco sistematizaram o ensino, em razão até da quantidade e diversificação das áreas de conhecimento.
Atualmente elas se reservam à finalidade de proceder à formação acadêmico-profissional de alunos já preparados em cursos anteriores; no Brasil, Fundamental e Médio.
Como consequência da mesma diversificação de áreas de conhecimento, o século XIX foi palco da chamada Revolução Industrial. Máquinas substituíram o trabalho artesanal, produtos acumularam-se, nasceu e aprimorou-se a Propaganda, a Comunicação de Massas.
O homem do século XX aprende por duas vias: a cultural (doméstica, aprendida na vivência, nos círculos não-formais e no critério único da espontaneidade, isto é, da vontade própria de aprender), a escolar (sistemática organizada em currículos) caracterizada pelo ensino ministrada por especialistas.
Além disso, este mesmo homem informa-se através dos veículos de Comunicação de Massas (eles destinam-se à divulgação de informações, num mundo onde a pessoa humana tende à especialização progressiva, não conseguindo saber tudo). Ora, a comunicação de massas interage com o saber erudito, para informar seriamente; mas procura traços culturais, para atrair o consumidor.
A sociedade vive, hoje, a hegemonia das Universidades, em meio a coloridas e/ou sonoras publicidades, mais eficientes quando embasadas na cultura.
Levado a viver em função de política econômica enquanto ser social; e em função de trabalho para a sobrevivência própria e da família, enquanto ser humano, principalmente nos grandes centros urbanos, falta ao homem tempo para pensar em traços espontâneos (não que não os tenha, mas eles ficam relegados ao plano de inconsciência quanto à força que têm na valorização do seu portador enquanto pessoa). Ser pessoa é ser capaz de escolhas livres, espontâneas. Em contingência de fazer tudo correndo, comer às pressas e dormir pouco, muitos chegam a pensar que cultura é coisa do passado, que está morrendo, em vias de desaparição. Assim ocorre porque poucos se dão conta de que o traço de Cultura tem lugar definido e inarredável na personalidade: que continua a cumprir seu papel, penetrando silenciosamente, no âmbito da família e no círculo de amizades mais íntimas, para, uma vez escolhido pelo seu portador, passar a caracterizá-lo diferencialmente em relação aos homens de outras nações.
Como ninguém escolhe o que lhe é adverso, os traços culturais podem começar a ser detectados nas frases simples, que iniciam frequentemente por um "Eu gosto de fazer..." ou "Eu prefiro...". Esse gostar, esse preferir foram aprendidos desde a infância e juventude, no seio da família; são traços indeclináveis que definem seu portador com pertencente a esta ou não, àquela sociedade;a esta e não, a outra nação.

A9 Editora e Empreendimentos Ltda, 1999.

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