ENTRE BRASEIROS E DEFUMAÇÕES: MATERIALIDADE DAS PRATICAS AFRO-BRASILEIRAS NO SÉCULO XlX
A peça original apresentava forma de taça, com cavidade inferior e aberturas que favorecem a circulação de ar — condição que permite a manutenção de um braseiro, sobre o qual se colocavam alimentos ou substâncias aromáticas para queima lenta.
Relatos do pintor francês Jean-Baptiste Debret, que viveu no Brasil entre 1816 e 1831, descrevem o uso desses fogareiros para o preparo de alimentos e para a fumigação de ambientes ao entardecer, prática voltada ao afastamento de insetos. Tais representações aparecem em suas obras, como na ilustração “Vendedoras de milho seco e verde” (1820).
A análise comparativa com peças contemporâneas, adquiridas em lojas de artigos religiosos de matriz africana, evidencia a permanência morfológica do objeto e a continuidade de seu uso como incensário em contextos rituais. Este dado reforça a importância da arqueologia na compreensão das dinâmicas culturais que articulam tradição, religiosidade e práticas cotidianas ao longo do tempo.”
Imagens: 1 - Acervo LAAU; 2 - Google; 3 e 4 - J. B. Debret, 5 - Acervo Etnográfico LAAU; 6 - Cassandra Mello (foto); 7 - Acervo IRPH.
1. Função e Tecnologia Tradicional
O fogareiro de cerâmica é um artefato tecnológico de grande importância nos cotidianos domésticos e rituais. A sua forma de taça com cavidades laterais revela um conhecimento técnico ancestral de aproveitamento do fluxo de ar para manter a brasa acesa por mais tempo, permitindo uma queima lenta e controlada. Essa característica era essencial tanto para o preparo de alimentos quanto para práticas de fumigação.
2. Continuidade Cultural e Religiosidade Afro-brasileira
A permanência formal e funcional do fogareiro, especialmente em contextos de religiões afro-brasileiras como o Candomblé e a Umbanda, revela a resiliência das práticas culturais de matriz africana no Brasil. Hoje, esses objetos são amplamente utilizados como incensários (também chamados de "fundangas" ou "queimadores") para defumação de ambientes com ervas sagradas como alecrim, alfazema, arruda e benjoim — prática voltada à purificação e proteção espiritual.
3. Aspectos Simbólicos da Fumaça
A fumaça gerada nesses fogareiros possui um forte simbolismo. Em diversas tradições afro-diaspóricas, ela é considerada um canal de comunicação entre o mundo material e o espiritual. A fumaça leva as preces, limpa as energias e marca passagens rituais, atuando como elemento de mediação nas casas de culto e também nos lares.
4. Relação com os Saberes Femininos e Cotidianos
Fogareiros como este eram frequentemente operados por mulheres negras — cozinheiras, quituteiras e zeladoras espirituais — que os utilizavam tanto para defumar quanto para cozinhar. O relato de Debret sobre as "Vendedoras de milho seco e verde" reforça essa associação entre o artefato e o trabalho feminino nos espaços públicos e domésticos. A materialidade do objeto, portanto, carrega uma história de saberes culinários e religiosos transmitidos oralmente e vivenciados no cotidiano.
5. Arqueologia da Diáspora Africana
O achado arqueológico dialoga diretamente com os estudos sobre a presença africana e afrodescendente na formação do Brasil urbano do século XIX. A arqueologia da diáspora africana busca identificar, preservar e interpretar os vestígios materiais deixados por populações escravizadas e libertas, revelando formas de resistência, adaptação e transmissão cultural que desafiam narrativas hegemônicas da história oficial.
6. Patrimônio Imaterial e Educação Patrimonial
A presença desse tipo de objeto em escavações arqueológicas urbanas pode servir como ponto de partida para ações de educação patrimonial e valorização da cultura afro-brasileira. Ao reconhecer a permanência de práticas e objetos tradicionais, amplia-se a percepção do patrimônio não apenas como algo do passado, mas como algo vivo, em constante transformação.
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