BROAS AO CALOR DO BARRO: TRADIÇÃO E SUSTENTABILIDADE NO CORAÇÃO DA CHIBIA

Muito antes de ganharem forma nas mãos habilidosas das quitandeiras do sul de Angola, as broas já carregavam uma história de encruzilhadas culturais. 

A palavra fubá, que hoje usamos para designar a farinha fina de milho, tem origem em uma língua africana de Angola e significa, justamente, "farinha".

Esse termo, assim como o próprio milho, foi transformado por encontros entre povos — indígenas, africanos e europeus — moldando sabores que hoje nos parecem ancestrais.

Em Chibia, município da província da Huíla, as broas são mais do que alimento: são memória viva. Assadas em fornos de barro construídos coletivamente, elas guardam o calor de tradições que resistem ao tempo e ao esquecimento. E é nesse cenário de chão batido, cheiro de fubá tostado e mãos que sabem o ponto exato da massa, que a história das Broas de Chibia continua sendo contada, uma fornada de cada vez.

Por Joaquim Abreu

No bairro da Pikata, nas redondezas do município da *Chibia, província da Huíla, o cheiro inconfundível de broas quentes recém-saídas do forno anuncia mais do que um simples alimento: revela uma tradição enraizada, resistente ao tempo, moldada pelas mãos da comunidade e aquecida pelo barro da terra.

Aqui, onde a ancestralidade se cruza com a resiliência cotidiana, os fornos de adobe — construídos com terra crua, palha e água — seguem firmes como pilares de uma economia familiar que se apoia na partilha, no engenho e na sabedoria transmitida entre gerações.

Na Pikata, as broas — feitas com uma mistura de farinhas de trigo e milho, fermento, água e, por vezes, um toque de açúcar ou mel — não são apenas iguarias: são fonte de rendimento, símbolo de pertencimento e ferramenta de autonomia feminina. Em muitas famílias, são as mulheres que dominam a arte de amassar, modelar e assar, transformando o simples ato de cozer pão num verdadeiro sustento diário.

O adobe: um saber ancestral com rosto ecológico

A técnica do adobe — usada desde os tempos pré-coloniais em várias regiões de África e do mundo — é exemplo claro de uma construção ecológica e adaptada ao clima local. Diferente dos tijolos cozidos em fornos industriais, os blocos de adobe são moldados em formas de madeira ou ferro e deixados a secar naturalmente ao sol. Este processo elimina o uso de combustíveis fósseis, tornando-se uma solução de baixo impacto ambiental, acessível e renovável. Além disso, as construções em adobe possuem excelente isolamento térmico, mantendo os interiores frescos durante o calor do dia e acolhedores nas noites frias do planalto sul-angolano.

Na Chibia, essa técnica se manifesta em casas, currais, fornos e celeiros, refletindo uma profunda simbiose entre o modo de vida e o território. É um saber coletivo que garante autonomia às comunidades, reduz a dependência de materiais industrializados e reafirma uma identidade construída com os pés na terra.

Fornos comunitários: calor, alimento e dignidade

O forno de barro, além de estrutura funcional, é espaço de encontro. Numa terra onde muitas vezes os recursos são escassos, ele é partilhado por vizinhos, usado por várias famílias, e funciona como um centro informal de cooperação. É ao redor desses fornos que se trocam receitas, conselhos, histórias — e se fortalece a rede de solidariedade local.

As broas e pães produzidos ali, junto com os produtos agrícolas locais — como feijão, abóbora, batata-doce, banana e hortícolas — abastecem os mercados e feiras da região, garantindo uma circulação econômica de base familiar e comunitária. 

Muitas dessas famílias, antes dependentes exclusivamente da agricultura de subsistência, encontraram na panificação artesanal uma forma complementar de garantir renda e segurança alimentar.

Sustentabilidade com sotaque do sul

Num tempo em que a urbanização e o consumo desenfreado ameaçam apagar práticas milenares, a experiência da Chibia torna-se cada vez mais relevante. Em vez de betão e plástico, barro e palha. Em vez de produção em massa, gestos repetidos com o tempo do corpo e o ritmo da natureza. O uso do adobe e a valorização da produção alimentar local apontam para um modelo sustentável, enraizado e possível, especialmente num mundo que enfrenta crises climáticas e busca alternativas resilientes.

Ao preservar e reinventar suas técnicas de construção e produção de alimentos, a comunidade da Pikata não apenas resiste às pressões externas, como oferece um exemplo inspirador de sustentabilidade afrocentrada, baseada em saberes ancestrais, solidariedade e respeito ao meio ambiente.

Um futuro moldado com as mãos

Na Chibia, o futuro não precisa ser importado. Ele é moldado a cada manhã, com barro e esperança, pelas mãos que amassam as broas e erguem os fornos. Num mundo que redescobre o valor das soluções naturais, essa pequena comunidade do sul de Angola lembra que o caminho da inovação também pode passar pelos trilhos da tradição. E que, ao calor do forno de adobe, acende-se não apenas o fogo do alimento — mas o da memória, da resistência e da dignidade.


*A Chibia é um município angolano situado na província da Huíla, no sul de Angola. Localiza-se a cerca de 45 quilômetros ao sul da cidade do Lubango, capital da província, sendo acessível pela estrada nacional EN280. Está inserida no planalto da Huíla, uma região de altitude elevada, com clima mais ameno em comparação a outras zonas do país.

Faz fronteira com os municípios de Lubango a norte, Humpata a noroeste, Gambos a leste, Cacula a nordeste, e Namibe a oeste, aproximando-se da transição entre o interior fértil e as regiões semiáridas do sul. Sua geografia combina áreas de vegetação de savana com campos agrícolas, favorecendo a agropecuária familiar.

A sede municipal da Chibia está situada junto ao rio Caculuvar, um dos afluentes importantes da região, e é servida por linha férrea, fazendo parte do traçado do Caminho-de-Ferro de Moçâmedes (CFM), o que historicamente contribuiu para seu desenvolvimento e ligação com o porto de Namibe.

Com uma população distribuída entre zonas urbanas e várias aldeias e bairros periféricos — como a Pikata, mencionada no texto —, a Chibia destaca-se como uma terra de forte presença camponesa, rica em práticas culturais, saberes tradicionais e resistência comunitária.

A receita das broas tradicionais da Chibia, como preparadas em fornos de barro pelas mulheres das aldeias e bairros como a Pikata, é passada oralmente e varia ligeiramente de família para família. No entanto, há uma base comum que é mantida: o uso de farinhas locais (especialmente de milho), preparo manual e cocção em fornos de adobe aquecidos com lenha.

Aqui está uma versão autêntica e representativa da receita:

🫓 Broas Tradicionais da Chibia

Ingredientes:

•2 xícaras de farinha de milho (fina ou média, peneirada)

•1 xícara de farinha de trigo (opcional, usada para dar leveza à massa)

•½ xícara de açúcar mascavo ou açúcar branco (a gosto)

•1 colher de chá de sal

•1 colher de sopa de fermento biológico seco (ou fermento natural caseiro, se disponível)

•1 colher de sopa de margarina ou banha (opcional, mas comum em versões mais festivas)

•Água morna (quanto baste, geralmente entre 1 e 1½ xícaras)

•Canela em pó (opcional, usada em algumas famílias para perfumar)

Modo de preparo:

1. Preparar a massa:

Numa bacia grande, misture as farinhas, o sal, o açúcar e o fermento. Acrescente a margarina (se usar). Aos poucos, adicione a água morna, mexendo com as mãos até formar uma massa maleável, nem muito seca nem pegajosa. Sove bem por cerca de 10 a 15 minutos.

2. Descanso:

Cubra com um pano limpo e deixe descansar por 1 a 2 horas, até dobrar de volume. Em muitas casas da Chibia, esse processo é feito em locais mornos, como perto do forno em aquecimento.

3. Modelar as broas:

Divida a massa em porções do tamanho de um punho fechado. Modele em formas redondas ou ligeiramente achatadas. Algumas famílias fazem um corte superficial em cruz no topo de cada broa.

4. Assar no forno de barro:

As broas são assadas diretamente no forno de adobe aquecido com lenha, em temperatura alta, por cerca de 30 a 40 minutos, ou até ficarem douradas e com a base firme. Em contextos urbanos, podem ser assadas em forno doméstico preaquecido a 200 °C por cerca de 35 minutos.

5. Serviço:

Tradicionalmente, são servidas ainda mornas, com chá, café ou acompanhando pratos salgados como feijão ou funje. Também são vendidas nas feiras locais, embrulhadas em panos de capulana.

Essa receita é mais do que uma fórmula: é um gesto de continuidade cultural, onde o sabor carrega memória e resistência.

Fonte e fotos : Rádio REAT Rádio Estudantil Angolana de Transmissões


@elcocineroloko

📣 Conheça nossas páginas:

Facebook: @elcocineroloko

Instagram: @charoth10




Comentários

Postagens mais visitadas