O SURREALISMO ENTRE CARNE DE LABORATÓRIO E A FOME NO MUNDO
A cultura da carne de laboratório é uma utopia tecnocientífica que beira o surrealismo quando colocada frente à realidade: não faltam alimentos, falta justiça. É o banquete tecnológico montado no centro do deserto humano. E como no surrealismo, os símbolos se embaralham: o alimento vira produto, a morte vira algoritmo, o futuro vira espetáculo.
A promessa da carne sem morte vs. a fome com abundância
É surreal que a ciência consiga produzir foie gras em laboratório, imitando a gordura de fígado de ganso a partir de células, enquanto milhões de pessoas ainda passam fome em regiões ricas em biodiversidade e alimentos tradicionais. A carne cultivada surge como solução de alta tecnologia para um problema que, em muitos lugares, é causado não por escassez, mas por distribuição desigual, exploração e políticas de exclusão. É como oferecer impressoras 3D de comida para quem não tem gás de cozinha.
Alta tecnologia para alimentar poucos
O discurso da carne de laboratório se baseia na ideia de “salvar o planeta” e “alimentar 10 bilhões de pessoas até 2050”, mas seus principais investidores estão voltados ao consumo de elite, vendendo a imagem de um futuro limpo e ético — enquanto o presente real segue sujo, injusto e colonial. O surrealismo aparece aqui na distância entre a estética futurista da solução e a realidade crua da exclusão.
A separação radical entre alimento e território
Produzir carne em laboratório é separar o alimento da terra, do bicho, do cheiro, do tempo de criação, da cultura. É a radicalização de uma tendência moderna: o alimento sem corpo, sem rastro, sem raiz. É surreal porque retira o alimento do campo sensível da vida e o coloca num tubo, como um simulacro. E nisso, ele deixa de ser alimento no sentido pleno — não alimenta vínculos, nem memória, nem comunidade.
A inversão das urgências
No mundo, mais de 30% dos alimentos são desperdiçados. Há grãos suficientes para alimentar todos — mas eles servem à indústria de ração, de combustíveis, de lucro. O surrealismo está em investir bilhões para criar carne de laboratório enquanto sementes tradicionais desaparecem, comunidades que sabem plantar e partilhar são ameaçadas, e políticas de segurança alimentar são desmontadas.
Hoje apresento duas iniciativas que ilustram com perfeição o descompasso entre alta tecnologia e as verdadeiras urgências da nossa alimentação futura.
De um lado, laboratórios milionários que cultivam foie gras a partir de células de codorna japonesa — tudo sem sofrimento animal, é claro, exceto o nosso, diante da conta.
De outro CACAU CULTIVADO POR MEIO DE CULTURA DE CÉLULAS VEGETAIS
De outro, comunidades tradicionais que seguem lutando para manter viva a mandioca, o milho crioulo e o fogão à lenha, enquanto são vistas como “atrasadas” por não usarem impressora 3D para fazer angu.
É curioso — para não dizer surreal — como se investe tanto em carne sem vaca, leite sem vaca e ovo sem galinha, enquanto falta o básico: terra para plantar, tempo para cozinhar e política pública que não trate comida como commodity.
Mas sigamos: o futuro está chegando — só não avisaram quem está com fome.
Admirável mundo novo
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