Tinham muitas práticas boas, os antigos"

Assim é o nosso cotidiano de vida. Parto para roça e, ao chegar lá, arranco mandioca e começo a raspá-la.

Depois disso retorno e ao chegar no rio lavo o tubérculo da mandioca. Chego em casa e procuro fazer refeição acompanhado de peixes, caso tiver. 

Tomo chibé. Terminando a refeição, começo a ralar a mandioca com sokorõ (ralo). Terminando de ralar, começo espremer a massa da mandioca.

Feito isso parto em busca da lenha. Geralmente carrego um feixe de lenha. Chegando em casa cozinho manicuera. Antes de tomá-la faço esfriar.

Na falta de beiju procuro preparar também.

Eu aprendi todo o processo de preparo de alimentos dos antigos com minha tia, porque meus pais faleceram quando eu era criança.

Ela cozinhava o líquido da mandioca, depois temperava o peixe com ele antes de alimentar-se. Misturava na quinhampira (caldo de pimenta com peixe), isso faziam os mais antigos, os moradores dos igarapés, antes da chegada dos padres. Assim, feito e preparado, ela servia para nos alimentar.

Naquela época, se alimentavam de maniçoba. Ela ralava as folhas de mandioca, cozinhava, depois colocava nos peixes para ser servido.

Tirava do forno e nos servia. Já naquela época se alimentavam do beiju.

Da fruta cunuri (Cunuria spruceana) colhiam, descascavam e cozinhavam. Feito isso, ralavam até conseguir juntar uma porção suficiente. 

Depois, colocavam no kiputu (panela de argila) grande e iam mexendo até ficar bom. Cozinhavam bem para não ser tóxico. Depois misturavam com peixes e então se serviam para alimentar. Todos os homens iam pescar e no retorno colocavam peixes nas panelas preparadas com cunuri.

Tinham também taaka, um tipo de cogumelo que nasce nas madeiras caídas na floresta ou na roça. Colhiam e colocavam no bahti (balaio de cipó) e depois ralavam e serviam para se alimentar. 

Alguns destes tinham líquido oleoso, com isso temperavam e alimentavam. Isso faziam os mais antigos. Presenciei isso quando era criança, os alimentos que eles serviam.

Naquela época não tinha sal, sal dos não indígenas, alimentavam-se sem tempero do sal. Veja como estou hoje depois de ter consumido sal... Estou sem dentes [risos]. Na missão de Taracua, no rio Uaupés, fui crescendo sob os cuidados das paya numiã (irmãs) e lá me alimentei de charque, pirarucu, carne, conserva, arroz, feijão, pão feito com trigo, bolo e frito. 

Eu me alimentei com muito prazer, pois eram alimentos das paya (irmãs).

Mas algumas crianças, ao se alimentarem disso ficaram pálidas, fracas... Hoje em dia ninguém se alimenta de maniçoba. Depois fui cozinheira das irmãs na missão de Pari Cachoeira, no rio Tiquié.

Naquela época faziam dabucuri (rito de oferta de alimentos) de ucuqui (Pouteria ucuqui), que são frutas silvestres. Somente uma mulher preparava caxiri em uma casa. 

Na véspera eles coletavam ucuqui para oferecer para a pessoa que preparou caxiri. Iam colher e no retorno ofereciam-na acompanhado de ritmo de flauta mawako wekamu, wekamu. Também tocavam flauta cariçu. 

Para fazer oferecimento de ucuqui, acordavam às duas horas da madrugada. No dia de dabucuri, o caxiri era servido já no porto. Antigamente, estes ritos incluíam Mirĩ (flautas sagradas). Quando eu era criança eu ouvi o som do Mirĩ. 

As mulheres não podiam ver. 

A gente se acomodava na outra casa, distante da maloca. Escutava-se de longe hu, hu. Tem ainda preparado pelos antigos. Nunca vi, mas apenas ouvi o som dele. Depois eles levavam para dentro da casa.

À uma hora da tarde, eles ofereciam frutas para a pessoa que preparou caxiri. Cada um ia entrando e colocando no meio da casa já como oferta. Assim também faziam no dabucuri de cunuri. As mulheres antigas preparavam wee, numa panela de cerâmica e no dia da véspera de dabucuri já começavam a fazer pinturas corporais de cor preta. Passavam wee nos cabelos para evitar o aparecimento precoce de cabelos brancos. Eu vi isso quando já tinha certa idade.

Faziam pinturas faciais com tinta carajuru vermelha. Era sempre assim. Os antigos, às duas horas da madrugada, já iam no porto para cheirar pimenta. O rosto tornava-se limpo, esplêndido, pronto para ser feito pintura facial. Cheiravam com muito prazer, aspirando. Uma vez tentei cheirar mais doía muito. Por falta disso estou com rosto seco. As pessoas daqui não têm rosto esplêndido. Tinham muitas práticas boas, os antigos... Estou informando conforme meu conhecimento e os conhecimentos que eu ouvi.

Os homens tomavam kahpi (Banisteriopsis caapi) antes da dança tradicional, principalmente os bayaroa (mestres de cerimônias). Adornavam-se com plumas de arara, faziam pinturas faciais com carajuru e corporal com sumo de jenipapo. As mulheres também adornavam-se com pinturas corporal e facial esplêndidas. No pescoço e na frente, colocavam colar de miçanga. Tinham os corpos robustos e os homens também. Depois de terem tomado kahpi, começavam a dança.

Para o dia da dança cerimonial somente se fazia kahtise peru (caxiri vivo). Eu presenciei o preparo de kahtise peru quando era criança. Primeiro arrancava-se mandioca. No retorno deixavam e somente na madrugada as 3 horas ralavam as mandiocas até as 4 horas. Logo depois uma outra começava seu preparo, pois só tinham um ralo, um tohõpa (cumatá) para espremer e somente um tripé.

Todas as outras tinham que esperar o término de sequência de preparo de kahtise peru. A mulher que dominava o sono começava o preparo de kahtise peru à meia-noite. Em seguida outra e assim por diante. Em certa hora terminavam de ralar mandioca, toda a mulherada. Terminavam de torrar todas no forno somente à noite. Adoçavam com manicuera. Este é kahtise peeru. Não tinha açúcar. Cozinhavam bem a manicuera para “adoçar” o caxiri vivo. 

À meia-noite elas acordavam para coar kahtise peru. Preparavam também tusabeke (caxiri fermentado e forte). Uma trazia mandioca cheia em um aturá, outra dois aturás cheios de mandioca. Preparavam com muito prazer, as mulheres antigas. Eu vi isso quando era criança. Nenhuma delas deixava de fazer. Hoje em dia, a gente traz pouca mandioca com aturá pequeno para preparar caxiri.

Desse jeito que nossos avós, nossos antepassados, viviam, dançavam e bebiam. O baya (mestre de cerimônia) bebia só caxirizinho, caxiri puro, mas o restante bebia caxiri forte, como se diz, aru ko (caxiri de cana). Mulherada que oferecia; os homens começavam a moer cana às três da madrugada. Eu vi isso quando era criança. Nessa hora continuavam moendo cana para “adoçar” o tusabeke. Elas amassavam, depois começavam a coar. Amanheciam coando caxiri.

Elas eram trabalhadoras, nós não somos trabalhadoras. Naquele tempo nossos avós plantavam muita cana, mas nesses dias é um pouco difícil. Apesar dos padres terem trazido muito açúcar, não era usado frequentemente como “adoçante” do caxiri. O uso do açúcar no caxiri se proliferou mais com a explosão do garimpo, época de trabalho do ouro, exatamente em 1983.

Depois que os Miriã foram levados pelos padres, este ritual começou a acabar. Assim faziam os antigos. Os atuais, os meus filhos, desconhecem dessa forma de fazer dabucuri; não fazem por serem da geração de estudo de outras coisas. Eu presenciei quando era criança.

Catarina Pedrosa, 80 anos, moradora da comunidade de Cunuri, no trecho médio do Rio Tiquié, assim como outras mulheres Tukano, dedicou grande parte da sua vida à produção de toda alimentação de consumo familiar e comunitário: beiju, quinhampira, peixe, mujeca, mingau de tapioca, carne de caça, maniuaras, chibé, vinhos de frutas diversas e, para os dias de trabalho comunitário e festas, o caxiri (bebida fermentada à base de mandioca). No depoimento apresentado aqui, Catarina fala sobre o seu cotidiano na roça e na casa-cozinha, parte fundamental das moradias no Alto Rio Negro, e ao relembrar o passado, revela o papel das mulheres no cultivo e processamento da mandioca brava – e no preparo de diversos tipos de comidas, além de bebidas e pinturas faciais e corporais. Esse papel é essencial, e poderoso, não só para a subsistência das aldeias, mas principalmente para a produção do corpo e da pessoa Tukano, em complemento ao xamanismo desempenhado pelos homens.

Catarina também fala sobre alterações nos modos de preparo de alimentos, nas dietas, nas festas, nos corpos. Mesmo com a desintegração das malocas e com todas as transformações sociais pelas quais estes povos passaram nos últimos séculos, grande parte da atualização do modo de ser Tukano passa pela continuidade dos processos de transmissão de geração em geração de conhecimentos femininos, de modo especial, a culinária.

O depoimento de Catarina foi recolhido por Melissa e por Patrícia Massa, filha da entrevistada, durante o trabalho de campo de doutorado da antropóloga em 2013. Transcrição e tradução dos antropólogos Tukano Rivelino Barreto e Dagoberto Azevedo.

Melissa Santana de Oliveira Antropóloga, doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (USFC) para ISA 

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