Na Amazônia brasileira, Quilombolas lutam contra o apagamento de sua herança africana

 Por Miguel Pinheiro

  • No século 19, escravos afro-brasileiros auto-libertados se refugiaram nas selvas remotas do que hoje é o estado do Pará, onde estabeleceram comunidades que hoje lutam para manter a posse de suas terras.
  • Após sofrerem os impactos na caça e na pesca causados ​​pela construção da hidrelétrica de Tucuruí, esses quilombolas estão agora envolvidos em conflitos de terra com empresas de óleo de palma.
  • Ao mesmo tempo, eles enfrentam tentativas incansáveis ​​de missionários cristãos para apagar suas tradições culturais.

Em 1835, uma rebelião eclodiu na região do Baixo Amazonas, no então estado do Grão-Pará, Brasil. A grande maioria da população era composta por afro-brasileiros, caboclos (de ascendência mista indígena e branca) e indígenas. Contados como fonte de mão de obra escrava ou barata, viviam nas várzeas e às margens dos rios Guamá, Moju e Tocantins em precárias choças, ou cabanas, ficando assim conhecidas como Cabanagem. Quando a revolta foi esmagada pelas tropas imperiais do Brasil, estima-se que mais de 30.000 pessoas morreram. Alguns, no entanto, encontraram uma maneira de fugir para lugares remotos na floresta, onde estabeleceram novos assentamentos: quilombos ou mocambos, um desafio às autoridades da época em mais um registro histórico de resistência das comunidades afro-brasileiras.

Quase dois séculos depois, algumas dessas comunidades prosperam no coração da maior floresta tropical do mundo. “Aí os cabanos , que eram os fugitivos, andaram na floresta. Isso foi no tempo do meu bisavô”, conta Isabela Trindade Correia, às margens do rio Tocantins. “Há tijolos velhos em todos os cantos, era onde eles se escondiam. Na floresta! Até que estivessem livres. Foi lá que eles construíram seu quilombo.

Isabela é uma das mais antigas moradoras do Quilombo do Mola, no sudeste do atual estado do Pará. A jornada até sua casa é longa. A primeira visão da Amazônia vem da janela do avião, minutos antes de pousar em Belém, capital do Pará. Visto de cima, o corpo líquido do rio Guamá parece uma cobra marrom, admirável e dócil, com a floresta ao redor entrecortada por algumas raras estradas. Várias horas de condução ao longo de um deles me levam à beira do rio Tocantins, onde um barco largo, plano e metálico fornece um meio de atravessar a água.

Depois de uma hora flutuando nesta jangada sobre o rio pontilhado de ilhas verdes e pássaros errantes, chego à cidade de Cametá, local de destaque durante o êxodo da Cabanagem. Reza a história que os quilombos que surgiram nessa região, fundados por trabalhadores fugidos dos canaviais, infligiram severas derrotas às autoridades da época.

De Cametá, desço uma estrada de terra que a certa altura vira uma estrada de areia. É uma batalha épica só para evitar que o carro fique preso em um lugar inusitado, longe de qualquer um. Por fim, o Quilombo Tomázia aparece no horizonte. No último trecho, já com câmeras e microfones na mochila, sou levado pelos quilombolas na garupa de moto, atravessando a floresta de areia e as pontes de madeira improvisadas em alta adrenalina, até chegar ao Quilombo do Mola.

“Para serem viáveis, as comunidades [quilombolas] precisavam ser inacessíveis”, escreveu Richard Price , um antropólogo norte-americano que estuda comunidades de escravos autolibertados nas Américas. As comunidades mais bem-sucedidas, acrescentou, “aprenderam rapidamente a transformar a dureza de seus arredores imediatos em vantagem própria para fins de ocultação e defesa”. Na Amazônia, esses grupos desenvolveram estilos de vida rurais e extrativistas independentes, como lembra Isabela: “Caçamos veado, paca, tatu, porco-do-mato. E a gente pescava traíra, jundiá... Naquela época era muito. Agora, os peixes são difíceis de encontrar, meu amigo. Depois da barragem, é difícil.”

O desaparecimento da caça e da pesca após a conclusão da hidrelétrica de Tucuruí em 1984 levou ao êxodo de muitos dos antigos moradores do Quilombo do Mola e ao desmantelamento da comunidade extrativista. Um paraíso perdido, “uma Amazônia rica e pobre ao mesmo tempo”, nas palavras do jornalista Lúcio Flávio Pinto .

Com o fim da escravidão no Brasil em 1888, essas comunidades não desapareceram, mas “não as encontramos mais em documentos policiais e reportagens de jornais”, escreveu o historiador Flávio Gomes . “Os vários quilombos continuaram se reproduzindo, migrando, desaparecendo, surgindo e se dissolvendo no emaranhado de formas camponesas.”

Durante o século XX, as autoridades brasileiras não tinham critérios sociais, históricos ou étnicos para distinguir esses grupos. Quando a Constituição de 1988 reconheceu a propriedade definitiva dos “remanescentes de comunidades quilombolas que estão ocupando suas terras” (artigo 68), ficou a questão de como diferenciar uma comunidade rural arbitrária de uma comunidade quilombola com vínculos históricos, territoriais e culturais com os “negros fugitivos”.

Em Mola, Isabela é uma das últimas vozes da comunidade, onde viu desaparecer o samba-de-cacete , ritmo tradicional da região: “Lembro-me das batidas da batucada que tocavam, dos tambores que sentou-se, e havia músicas. Os homens cantavam e as mulheres respondiam, e elas faziam o seu movimento.” Já faz um tempo desde que ela ouviu a bateria. diz Isabela. “Foi lindo, o samba-de-cacete.”

O óleo da perturbação

A cerca de 300 quilômetros a leste do Quilombo do Mola está o Quilombo do Cravo, às margens do Rio Capim. Uma mensagem semelhante ecoa por lá: “Nossa cultura está desaparecendo”, diz Antunina Santana.

É uma tarde amazônica quente e úmida no Quilombo do Cravo, no município de Concórdia do Pará. Antunina é uma das lideranças da comunidade e responsável pela certificação de três terras remanescentes de quilombos. “Sempre vivemos da agricultura, do plantio de mandioca, feijão, batata-doce, arroz… Colhemos muito arroz!” ela lembra. “E também sobrevivemos da caça e da pesca.”

Então, em 2008, o cultivo do dendê chegou à região. “Era uma empresa que vinha trazer benefícios para todas as comunidades em saúde, educação, abastecimento de água”, diz Antunina. A realidade, porém, escondia uma estratégia diferente: “Para nossa maior decepção, não foi nada disso. Foi uma compra de terras e expulsão de fazendeiros para a cidade.”

Atraídos por quantias nunca vistas antes, muitos quilombolas venderam suas terras na esperança de enriquecer. Mas os dias sombrios estavam ao virar da esquina, como explica Antunina: “Vender terras da agricultura familiar a baixo custo e ir embora para a cidade, e depois não ter como se sustentar, no fundo significa uma expulsão. Da forma como a terra foi vendida, as pessoas hoje não têm onde morar, muito menos a terra para trabalhar.”

O óleo de palma, também chamado de óleo de dendê localmente, é o óleo vegetal mais utilizado no mundo e uma das commodities mais controversas para produzir. É a matéria-prima para uma infinidade de produtos processados ​​de varejo, de pizzas congeladas a biscoitos, detergentes a cosméticos, velas e muito mais.

A cerca de duas horas de carro do Quilombo do Cravo fica Moju, um dos municípios com maior área de plantações de dendezeiros do Brasil. Elias Nascimento mora na periferia de Moju, em um quilombo espremido entre a área urbana e grandes plantações de dendezeiros. Ele me conta sobre as negociações com a empresa de óleo de palma quando começou a adquirir terras na região.

“Os agricultores não tinham educação formal, a maioria não sabia ler nem escrever”, diz Elias. “Alguns ofereceram aos moradores 2.000 reais [cerca de US$ 400 hoje] pela terra inteira. E eles achavam que era muito dinheiro!” Os acordos permitiam que os agricultores mantivessem suas casas, desde que trabalhassem para a empresa durante a colheita do dendê.

Seja no plantio da cana-de-açúcar, na produção de borracha ou na coleta de frutas e ervas da floresta, a história está repleta de exemplos do processo contínuo de colonização e exploração dos povos amazônicos . O óleo de palma não foi diferente. “O agricultor continua morando lá”, diz Elias, “mas ele tem que entender que a terra não é dele. E a plantação também não. É só a casa. E por que é só a casa? Porque a empresa também precisa que o agricultor more lá, trabalhe para a empresa. Na minha opinião, é como a escravidão moderna.”

“Hoje eles tomaram conta de tudo”, diz Elias. “A gente anda de carro e não tem fim. O povo tentou defender sua terra, mas eles tinham mais dinheiro, eles tinham seus bandidos, eles assumiram.” Foi somente com o envolvimento de pesquisadores de fora da comunidade que a população tomou conhecimento de sua condição de remanescente de quilombo, o que levou à titulação do atual território, diz.

“Mas a essa altura já era tarde”, acrescenta Elias. “Só temos um pedaço de terra. E dentro dessa peça existem 15 comunidades como esta.”

No Quilombo do Cravo ocorreu um processo semelhante. Graças à sua consciência sobre o passado da comunidade e seu conhecimento sobre manejo de cultivos, Antunina se sentiu motivada a liderar algumas das ações de reconhecimento do território quilombola em Concórdia do Pará. “Nenhuma empresa pode comprar terras dentro dessas áreas certificadas. Então foi uma benção de Deus que recebemos. É uma grande garantia para nós da propriedade da terra.”

Diversidade biocultural

É nesse enclave de interesses que a biodiversidade cultural — a relação dinâmica entre os elementos humanos e sociais e o meio ambiente — assume uma dimensão crucial no contato com as comunidades tradicionais. Em várias partes da Bacia Amazônica, as culturas indígenas convivem há muito tempo com as tradições africanas, produzindo uma riqueza única.

No entanto, essas comunidades tradicionais têm sido cada vez mais visadas por missionários católicos e evangélicos, que lutam entre si para conquistar o maior número de devotos e aproveitar o isolamento desses assentamentos. “No passado tínhamos uma diversidade de culturas, que aos poucos fomos perdendo”, diz Antunina, mostrando um claro desconforto diante da câmera. “Especialmente os curandeiros e os xamãs, que são considerados coisas do diabo. A Igreja não aceita”.

A intolerância está presente diariamente em outras manifestações religiosas de matriz africana no Brasil, como a destruição dos terreiros, locais de rituais sagrados da Umbanda e do Candomblé das religiões afro-brasileiras. No entanto, no coração da Amazônia, esse apagamento, encenado pela Igreja, assume a forma de um expurgo espiritual e é um flagrante atentado aos direitos humanos. Os missionários que atuam na Amazônia operam por meio de um processo muito profundo de humilhação das práticas tradicionais, descaracterizando as identidades dessas populações.

Elias teve que lutar contra uma missão evangélica que tentava entrar no Quilombo de Moju. Sem se deixar abalar por várias ofertas e pela promessa da chegada de modernos equipamentos de áudio para a comunidade, Elias fechou as portas da comunidade. “Esta cultura de adoração aos nossos santos foi deixada pelos nossos avós. Queremos continuar essa cultura que nossos ancestrais nos deixaram”, diz Elias dentro da capela de tijolos da comunidade com bancos de madeira e paredes azul-celeste, em um canto da qual repousa uma coroa celebrando a festa do Divino Espírito Santo.

Reconhecer o papel que as comunidades quilombolas têm a desempenhar na proteção e gestão da biodiversidade da Amazônia é fundamental para a sobrevivência de uma paisagem plural e vibrante. A chave para a biodiversidade da floresta é a diversidade biocultural humana que compõe essa mesma floresta. Ou, como disse o historiador Alberto Costa e Silva em entrevista recente , “o Brasil não repete a África, o Brasil reinventa a África.

“Precisamos ver o negro não apenas como alguém que sofre, mas como alguém que sofre e constrói, que é criador, que é inventivo, que é inteligente e que foi um agente essencial de mudança neste país.”

 
Imagem do banner de Miguel Pinheiro.

Esta história foi relatada pela equipe do Brasil da Mongabay e publicada pela primeira vez aqui em nosso site do Brasil em 2 de maio de 2022.

















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