Liberdade para Quem?

Duzentos anos de disputas


A independência resolveu relativamente rápido a problemática do autogoverno, pois a autonomia formal do país jamais foi novamente ameaçada, mas apenas deu início à questão muito mais crucial sobre quem deveria governar, com a qual nos debatemos até hoje.[6] Como a Convenção Constitucional norte-americana de 1787, a Assembleia Constituinte do Brasil em 1823 não era representativa da população que dizia representar, sendo composta quase que unicamente por brancos (o baiano Francisco Montezuma, pardo, era uma das raras exceções) e ricos. Em uma época em que o tráfico transatlântico de africanos continuava a pleno vapor (cerca de 90 mil foram desembarcados aqui apenas no biênio 1822-1823), os deputados eram também escravocratas.

Mesmo assim, esses homens precisaram discutir quem seriam os cidadãos do novo Estado: se a exclusão das mulheres nem sequer foi posta em pauta, o que fazer com negros e indígenas foi um ponto de muita polêmica. O baiano Francisco Carneiro de Campos foi explícito quanto ao caráter excludente da cidadania na nova nação: os escravos crioulos, os indígenas, etc. […] não entram no pacto social: vivem no meio da sociedade civil, mas rigorosamente não são partes integrantes dela, e os indígenas nos bosques nem nela vivem. [… Eles] não têm direitos se não os de mera proteção[7] – e esta, como a violência do cativeiro e da expropriação deixava claro, era muito mais formal que efetiva.

Alguns deputados como o diácono José Martiniano de Alencar, veterano de Revolução de 1817 em Pernambuco e mais progressista que seu filho romancista — o qual defenderia a escravidão até a morte — admitiam que a extensão da cidadania a todos os homens era a atitude correta. Entretanto, a necessidade de preservar a ordem social, defender a propriedade privada e garantir as rendas do Estado impediam que essa medida fosse tomada em um país escravista.[8] A preocupação do intendente de polícia do Rio de Janeiro em reprimir papéis incendiários que circulavam em ajuntamentos de negros sugere a amplitude da disseminação desses debates em 1822-24,[9] mas a força das estruturas políticas oligárquicas impedia que demandas pela ampliação da participação política alcançassem as estruturas institucionais em formação.

(“Alegoria do Juramento da Constituição”, de Giuseppe Gianni. Reprodução)

Ao final, os deputados decidiram incluir os africanos libertos como cidadãos e seu projeto de Constituição previa que o Legislativo deveria tomar medidas para a “emancipação lenta dos negros”,[10] porém a dissolução da Assembleia Constituinte por D. Pedro e a outorga de uma Constituição escrita pelos elementos mais conservadores retiraram até essas pequenas concessões. Cidadãos seriam apenas os homens livres nascidos no Brasil ou europeus naturalizados, excluindo-se os povos originários e africanos, entendidos como “bárbaros”. Quanto à escravidão, nenhuma palavra: ela foi naturalizada para ser mais bem preservada.[11]

Mais do que desânimo ou conformismo, o que esse passado nos sugere é que múltiplos caminhos são vislumbrados em todas as encruzilhadas históricas. Em 1823, como em 1787 nos Estados Unidos, alguns membros da elite vislumbraram uma lenta extinção da escravidão, mas a demanda internacional por algodão e café além da consolidação de poderosas classes senhoriais se encarregariam de enterrar essas aspirações. Que tais ideias tenham sido aventadas, inclusive entre setores populares, sugere que outros mundos eram possíveis.

 

“O progresso não foi obtido graças a burocratas ilustrados ou governantes beneméritos, mas da ação social que transformou possibilidades abertas por mudanças estruturais em realidade.”

 

Entretanto, sonhar não é o suficiente para mudar. Apesar das rebeliões da década de 1830, a escravidão só foi extinta 65 anos depois da Constituinte, após o isolamento do Brasil como último país escravista das Américas e da ascensão de novas elites menos dependentes do cativeiro, bem como de um forte movimento abolicionista. O progresso não foi obtido graças a burocratas ilustrados ou governantes beneméritos, mas da ação social que transformou possibilidades abertas por mudanças estruturais em realidade.

A luta pela liberdade e pela cidadania — o direito de ter direitos[12] — não se encerrou com sua conquista formal em 1888, sequer com a Constituição que, promulgada cem anos depois, finalmente transformou o Brasil em uma democracia. A persistência de múltiplas desigualdades (raciais, econômicas e de gênero) e a força que o reacionarismo demonstrou sempre que se viu ameaçado por reivindicações subalternas, por modestas que fossem — como nas décadas de 1830, 1890, 1960 e 2010 — demonstram que há muito por fazer.

 

“Assim, o bicentenário da independência não deveria servir de desculpa para nacionalismos rasos que comemorem os de sempre — homens, brancos, ricos e poderosos.”

 

Assim, o bicentenário da independência não deveria servir de desculpa para nacionalismos rasos que comemorem os de sempre — homens, brancos, ricos e poderosos. O governo federal não fará nada diferente, agora que se lembrou da existência da efeméride. Portanto, cabe à sociedade a tarefa de recuperar os fracassos nacionais, mas principalmente os esforços para saná-los, construindo um passado prático que aponte para onde queremos chegar.

Não se trata, evidentemente, de uma história panfletária: a simplicidade nunca reflete a realidade, de modo que dicotomias e maniqueísmos são péssimos guias para a ação. Mesmo assim, o significado que atribuímos ao passado é inevitavelmente político: 1822 por 1822 interessa apenas aos antiquários, enquanto o bicentenário precisa ser relevante para nós, brasileiras e brasileiros de 2022. Lembremos não só naqueles que perpetuaram nossas iniquidades, mas também daqueles que as combateram, tantas vezes esquecidos e invisibilizados. Que a reflexão sobre 200 anos de lutas, com muitas derrotas — mas também algumas vitórias — nos inspire para o embate decisivo na eleição que se avizinha, e para os muitos que se seguirão.

 

Imagem de capa. Devemos refletir sobre o significado desses 200 anos de luta e sobre o futuro que queremos para o país
(“Pano de boca executado para a representação do extraordinário no Teatro da Corte”, de Jean-Baptiste Debret. Reprodução
Referências

1. Oliveira Lima, O Movimento da Independência, 1821-1822. Brasília: FUNAG, 2019 [1922], p. 7.

2. Holanda, Sérgio Buarque de. A herança colonial – sua desagregação in: id. (org.) O Brasil monárquico, Tomo II: O processo de emancipação. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003 [1962], 9ª ed., p. 18.

3. Americus, Miguel Calmon du Pin e Almeida. “Carta II” [1823?] in: id. Cartas Políticas Extrahidas do Padre Amaro. Londres: Greenlaw, 1825, p. 55.

4. Reis, João José. O jogo duro do Dois de Julho: o ‘Partido Negro’ na Independência da Bahia. in: id. & Silva, Eduardo. Negociação e conflito: A resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, pp. 79-88.

5. Mott, Luiz. Um documento inédito para a história da independência. in: Mota, Carlos Guilherme. 1822: Dimensões. São Paulo: Perspectiva, 1986 [1972], 2ª ed., p. 482.

6. Parafraseando aqui o classico livro de Becker, Carl. The History of Political Parties in the Province of New York, 1760-1776. Madison: the University of Wisconsin Press, 1960 [1909], p. 22: “the first was the question of home rule; the second was the question, if we may so put it, of who shall rule at home”.

7. Sessão de 24 de setembro, Diário da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil. Brasília: Senado Federal, 2003 [1973], ed. fac-similar, vol. III, p. 106.

8. Sessão de 30 de setembro, Diário, vol. III, p. 133.

9. Ribeiro, Gladys. O desejo da liberdade e a participação de homens livres pobres e ‘de cor’ na independência do Brasil. Cadernos Cedes, vol. 22, n. 58, 2002, p. 39.

10. Projecto de Constituição para o Império do Brasil, Diário, vol. II, p. 699, artigo 254

11. Parron, Tâmis. Escravidão e as fundações da ordem constitucional moderna: representação, cidadania, soberania, c. 1780 – c. 1830, inédito.

12. Arendt, Hannah. Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989 [1949], p. 330.

Thiago Krause é professor de história na Unirio e autor, com Rodrigo Goyena Soares, de “Império em Disputa: Coroa, Oligarquia e Povo na Formação do Estado Brasileiro (1823-1870)” (FGV Editora, 2022), do qual este artigo foi adaptado

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