Existe "Gastronomia" Quilombola e Indigena?



Neste ensaio vamos discutir novos olhares sobre a descolonização, ele nós permite observar cronologicamente, como se consolidou a ideia errônea de uma gastronomia brasileira.

Essa discussão não é uma mera questão etimológica, ela esconde a necessidade de reconhecer dois campos muito distintos do conhecimento, o que é necessário para que possamos objetivamente entender a lógica do desequilíbrio social alimentar, em seu devido espaço.

Saliento, que nossas tradições e saberes, técnicas alimentares, se consolidaram a partir das influências e tradições, de povos historicamente subaltenizados, indígenas, povos de matriz africana, quilombolas, ribeirinhos, povos das matas, buscando entender as raízes alimentares da cultura brasileira,

As culinária brasileiras tem por característica suas raízes populares, seu caráter social foi impresso nas lutas de resistência, e resiliência, legados de povos não reconhecidos.

Isso quer dizer, que buscamos reinscrever a cultura alimentar Brasileira, partindo do lugar invisibizado, dando novos significados reinscrevendo esses saberes partindo de uma ótica de contribuição civilizatoria, mas, mostrar também, como o uso do termo, é usado por setores interessados, omitir algumas realidades.

Há muito tempo existe um consenso na antropologia e em outras disciplinas acadêmicas de que comer e beber são elementos centrais da identidade humana. A comida, em particular, revela como a natureza e a cultura estão intimamente ligadas. 

Os sistemas culinários contêm critérios de diferenciação, ordenação e classificação do lebenswelt e da fixação do lugar que o indivíduo tem no mundo. 

Dele derivam as regras que os membros de uma determinada cultura usam para a produção, preparação e consumo de alimentos. 

Claude Lévi-Strauss (1908-2009) , portanto, descreve a culinária de uma sociedade como uma linguagem, que ajuda a traduzir e retratar as estruturas sociais. Assim, ao estudar hábitos alimentares, antropólogos como Lévi-Strauss e Mary Douglas (1921–2007) concentraram-se em revelar essas estruturas e descrever o conjunto de regras que as determinam.

Partindo dessa premissa faz-se necessário entender os sentidos do questionamento e das simbologias, que ao longo dos séculos foram sendo normalizadas, a revelia dos verdadeiros protagonistas do processo.

Defendendo que o termo "Gastronomia" não reflete o caráter de nossa cultura culinária, o termo induz à características que não traduzem nossos sistemas alimentares, é homogeneizante e padronizador, pois se nutre de um pensamento reducionista, partindo do princípio de que todas as culturas são iguais, não reconhecendo a diversidade e as diferenças de anseios, afetos, interesses e desejos, colocando num mesmo traçado, culturas e suas especificidades, que ampliam o desconhecimento, e a invisibilidade de nossa cultura alimentar.

Cultura Alimentar não é o mesmo que Gastronomia, o termo em si, é una forma de aprisionamento e afirmação cultural edonista, que não distingue nossas culinárias tradicionais, pelo contrário, segrega sobre o brasão colonial.

Desde a época colonial, com a implantação da capital do governo federa e a transferência da Corte portuguesa, em 1808, para o Rio de Janeiro a família real, o governo da metrópole e transformou a cidade no maior terminal negreiro da América portuguesa e do Atlântico Sul.

Com a Corte veio, sobretudo, boa parte dos aparatos administrativo e cultural portugueses, desse modo, se intensificaram as trocas entre a colônia americana e a Europa, África e Ásia.

"Por trás do doce servido nas cortes para a realeza, estava uma moenda de gentes"


O trabalho escravo na produção de cana-de-açúcar, permitiu a acumulação capitalista, e  garantiu o desenvolvimento da cultura gastronômica na Europa, mas principalmente em Portugal.

https://www.brasildefato.com.br/2019/08/09/acucar-o-doce-da-sobremesa-e-o-inferno-da-escravidao/

Novos hábitos e costumes foram se associando àqueles que já marcavam a tradição da cidade. Esse movimento de ida e vinda de funcionários e personalidades continuou se intensificando mesmo depois da chegada da família real ao Brasil, pois com a expansão napoleônica e a invasão de Portugal, a cidade se transformou no único refúgio da liberdade monárquica no Novo Mundo. 

Como nos informa Alencastro (1997, p. 12-13), a afirmação de liberdade transforma a cidade num novo cenário, onde se expandem os debates e as atividades cotidianas, justificando, para ele, a sua condição de grande centro urbano.

Enquanto a família real e a aristocracia nobre se adaptavam ao Novo Mundo, importantes mudanças atravessavam o cotidiano colonial. 

Com hábitos alimentares específicos e exi-gentes, decorrentes dos costumes europeus à mesa, que repousavam na tradição da cozinha francesa, ficou clara a necessidade de importação de ingredientes não existentes na colônia, pois, embora aqui existisse uma variedade enorme de ingredientes, a falta de costume nos seus usos e sua associação aos escravos africanos impedia, de início, que fossem utilizados como substitutos dos cheiros e dos aromas europeus (Cascudo, 2011)

Entretanto, mesmo com essas limitações, ocorreram trocas que determinaram mudanças nos hábitos alimentares, fazendo com que as relações entre as formas de fazer e de comer dos diferentes segmentos sociais se transformassem. Assim, os hábitos alimentares europeus foram transferidos para a cidade e a delicadeza passa a ser o ponto chave para a alimentação.

A qualidade e a quantidade do que era posto à mesa passaram a ser apreciadas (Cascudo, 2011).

Essa aparente delicadeza é a marca do modo elegante da sociabilidade aristocrática que para Savarin – um dos pioneiros no estudo das relações entre culinária e sociabilidade à mesa e, hoje, um clássico da historiografia gastronômica – está representada pelo modo como os pratos são servidos, aos poucos e separados em entrada, prato principal e sobre-mesa.

No entanto, embora ocorressem trocas de experiências culinárias no Rio de Janeiro, a Corte manteve os hábitos parisienses no que diz respeito ao figurino de moda, às músicas, danças, serviços de cardápios e à arte em todas as suas modalidades e vícios, transformando os hábitos europeus em dominantes no Brasil (Edmundo, 1956).

"O ideia de progresso, foi assimilado de forma mimetica, pelas elites brasileiras, despertado pela cultura cosmopolita Francesa, que, internalizou e agudizou um sentimento de inferioridade e atraso."

Luís Edmundo (1956), uma das fontes primárias para os estudos da cidade do Rio de Janeiro, nos dá uma indicação da presença desses hábitos, observando que era comum a leitura de textos gastronômicos que evidenciavam a imitação dos textos franceses, como a Arte de cozinha, de Domingos Rodrigues, chef de cozinha de d. Pedro II, e o Cozinheiro moderno,de Lucas Rigaud, que apontavam ensinamentos da culinária francesa em Portugal, e, consequentemente, colaboravam para a formação da cozinha brasileira. 

Câmara Cascudo (2011) realça esse ambiente ao nos fornecer a lista do que era encontra-do nas mesas da Corte, a partir da necessidade de organização da alimentação dos europeus na capital. 

Apesar da influência francesa na culinária lusitana, hábitos tradicionais foram mantidos e a falta de elegância à mesa era comum na Corte.

A voracidade do comer na Corte acabou por pressionar o uso mais intensivo das coisas do Brasil, uma vez que ficava cada vez mais difícil importar ingredientes e produtos na velocidade da voracidade.

A revolução industrial, a modernização das tecnicas de processamento alimentar, o descolamento da relação centro periferia, a assimilação de novos produtos e culturas como o por ex. fast-food, modificaram nossa cadeia alimentar, abrindo espaço para uma infinidade de novas dietas, que alimentam o mercado e o capital das multinacionais de medicamentos e da alimentação.

Tradições culturais e gastronomia carioca 

Alberto Luiz de Coimbra e Roberto barthol

Garantir direito à Terra, e a preservação da Culinária Tradicional 

Uma das formas mais perversas, mas não menos eficientes da dominação dos povos originários e quilombolas, é a questão do poder sobre o direito à a terra.

O acesso a terra, é o que pode garantir a qualidade, soberania e segurança alimentar a esses povos.

O direito humano à alimentação adequada consiste no acesso físico e econômico de todas as pessoas aos alimentos e aos recursos, como emprego ou terra, para garantir esse acesso de modo contínuo. Esse direito inclui a água e as diversas formas de acesso à água na sua compreensão e realização. 

Ao afirmar que a alimentação deve ser adequada entende-se que ela seja adequada ao contexto e às condições culturais, sociais, econômicas, climáticas e ecológicas de cada pessoa, etnia, cultura ou grupo social.

Quando o trabalhador agrário desenvolve sua atividade, ele é empoderado, tendo recurso de onde tirar seu sustento e de sua família, este talvez seja do Brasil não ter feito até hoje uma Reforma Agrária.

Daí a importância de defendermos a agricultura familiar.

Gastronomia e os valores burgueses Europeus.

Uma das premissas da gastronomia, foi a organização de codigos da mesa burguesa, teve como iniciativa mostrar a evolução dos hábitos, valores e costumes, tudo isso impactou de forma profunda no consumo de alimentos.  Mas não só isso, orientou a estrutura de classes sociais, que se dividiam entre e camponeses, e que viram acenderam à burguesia, classe de negociantes, que utilizaram a gastronomia, e mercantilização de toda sorte de alimentos e utilitários à serviço da nobreza.

O que chamamos de cozinha clássica Francesa, é na verdade, uma mistura de cozinha aristocrática e burguesa, foi esse padrão culinario que deu origem ao termo Gastronomia, durante o século XIX até o início do século XX.

•Os séculos 18 e 19 surgiram na França, grandes restaurantes e hotéis de luxo, bem como os primeiros escritores de alimentos (Grimod de la Reynière, Brillat Savarin), o refinamento passou a ser modelo de distinção.

•A invenção do automóvel no século XX estimulou o turismo culinário (Guia Michelin) e popularizou as comidas regionais.

•No início do século 20 na França, a nostalgia da vida simples no campo, alimentada por uma crescente reação contra a vida decadente da cidade, levou ao surgimento da culinária regional, trazendo um novo interesse para alimentos locais e comida regional tradicional. 

•Do ponto de vista econômico, os restaurantes que servem comida local prosperaram; floresceram os livros de receitas regionais (mais de 500 livros foram publicados nos últimos 20 anos do século XX); em 1909, os produtos alimentícios passaram a ser protegidos por meio da criação de um sistema de certificação, posteriormente denominado appellation d'origine controlée (denominação de origem controlada), primeiro para vinhos e depois estendido para outros alimentos, em 1935, o governo francês criou o Institut National des Appellations d'Origine (INAO) para regulamentar todos os produtos agrícolas franceses. 

"O poder homogeneizante do universo da gastronomia, revela em seu íntimo, interesses bem maiores que as discussões sobre alimentação, encobrindo a diversidade Culinária como característica da nossas regionalidades sociais."


A Exotização e o Fetiche

A França sempre significou uma expressão particular da Europa, no sentido de ser uma construção genérica que parecia representar e incorporar valores e qualidades de requinte, de venerabilidade, de erudição e sofisticação.

Todo imaginário idealizado da gastronomia, por séculos se baseou na "exotização" de povos e culturas, "au bom sauvage", está foi a forma encontrada para submeter, transformando grupos sociais, seu modos de vida e hábitos alimentares em, agenciamentos mercantis, em exploração ambiental e saques de terra, para manter o requinte, a ostentação e o luxo.

No século 17 e 18, muitos objetos, alimentos, e utilitários usados ​nas mesa Europeias, falavam muito sobre a posição do anfitrião na sociedade.

Muitos relatos do viajantes no século XIX, mostrando a abundância de frutos e alimentos em terras Brasileiras, e essa produção, circulação, preparação e consumo de alimentos moldaram e foram moldados por ideologias imperiais e formas de dominação.

Em nossos dias, estes conhecimentos foram levado à escala social culinária, e transformado em uma forma de consumo definidor de status com base na compreensão da cozinha "genuína" e "autêntica", esse processo de exotização foi transformando nossos produtos gourmet e nossas tradicionais culinarias em Fetiche gastronômico, vendidos a preço de ouro nos restaurantes refinados do país.

Banania e da 'missão civilizadora gastronômica' francesa.

The French Gastronomic Mission in Brazil in the 1970s

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Gastronomia enquanto manutenção do conhecimento, da economia colonial a da desigualdade.

Sinalizo antes de tudo, que os Saberes dos povos tradicionais, não funcionam na lógica da racional da cultura urbana capitalista, aqui não há a busca pelo lucro, ou por resultados financeiros, aqui os alimentos não são tratados como mercadorias, e estes mesmos saberes, são resultado da cultura alimentar desses povos, dos fazeres tradicionais, do uso racional da terra, e dos benefícios que ela oferece. 

O uso do termo vem sendo defendido na academia, partindo da defesa de seu uso histórico, o que não faz sentido dentro de uma lógica de descolonização, o que só reafirma a necessidade de ser repensado como um campo diferenciado do conhecimento, centrado nas questões relativas à universo constitutivo da restauração e do mercado.

As universidades de gastronomia surgiram no Brasil, por volta dos anos 80 do século XX, impulsionadas pelo crescime das redes de hotelaria e para dar suporte e qualificação ao setor de turismo, em expansão no país, visando por meio de lobes do mercado na promoção do desenvolvimento capitalista no setor hoteleiro, de serviços e restauração.

Meritocracia, privatizações, empreendedorismo, e a visão neoliberal passaram a fazer parte do rol discursivo da academia, numa sociedade que busca desesperadamente através do desenvolvimentismo produtivista a acumulação capitalista, 

As universidades de gastronomia pipocam em todo território nacional, prometendo um lugar ao sol a muitos futuros chefs, mas esbarram em questões como mobilidade social, desigualdade e a concentração de renda, sem falar no ideal de empreendedorismo, que põe em cheque, as novas relações trabalhistas, e a uberização no setor, ignorando a pespectiva crítica, sobre as relações de poder.

Essa visão liberal, quase que messiânica, disseminada pelas organizações, cumprem um papel de fortalecimento do mercado, de formação de mão de obra especializada, mas que, ideologicamente funciona para garantir poder a determinado grupo que se impõem na sociedade como porta-voz da nossa cultura alimentar, mas que carece de legitimidade.

A força do termo e as titulações numa sociedade patrimonialista, exercem um potente significado, nesse sentido discutir o uso do termo "Gastronomia", poderia ser algo menor, mas a questão aqui é analisar o termo enquanto relevante indicador sobre nossa cultura alimentar, e reconhecer que numa sociedade altamente hierarquizada, e competitiva, o poder induz a comportamentos sociais, que em si, não contribuem numa pespectiva democrática, muito menos emancipatória, pelo contrário, reforçam estereótipos e a secular forma de colonização do conhecimento e dos saberes.

Diz o ditado que: "Quem nomina, domina"

O termo "Gastronomia" claramente refere-se a forma que os europeus encontraram para definir seus hábitos, práticas e técnicas burguesas à mesa.

Brillat-Savarin cunhou o termo Gastronomia, em seu Physiologie du goût (1825) quem sistematizou o estudo da comida e da culinária sob este nome, lembrando que a França foi o primeiro país a registrar suas bases culinárias.

São muitas as vertentes do pensamento sobre esse assunto, muitos continuam legitimando o termo, mas, mesmo em países europeus como a Itália, vêm com bons olhos, sendo descartado.

•Nos EUA, temos dois conceitos claramente definidores, um que trata mais especificamente dos saberes tradicionais "Culinary", outro mais generalista que trata das questões relacionadas às especificações do mercado, das tecnicas, da hotelaria e restauração "Gastronomy", distintos campos de conhecimento.

•Outro fator importante a ser observado, é que em muitos países Europeus, que foram colonizadores, por mais paradoxal que seja, a cozinha de referência ou seja a culinária acessível a todos, são de origem de países colonizados, na própria França, é de origem Marroquina, o Cous-cous, bem como na Inglaterra, a predominância da culinária hindu.

Então a partir de um discurso decolonial,  o uso do termo, dificulta a valorização do capital social e cultural dos formadores da nossa Culinária, bem como normatiza intrinsecamente quaisquer outra forma de emergência de outra cultura alimentar, da mesma forma não discute o fator político como a luta de classe, as questões de gênero, da emancipação e da soberania e principalmente o capitalismo.

Culinária Tradicional tem o poder de redimensionar a atual realidade.

Ao meu ver, deveríamos retomar a Bahia como protagonista, na formação das culinária nacionais, como uma das mais expressivas e representativas do país, símbolo de resistência, e da criatividade popular.

Reconhecer o importante papel da Ancestralidade associada aos povos de Matriz africana e Indígena e tradicionais, nessa formação, e trazê-la como lugar de referência culinária brasileira.

EMANCIPAÇÃO E SOBERANIA

Independente da promoção individual de chefs, ou mesmo restaurantes, deveriamos potencializar a Culinária da Bahia, como capital e catalisador cultural, uma vitrine do que é criado no estado tão rico culturalmente.

Essa diversidade fortaleceria naturalmente, as cadeias produtivas regionais, o desenvolvimento do turismo e da sustentabilidade, promoção dos produtos locais, na agricultura familiar, tudo isso impacta diretamente na segurança e soberania e alimentar, na geração de renda trabalho e respeito às povos tradicionais.

Não há como falar em mobilização de grupos que foram secularmente invisibilizados, sem promover e devolver poder a nossas tradições, e a culinária, os saberes tradicionais, do campo, algo tão básico, mas digno de luta permanente.

Usar a palavra Culinária, como referencial da nossa cultura alimentar, é antes de tudo revolucionário!


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